terça-feira, 24 de abril de 2018

A síndrome de Javert e o espírito de Abril


Javert, o icónico inspector do romance Os Miseráveis, escrito por Victor Hugo no século XIX, era um racionalista obcecado em fazer cumprir a lei. Daí a encarniçada perseguição movida a Jean Valjean, um ex-condenado das galés por ter cometido o crime de roubar um pão para matar a fome dos familiares. 

Javert é, porém, também ele o produto das suas circunstâncias. Filho de uma prostituta, nasceu numa prisão, acabou por entrar para a polícia e ascender ao posto de inspector. Temido por todos os prevaricadores, era impiedoso. Afinal, o binóculo pelo qual fora formatado para ver o mundo tinha apenas duas cores: o branco e o preto, os bons e os maus. 

As sociedades capitalistas pós-industriais especializaram-se em criar homens e mulheres à imagem de Javert. E a burocracia tornou-se uma via privilegiada para produzir escravos em série. Afinal, de tão atarefados com resmas e resmas de papéis, estatísticas, relatórios e mais relatórios, os funcionários públicos, em especial, são progressiva, mas, irreversivelmente, anulados pelo cansaço. Depois, os pequenos ditadores que para aí proliferam nos mais variados sectores da sociedade encarregam-se de limar as arestas, com os “safanões a tempo” servidos nos gabinetes: 

“Olhe o seu emprego… Tem filhos, não tem?! Pois seria uma pena ter de enfrentar um processo…” 

É evidente que, no caso de Portugal, o antes e o pós-25 de Abril é incomparável. Para melhor, esclareça-se. Por muitas lacunas que se apontem ao actual sistema tendencialmente democrático é inquestionável que se registaram progressos incomensuráveis. A simples edição deste texto é apenas uma das provas. 

Todavia, importa não deixar de ter presente que a sociedade portuguesa coetânea é atravessada por um conjunto de reinos políticos, financeiros, administrativos, educativos e culturais, nos quais proliferam um conjunto de pequenos ditadores. Travestidos de um linguajar pseudo-democrático, servem-se, no entanto, de um conjunto de mecanismos subliminarmente censórios e repressivos para impor as suas decisões, quase sempre catastróficas para o bem do país, mas excelentes para o seu alucinante trajecto pessoal até ao topo da pirâmide. Sócrates foi apenas um exemplo. 

A burocracia, que ajuda a justificar tantos lugares inúteis para os amigos da situação, transformou-se também numa poderosa via para criar carneiros. Narciso olhava-se ao espelho, os novos funcionários do Estado olham-se cada vez mais envaidecidos em frente aos arquivos pomposamente organizados, para, talvez, um dia os senhores inspectores analisarem. O resto, como quem diz cuidar dos doentes ou cultivar os alunos, são apenas detalhes de somenos importância, a respeito dos quais não se pode perder muito tempo. 

A personagem de Javert dos Miseráveis sempre me fascinou. Cada vez mais revejo nela o percurso contemporâneo de tantos Homens, progressivamente transformados em escravos da lei pelo sistema em que vivemos. Incapazes de compreender as malhas em que estão enredados vislumbram como hereges ou incompetentes todos aqueles que não cumprem essas rotinas divinas. 

Recordar Abril uma vez por ano já não chega. É fundamental ousar viver diariamente dentro do seu espírito. Perseguindo a liberdade e construindo a democracia. O que também implica aprender a relativizar a importância das tarefas burocráticas e ousar erguer a voz perante as injustiças, tal como inúmeros oposicionistas o fizeram ao longo do Estado Novo. 

A prática de uma ética inspirada em Miguel Torga faz-nos falta, mais do que uma simples obsessão pelo cumprimento da lei, tantas vezes formulada por ignorantes ou estrategas da conveniência. A escolha entre Javert e Jean Valjean é uma necessidade. Caso contrário, quando um dia, já na recta final da vida, olharmos para trás, iremos, muito provavelmente, sentir, tal como o inspector Javert, as pernas a tremer perante o sentido da vida. E será tarde de mais. 

As palavras de Pablo Neruda ajudam-nos também a recuperar parte do significado de Abril: 

“Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, 
repetindo todos os dias os mesmos trajectos, 
quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor 
ou não conversa com quem não conhece”. 

Abril faz-nos falta porque os ditadores continuarão sempre a precisar de evangelizar mais escravos. E não há algemas ou muros que resistam à liberdade de pensamento… 

Renato Nunes 
(renato80rd8918@gmail.com)


Sem comentários: