quarta-feira, 4 de abril de 2018

Não deixar alunos para trás?

Em 2001 foi aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos uma lei designada por “No Child Left Behind” que se poderia traduzir em português por: “Não deixar nenhum aluno para trás.” Não cabe aqui evocar as muitas avaliações que foram feitas desta lei, mas sobretudo evocar o seu propósito maior de organizar o sistema educativo de forma a que pudesse servir – e bem – a qualquer e a todos os alunos. Basicamente, este programa procurou identificar um conjunto de conhecimentos e competências básicas que todos os alunos deveriam desenvolver ainda que eventualmente em graus diferentes.

Este propósito de organizar o sistema educativo de forma a servir todos e cada um dos alunos continua a ser – passados que são 17 anos da publicação desta lei – um objetivo ambicioso e um “estaleiro de obras”. Entende-se bem porquê: existem muitos alunos que não conseguem ter sucesso na escola e, por este motivo, reprovam ou abandonam precocemente a escola e a hipótese de a terminar com sucesso. Tem sido repetidamente demonstrado que a escola serve melhor uns alunos do que outros e não se encontra preparada para servir todos, para conduzir todos, sem que muitos sejam deixados para trás. Por este motivo, continua a ser muito radical e ambiciosa a meta que noutro contexto até poderia parecer óbvia e evidente: uma escola deve ensinar e educar todas as crianças que a ela recorrem. Ninguém ignora – professores, pais, comunidades, políticos – que o desenvolvimento da escola a afastou e afasta muito deste objetivo de educar todos os alunos. A forma unificada de transmissão de conteúdos resulta em benefícios para os alunos que aprendem da forma como a escola ensina e em prejuízo dos que precisariam de outras estratégias e metodologias para aprender. Por outro lado, a complexidade e a extensão dos programas leva a que muitos alunos não sejam capazes de acompanhar o galope implacável da cadência dos programas. E, se algum leitor tiver dúvidas sobre isto, passe algum tempo a ler os manuais que são feitos para os alunos do ensino básico e depois pense como é que uma criança de dez ou 13 anos pode entender e responder ao que é pedido.

Perante esta dificuldade da escola para ensinar programas complexos a populações muito diversas, procurou-se instituir nas escolas um sistema de apoio pedagógico. Este apoio procuraria compensar, recuperar os alunos que só por ação das aulas regulares não seriam capazes de atingir a fasquia – lá em cima – que o sistema instituiu; seria, assim, a forma de diminuir o fosso entre o desempenho dos alunos com mais dificuldades e os ambiciosos objetivos dos programas. Muitas expectativas se geraram sobre estes apoios: seriam eles certamente que poderiam fazer com que “nenhum aluno fosse deixado para trás”. Mas o certo é que estes apoios, se quiserem ser efetivamente úteis, têm de ser concebidos e organizados de forma bem diferente do que são feitos agora. Sinteticamente esta diferença poder-se-ia conceber em três pontos:

Em primeiro lugar, um apoio não deve ser uma pura extensão das aulas regulares. O apoio não é para voltar a dizer e a fazer exatamente o mesmo que se pede na aula regular. O apoio, pelo contrário, tem de explorar a sua potencialidade de personalizar a aprendizagem e identificar formas de aprender que devem que ser respondidas com diferentes estratégias de ensino. Conceber um apoio como “mais do mesmo” só serve, em muitas situações, para aumentar o tédio e a desmotivação para aprender. Depois, é importante que o apoio não seja um recurso que é acionado sem que tenham sido exploradas outras formas de o aluno aprender e estar incluído no ambiente de aprendizagem comum a todos os colegas. A primeira frente para combater o insucesso é a própria aula: o seu interesse, a motivação que implica, as estratégias que usa, os diferentes níveis de participação que implica, as diversas formas de trabalho que podem confluir para a aprendizagem de todos os alunos. Remeter alunos para o apoio sem esgotar todas as possibilidades que são exequíveis na sala de aula não contribui, por certo, para que todos os alunos possam aprender. Uma última questão sobre o apoio prende-se com o facto de todos os alunos precisarem de apoio. Muitos alunos usufruem de um apoio “invisível” (pais, centros de estudos, explicações) e outros têm um apoio “visível”, aquele que está no horário e é proporcionado pela escola. Todos os alunos podem precisar em algum momento da sua vida académica de apoios e isso é parte integrante do seu percurso.

Construir uma escola em que nenhum aluno seja deixado para trás é uma questão de Direitos Humanos. Ninguém ignora as dificuldades que se enfrentam para cumprir este desiderato: as escolas confrontam-se com dificuldades que muitas vezes – e no melhor da sua vontade e competência – não conseguem resolver. Por isso é tão importante insistir na relevância das condições de trabalho, na presença de recursos materiais e humanos, na centralidade do trabalho da escola na aprendizagem e na educação de todos os alunos.

Não deixar ninguém – mas ninguém mesmo – para trás é agora, como há 17 anos, um objetivo desafiante e que precisa de visão e apoios para se poder cumprir.

David Rodrigues

Presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial; Conselheiro Nacional de Educação

Fonte: Público

Sem comentários: