Aos 12 anos, o jovem Henrique Navas começava o seu percurso de participações nas Olimpíadas Portuguesas de Matemática. Com 19 anos, já somava 16 medalhas em provas de raciocínio matemático, mais do que o total de anos que se tinham passado desde então. Os números não o atormentam, são até uma paixão que o fez seguir a Matemática até ao ensino superior. Mas, para grande parte dos alunos portugueses, esta área é a mais temida. É também aquela que regista mais insucesso escolar, segundo o governo, que volta a propor um novo olhar sobre o tema no seu programa da atual legislatura. Mas, afinal, porque é que a Matemática é tão difícil?
De acordo com um documento da Direção-Geral da Educação sobre o ensino da Matemática, entre o conjunto de disciplinas do ensino secundário, este é considerado o mais difícil de todos. Relativamente ao ano letivo 2017/2018, quando os alunos foram questionados sobre aquelas em que tiveram mais dificuldades, a Matemática foi referida por 41,8% dos alunos dos cursos científico-humanísticos e por 31,4% daqueles que estavam em curso profissionais. "A Matemática é, sim, uma das disciplinas mais difíceis da escola. E por uma razão simples: há um lado cumulativo na Matemática que não existe nas outras. Mas tem de ser mesmo assim", começa por explicar Filipe Oliveira, presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM).
Disciplina considerada pelos estudantes com maior grau de dificuldade, por oferta de educação e formação
© Direção-Geral da Educação
A Matemática constrói-se em cima de Matemática e as equações não existem sem a multiplicação. Em disciplinas como História, por exemplo, "pode ser-se o maior especialista da Segunda Guerra Mundial, mas não saber muito sobre a civilização egípcia". "Há sempre ligações, mas não é taxativo", acrescenta Filipe Oliveira. Já no que toca à Matemática, "para se fazer o que se pede no 9.º ano ou no 12.º, tudo o que está para trás tem de estar muito bem sabido". "Os conteúdos que são ensinados durante o ensino obrigatório acumulam conhecimento que a humanidade aprendeu a absorver por ela própria desde 500 anos a.C. São 2500 anos de conhecimentos em 12 anos", lembra.
Pedir que ser bom a Matemática não fosse uma tarefa cumulativa, "seria como pedir aos alunos para atravessarem o canal da Mancha a nado sem nunca os termos ensinado a nadar", compara. O presidente da SPM entende que "aprender a nadar é chato, porque é uma técnica, é repetitivo, é preciso treinar todos os dias", mas "se não se conseguir fazer isto, nunca se vai atingir as competências necessárias, como nadar rápido ou salvar uma pessoa que se esteja a afogar à sua frente na praia".
O que mudou na Matemática?
Mais teoria ou mais prática? Como se combate o insucesso a esta disciplina? O tema é controverso: desde o início do século que a Matemática tem sido alvo de diferentes alterações de currículo. No atual programa governamental, volta a estar prevista "uma estratégia integrada de ação sobre a aprendizagem da Matemática, uma vez que se trata da disciplina com mais insucesso". Ainda neste ano, o Grupo de Trabalho de Matemática [nomeado em 2018 pelo Ministério da Educação] apresentou 24 recomendações para alterar o currículo atual. O objetivo? Acabar com o que existe e criar do zero um novo plano para a disciplina nas escolas.
Uma medida "necessária", na perspetiva da dirigente da Associação de Professores de Matemática (APM). "Só assim se garante três pontos fundamentais: articulação do 1.º ano ao 12.º ano; adequação aos níveis de ensino, necessidades de alunos e diferentes ofertas de percursos escolares; e coerência nos programas", diz Lurdes Figueiral.
Mas "já toda a gente percebeu que, para ter um melhor sistema de ensino, é preciso não estar constantemente a mudar tudo", contraria o presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM), que faz um raio X aos últimos anos da Matemática nas escolas. O problema, diz, passa por Portugal ter tentado seguir a mesma filosofia do que a Finlândia.
Políticas portuguesas "partem das políticas aplicadas na Finlândia", mas "o que estamos a ver é que isto não foi bom para este país".
Até 2011, altura em que tomou posse o governo do antigo ministro da Educação Nuno Crato, "os currículos eram muito imprecisos relativamente aos objetivos que os alunos deveriam alcançar". Incluíam até "falhas pedagógicas e científicas", na medida em que, por vezes, "eram pedidos desempenhos sem se dar aos alunos os instrumentos necessários para compreenderem o que estavam a fazer". Com o anterior governo, "tudo mudou": não só os estudantes "passaram a trabalhar com currículos mais rigorosos e estruturados" como "passou a ser dada uma grande atenção à avaliação" - tão adorada quanto odiada -, com a substituição das provas de aferição por exames no 4.º e 6.º ano de escolaridade.
"Esta política permitiu que os alunos pudessem ser comparados da mesma forma [através de exames externos], mas também veio chamar a atenção das famílias - que ficam mais atentas se os filhos vão fazer uma prova de âmbito nacional." O que Filipe Oliveira atribui como uma das causas da diminuição das taxas de retenção. Entre 2012 e 2018, a taxa de conclusão do ensino básico subiu 4,6%, de 90,3% para 94,9%. Já no ensino secundário, o aumento foi ainda mais drástico, de 79,9% para 86,1%, ou seja, cresceu 6,2%. De facto, "ainda há muitas retenções", e há regiões que continuam acima da média nacional, mas "estão a cair", lembra. Aliás, "nunca em Portugal foram tão baixas". Porque "houve vários governos, de esquerda e de direita, mas houve sempre uma continuidade até 2015". A partir daqui, "a história é outra".
Quando o atual ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, tomou posse, "assistiu-se a uma revolução que nunca tinha sido vista nas escolas, que trouxe um tal desprezo do currículo, com esta ideia da flexibilidade curricular, que diz que cada escola pode desprezar 25% (ou mais, com o novo diploma) do currículo nacional".
Já a presidente da APM acredita que uma das principais formas de combate ao insucesso escolar na Matemática poderá mesmo passar pela autonomia das escolas. Segundo dizia Lurdes Figueiral ao DN, "todos os alunos têm capacidade para aprender Matemática", mas "a forma de chegar lá é que não é única".
Portugal copiou a Finlândia e estagnou, diz a SPM
Filipe Oliveira considera ainda que o governo deixou de dar a atenção devida ao sistema avaliativo, com o fim dos exames do 4.º e do 6.º, novamente substituídos pelas provas de aferição. "O modelo anterior, dos exames, não estava só errado, era acima de tudo nocivo: treinar para os exames é pernicioso e nocivo", justificava o ministro, renegando uma "cultura da nota" que, no seu entender, fazia da escola não uma "escola inclusiva e integradora, mas uma escola seletiva".
Mas "está latente um discurso sobre uma escola que não é um local de trabalho, mas sim um local onde os alunos se sintam bem e confortáveis", responde o presidente da SPM. O que imita o modelo experimentado durante anos pelo sistema de ensino finlandês, considerado um dos melhores do mundo, mas que tem vindo a descer drasticamente nos exames internacionais. Nomeadamente no PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos): desde 2003 que este país abandonou o segundo lugar do ranking internacional para cair para o 16.º (em Matemática) lugar em 2018, numa tabela agora liderada pelos países do Sudeste Asiático.
Muitas das políticas que vemos agora serem implementadas em Portugal "partem das políticas aplicadas neste país, onde não há exames e em que os alunos às 15.00 vão para casa". "Mas o que estamos a ver, de PISA para PISA, é que esta mudança não foi boa para a Finlândia. O caso deste país já aconteceu há tanto tempo que agora podemos, de forma segura, correlacionar a queda sistemática no ranking com este tipo de reformas muito parecidas com as que o nosso governo está a fazer agora", alerta Filipe Oliveira.
Já Portugal tem vindo a aumentar no mesmo ranking, tendo pela primeira vez alcançado uma posição acima da média da OCDE em 2015. De acordo com os testes internacionais, Portugal é o país que mais progrediu nos últimos 20 anos a Matemática. "Quando fizemos estes testes internacionais nos anos 1990, ficámos em último, a milhas da média internacional. Foi uma vergonha tão grande, que o governo até nos tirou dos testes, para não se ver a miséria que era. Mas entretanto houve uma progressão muito grande, até 2015", conta Filipe Oliveira.
Contudo, ao nível da Matemática, Portugal estagnou. "Faz-nos perguntar se não será já um efeito desta abordagem", adianta o professor. "Até porque, pela primeira vez na história da participação de Portugal em testes internacionais, os alunos faltaram à avaliação PISA numa percentagem maior do que era aceitável" - o mínimo de participação estipulado é de 80%, mas em Portugal foi de 76%. "Isto acontece, penso, porque há três anos que os alunos e as famílias ouvem que a avaliação não é importante. É normal que haja aqui alguma desmobilização por parte dos alunos", mas "claro que só vamos tirar isto a limpo em 2021, porque aí vamos ter não três, mas seis anos de resultados desta nova filosofia".
Para o presidente da SPM, o governo deve voltar a focar-se na avaliação "que, quando bem utilizada, pode ser um grande aliado da própria aprendizagem". "Dou o exemplo do exame de código: se não fosse preciso os alunos estudarem para uma avaliação, tenho a certeza de que metade dos recém-encartados andaria na estrada sem saber os sinais de trânsito. Somos seres humanos e é assim que funcionamos."
Fonte: DN
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