As dificuldades da linguagem são frequentes, não são imaturidades que desaparecem com o tempo e podem ter um grande impacto, não só no desempenho escolar, mas também na relação com os outros e no desenvolvimento emocional.
Quando uma criança entra no 1.º ano do ensino básico, já tem normalmente um conhecimento implícito das regras dos diferentes sistemas da linguagem (fonologia, semântica, morfologia, sintaxe e pragmática). Se a aquisição destas competências é feita de forma homogénea, embora mais lenta do que o esperado para a idade, falaremos de um atraso simples no desenvolvimento da linguagem. Mas se essa dificuldade for apenas em um, dois ou três dos diferentes sistemas e não em todos? E se elas apenas se tornam visíveis com o aumento na exigência e na complexidade das matérias?
“O humor negro é sobre pessoas negras” (sic)! Quão difícil pode ser extrair o significado além do que é dito nas palavras, na sua leitura literal. “Um meio de transporte é um transporte partido” (ao meio). “Dúzia e meia é o mesmo que meia dúzia.” Os colegas até poderão rir, os adultos pensar que estará certamente a gozar. Mas ninguém reparou que há um problema de descodificação da mensagem, uma dificuldade na sintaxe e uma interpretação demasiado concreta?
As dificuldades no acesso ao léxico podem tornar o discurso confuso. “É aquilo para pôr os pés e para saltar nas lamas” para descrever botas de borracha. “Como é que se chama aquilo que se parece com uma pistola e que é para fazer buracos na parede, ai, como é que é?…” para nomear o berbequim.
A perturbação específica da linguagem (PEL) é algo que afeta a compreensão e/ou a expressão do que é dito e tem uma prevalência de cerca de 7%. E, ao contrário do que o nome indica, não é tão específica assim, já que coexiste frequentemente com atrasos em outras áreas do desenvolvimento, como o défice de atenção, de coordenação motora ou com um maior risco de problemas de comportamento e de ajuste psicossocial.
“Estive de férias nas duas últimas semanas do ano” foi a resposta à pergunta “Então como é que correram as férias?” Respostas a perguntas abertas – “porquê”, “para quê”, “como”, “onde”, “quando”, “o quê” —, podem sair completamente ao lado. Na escola, a avaliação formal será uma tarefa penosa, cansativa e difícil de terminar. Isto porque, para cada questão posta, não será automático perceber a ideia do que foi perguntado ou encontrar palavras adequadas para responder.
Dificuldades assim podem só por si trazer implicações noutras áreas do desenvolvimento. Quando falha o problema da interpretação de estruturas frásicas complexas e da sua transformação em estruturas mais simples para acesso ao significado do que é ouvido ou lido, há lentidão, mal-estar, isolamento e depressão. O relacionamento com outros, a naturalidade e espontaneidade da comunicação são afectados e pode levar outros a pensar que se encontra num mundo muito próprio, com algumas semelhanças com uma perturbação do espectro do autismo. O difícil acesso ao léxico poderá sugerir também falta de estimulação ou défice cognitivo. Muitas foram, em avaliações anteriores, diagnosticadas como autismo ou deficiência intelectual.
Para a criança, estas dificuldades trazem inicialmente frustração, por não perceber o que lhe é dito e, depois, desmotivação e passividade, por desistir de tentar perceber. E rapidamente surgem os chavões, “não se implica no estudo”, “pode ter uma dificuldade cognitiva” ou “nunca está com atenção”.
A pergunta será outra. Como foi possível chegar até aqui, na escola ou no relacionamento com os pares, sem se ter percebido que não é por preguiça, nem por burrice, desinteresse ou extrema distracção que o insucesso aparece? É porque bem ou mal conseguia ir acompanhando o grupo e a turma, fazendo como os outros, aproveitando competências suas de leitura das situações para além do verbal. Mas a certa altura isto já não chega. E muitas vezes surgem também problemas comportamentais. Um estudo de 2007, por Bryan e colaboradores, identificou dificuldades a nível do discurso, da linguagem ou da comunicação em mais de 60% dos jovens que se encontravam sob custódia judicial.
É muito mais o que não sabemos do que o que sabemos sobre as perturbações “congénitas” da linguagem, até porque não são nada homogéneas, ocorrem com uma imensa variedade de manifestações de criança para criança, e se modificam, em cada caso, ao longo do seu crescimento. É obrigatório avaliar precoce e periodicamente a cognição verbal e não verbal, caracterizar as dificuldades encontradas, ensinar cuidadores e professores, prevenir as complicações de ordem emocional e optimizar por todas as formas a comunicação. Nada fácil, sabendo como as coisas podem mudar no próprio com o tempo, que não há dois casos iguais, que à audição não basta ser “socialmente útil”, mas que deve ser apenas perfeita, e que a perturbação em comorbilidade da atenção é a regra, nem que seja pela solicitação intensa a que pode obrigar a navegar numa língua que, apesar de ser a sua, é em parte, para todos os efeitos, uma língua estranha.
Pedro Cabral
Terapeuta da Fala no Cadin
Médico, director clínico do CADIn
Fonte: Público
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