As palavras chumbo e retenção entraram na esfera léxica da imprensa portuguesa e têm-se equiparado ao jogo do telefone estragado, um famoso jogo que guardo da minha infância. Desenrola-se da seguinte forma: uma palavra ou expressão é dita ao ouvido por alguém, a fonte, e é passada rapidamente ao ouvido dos seguintes elementos do jogo. O último elemento do jogo terá de proferir exatamente o que ouviu. O resultado final costuma ser hilariante pois nunca corresponde à verdade da origem tendo sido a mensagem completamente deturpada e alterada no final. Este jogo divertido continua a ser usado como uma metáfora certeira para várias situações diárias de forma pueril.
Assim estamos nós.
À boa maneira portuguesa, perdão, global, espalhou-se como um vírus nas “redes” a notícia de que não havia chumbos até ao 9.º ano evocando as mais inúmeras notícias e piadas.
Como muito cética que sou a todas as notícias imediatas, abstive-me de qualquer consideração ou comentário (embora existissem piadas francamente boas) sem antes perceber o quão “estragado” estava este “telefone”. Tentei ir à mensagem inicial.
Após algumas leituras atentas não consegui perceber a indignação por dois motivos essenciais: A medida excecional do chumbo já existe desde a década de 90 e a sua evolução tem seguido um “modus operandi” europeu que se tem debruçado sobre o trabalho a desenvolver para evitar a retenção ao invés de usar este mecanismo como única medida educativa perante o fracasso. E pelo que pude apurar, num esclarecimento do secretário de Estado da Educação João Costa: “Muito se tem falado sobre a proposta de elaboração de um plano de não retenção para o Ensino Básico. Alguns tentam reduzir esta intenção a um nível de conversa de café, dizendo que agora se quer que todos os alunos passem de ano, independentemente do que sabem. Ora, nem isto está no Programa do Governo, nem seria séria uma proposta desta natureza. O que se pretende, conforme explicitado, é desenvolver um conjunto de ações que contribuam para melhorar as aprendizagens dos alunos, de forma a que a retenção não seja necessária, uma vez que todos aprenderam.” O que de alguma forma me reconfortou pois temi, por aquilo que li, que existiria uma espécie de lei a proibir expressamente as retenções até ao 9.º ano.
Entrando agora um pouco nos clichés habituais associados a esta área, mas que, vamos assumir, fazem parte da vida (são eles também do senso comum). O chumbo por si só não é, nem nunca poderá ser uma opção (esta será a parte onde entram os recursos mencionados no comunicado do secretário de Estado). A falácia dos recursos não tem a ver com o facto de não serem necessários, são, mas porque é utópico e ingénuo assumir que vai chegar o dia em que os recursos serão suficientes (qual D. Sebastião num dia de nevoeiro). Isto é um facto, por vários motivos: A falta de recursos continua a estar maioritariamente ligada mais às nossas conceções do que propriamente aos aspetos humanos ou materiais. Reitero aqui: de nada adianta existirem mais 10 ou 20 funcionários e salas cheias de equipamentos se continuarmos a trabalhar e pensar dentro de um quadrado interpretativo da escola parado no tempo. Segundo facto: Há muito casos onde, por muitos recursos que existam, há situações que são efetivamente excecionais, o que não quer dizer que se desista ou simplesmente se retenha um aluno, mas porque, em muitos casos aquele ainda não é o momento certo para as mudanças exigidas. Por fim há também questões de memória muscular que boicotam permanentemente todo o processo.
Há pouco tempo numa reunião, alguns professores queixavam-se da impossibilidade de um aluno com dislexia severa conseguir corresponder ao currículo. Uma vez que não conseguia ler ou escrever de forma adequada para um 10.º ano como conseguiriam avaliar? (Às vezes o século XXI fica à porta de muitas salas de aula.) Relembrei que há muitos alunos disléxicos na universidade cuja única adaptação que tiveram de fazer foi a adoção de um computador em substituição do papel e caneta. Falei também da importância do aluno sentir pequenos sucessos para possibilitar uma base mais estável emocionalmente que lhe permitisse, e que permitisse a todos os envolvidos, baixar os níveis de ansiedade. A utilização de um computador nas salas de aula e de instrumentos de apoio (os possíveis tendo em conta a disciplina) são opções absolutamente válidas e enquadradas na lei, mas a nossa memória muscular obriga a um entendimento e uma expressão dentro do nosso quadrado mental confortável. Muitas vezes, diversas vezes, sob a capa da exigência, está um facilitismo conservador.
Pegando neste exemplo, a mudança do papel e caneta como forma quase exclusiva e aprendizagem para o computador ainda exige alguns recursos mentais pouco instituídos. Ninguém pede uma substituição absoluta, mas uma ferramenta de apoio óbvia. Esta é a mesma exigência que se pede a um aluno com dislexia severa que escreva e leia com uma velocidade igual à de outro aluno.
Ao longo do meu percurso nas escolas deparei-me com poucas retenções que acabaram por se revelar a melhor medida para o aluno. Sim existem, são as retenções excecionais. Foram boas decisões porque existiu uma articulação fundamental com a escola e pais e um plano delineado ao pormenor que conseguiu motivar o aluno e todos os envolvidos.
Os pais são uma outra variável que tem de ser tida em conta neste processo de retenção/não retenção. Há pais que não podem pagar explicações ou sequer ajudar nos trabalhos de casa e onde estes trabalhos se podem transformar numa autêntica fonte de ansiedade para todos. Vale a pena? Em muitos casos não enviar trabalhos para casa e dar a volta à situação na escola é uma medida exigente e não facilitista.
Abordemos rapidamente outras variáveis do outro lado da barricada. E quem não quer ser ajudado, apesar de todos os recursos conceptuais, humanos ou materiais? E os pais que interpretam uma lei considerando que mesmo quem não trabalha e se agarra somente a um diagnóstico tem de ter 3 ou 10? Não há retenção ou não retenção que possa salvar barreiras interpretativas que não se colocam em causa. Há que cair para depois lamber as feridas.
A escola é um espaço de desafios complexos e tem naturalmente limites. E claro que estes têm também de ser tidos em consideração.
Maria Joana Almeida
Fonte: Público
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