Acredita que a mente é o limite. O seu principal objetivo não é superar os outros, avisa, mas antes conseguir o melhor de si. Apresenta uma lista de “ingredientes” que diz serem capazes de melhorar o nosso desempenho cognitivo. A receita para ser mais criativo e tirar o maior proveito das nossas capacidades cognitivas inclui substâncias e ações. Desde o café, espinafres e chocolate à prática de exercício físico, meditação e estimulação cerebral. Lorenza Colzato “falou” (...) numa entrevista, por email, dias antes de chegar ao Porto, onde fará a conferência inaugural do 12º Simpósio da Fundação Bial com o tema “Potenciar a mente”, que começa esta quarta-feira e decorre até sexta-feira, no qual serão discutidos temas como a melhoria das funções cognitivas, a inteligência artificial ou a relação homem-máquina.
Publicou recentemente Theory-Driven Approaches to Cognitive Enhancement (“Abordagens Orientadas por Teoria para Melhoria Cognitiva”), que é também o título da conferência inaugural do simpósio que decorre no Porto. De que trata o livro?
Apresenta uma perspetiva do estado da arte sobre diferentes aspetos do melhoramento cognitivo. “A mente é o limite. Desde que a mente consiga perspetivar o facto de sermos capazes de fazer algo, conseguimos fazê-lo, desde que acreditemos nisso a 100%”, esta é uma citação que gosto de repetir para mim mesma antes de qualquer desafio (físico ou mental) para conseguir o meu melhor desempenho. Na investigação, na docência ou no desporto, o meu objetivo não é superar os outros, mas conseguir melhorar para o meu bem. Para mim, esta é a essência da potenciação cognitiva: o uso de qualquer (legítimo) meio (isto é, jogos de vídeo, estimulação cerebral, exercício físico ou suplementos alimentares) para chegarmos ao nosso melhor.
Estes procedimentos para a potenciação cognitiva têm efeitos diferentes em diferentes indivíduos? Num dos seus artigos refere que o efeito da tirosina (um aminoácido associado ao aumento do rendimento intelectual) na cognição pode depender dos nossos genes…
Há várias possibilidades. Por exemplo, podemos usar suplementos alimentares e/ou smart drugs (fármacos para melhorar o desempenho cognitivo) que atuam através de um aumento do nível de neurotransmissores específicos capazes de potenciar as funções cognitivas sobre as quais agem. Podemos usar métodos de estimulação cerebral não invasivos que atuam em determinadas regiões do cérebro. Ou podemos usar música, meditação ou jogos de vídeo. Há várias investigações sobre os potenciais benefícios cognitivos decorrentes de apreender a tocar instrumentos, usar jogos de vídeo, fazer uma atividade física e sessões de meditação.
Mas não acredito numa intervenção que serve para toda a gente. Nem acredito que as pessoas beneficiem mais ou menos da mesma forma. A eficácia das ações para potenciação cognitiva é frequentemente influenciada por diferenças individuais, incluindo fatores de desenvolvimento neuronal pré-existentes e diferenças de base genética. Desta forma, apenas os programas de potenciação cognitiva concebidos com base nas capacidades, habilidades e necessidades individuais têm probabilidades de sucesso.
Nos seus artigos, fala de vários alimentos que podem contribuir para uma melhoria cognitiva. Desde ovos e espinafres a produtos mais apetecíveis como chocolate e café. Quais são os mecanismos que justificam estes benefícios?
O chocolate preto é rico em GABA [ácido gama-aminobutírico, um neurotransmissor inibidor do sistema nervoso central]. Quando comemos chocolate, aumentamos ligeiramente os níveis de GABA. É muitas vezes chamado “agente natural calmante do cérebro” porque diminui a excitabilidade dos neurónios corticais. Isto explica por que é que as pessoas se sentem mais relaxadas depois de comerem chocolate preto. A cafeína tem o efeito oposto. É a droga com efeitos psicoestimulantes mais consumida no mundo. A cafeína não só nos ajuda a manter acordados como alguns estudos já mostraram que um consumo regular ao longo da vida nos poderá proteger contra a declínio cognitivo e mesmo reduzir a probabilidade de desenvolver a doença de Parkinson.
Com tantas substâncias com diferentes efeitos, será possível (ou desejável) juntar todos os possíveis benefícios dos alimentos num só comprimido?
Não. Somos todos diferentes. E é por isso que não acredito num comprimido mágico que sirva para todos. No entanto, acredito nos benefícios de uma intervenção especialmente concebida para cada indivíduo. Assim, por exemplo, se no seu cérebro não há suficiente dopamina, poderá querer optar por comer comida rica em tirosina (precursor químico da dopamina). Acho que no futuro vamos comer muito dos chamados alimentos funcionais (um alimento a que é dado uma função adicional, normalmente relacionada com a promoção da saúde e prevenção da doença, acrescentando novos ingredientes ou mais quantidade aos que já existem). Atualmente, já se pode comprar água mineral enriquecida com vitaminas ou arroz com GABA.
Pode dar exemplos que mostrem uma aplicação com sucesso de potenciação cognitiva?
Sim. Há algumas provas sobre a melhoria de doentes com demência através de uma terapia ativa com música. Por outro lado, a estimulação cerebral [com impulsos elétricos] por ajudar os atletas a melhor identificar a direção de uma bola atirada na sua direção. Mais: algumas profissões como a de controlador do tráfego aéreo, que exige a interpretação de uma grande quantidade de informação diferente num visor de radar, podem promover a cognição.
Fala da influência dos jogos de vídeo na potenciação cognitiva, especificamente na melhoria das nossas capacidades para desempenhar múltiplas tarefas. Qual será o impacto das redes sociais, como o Facebook, Twitter e Instagram, entre outros?
É uma boa questão. São fenómenos relativamente recentes e, por isso, não há ainda muita investigação sobre isso. Os dados preliminares mostram que estarmos ocupados com várias redes sociais pode ajudar-nos a desempenhar múltiplas tarefas, mas também nos torna mais distraídos. A distracção é um possível custo mental do impacto das redes sociais na nossa cognição.
Como explica esta crescente preocupação com o desempenho cognitivo?
Este assunto tornou-se muito relevante nos últimos anos por duas razões principais. Primeiro, economicamente, o interesse na potenciação cognitiva é sobretudo gerado pelo aumento de custos dos sistemas de segurança social especialmente relacionados com o facto de as pessoas viverem mais tempo nas sociedades ocidentais. Por exemplo, a potenciação cognitiva pode ajudar a atrasar o declínio cognitivo nos idosos, aumentando o tempo em que estas pessoas podem viver de forma autónoma e, assim, reduzir custos. Na mesma linha, o treino de crianças pode acelerar a educação de indivíduos saudáveis e reduzir o risco de desvios comportamentais e patologias, mais uma vez com consideráveis poupanças nos sistemas de saúde e segurança social.
Em segundo lugar, as sociedades orientais e ocidentais estão a ser cada vez mais orientadas para o individualismo, que valoriza a existência e muitas vezes também a importância das diferenças individuais acima das semelhanças e valores coletivos.
Qual é o limite, as fronteiras técnicas e éticas, para a potenciação cognitiva?
A questão ética vai ser muito importante no futuro. A primeira questão tem a ver com a “honestidade” da intervenção. Por exemplo, tem sido referido que os métodos de potenciação cognitiva podem desrespeitar a natureza e dignidade humana, contribuindo para menos autenticidade e uma batota de comportamento, e que pode incentivar uma busca descontrolada pela excelência e perfeição. Estas posições não são tão exageradas como parecem, como demonstra o crescente uso de fármacos, como o modafinil e a Ritalina, por estudantes que querem melhorar o seu desempenho académico. Dentro de pouco tempo, as universidades poderão optar por proibir o recurso a estas drogas ou a admitir que sejam usadas só em determinadas situações, como exames. A mesma coisa aplica-se aos aparelhos de estimulação cerebral comerciais, que estão disponíveis na Internet sem nenhuma restrição.
Mas há mais implicações…
Uma segunda questão encontra-se na tensão entre dois princípios éticos que sustentam a nossa sociedade: a liberdade individual e a igualdade. Enquanto programas de potenciação cognitiva eficazes podem ser usados para responder à expressão da liberdade individual, isso pode chocar com a igualdade. As sociedades apoiam-se cada vez mais na competição, que valoriza o desempenho e capacidades individuais. A melhoria cognitiva pode ter um efeito no estatuto social e económico de alguns. Embora isto possa ser considerado o resultado justo de uma escolha individual, podem existir consequências nas expectativas e padrões da população em geral.
Quando um grupo de indivíduos mostrar que é possível melhorar as suas capacidades cognitivas, a pressão pública sobre os outros pode aumentar para que o façam também. A existência de programas de melhoria cognitiva eficazes pode, assim, gerar ou aumentar a pressão de ser sempre o melhor de todos, de trabalhar mais, durante mais tempo, de forma mais intensa, o que, no final das contas, pode acabar por agravar os problemas que inicialmente se pretendia solucionar. Especificamente, a simples opção de uma pessoa melhorar as capacidades cognitivas pode aumentar a competição social. Pior do que isso, como a probabilidade do lucro destas intervenções de melhoria cognitiva é diferente entre indivíduos, a disponibilidade destes programas pode criar, ou aumentar, as clivagens sociais.
Por outro lado, estas intervenções podem ser usadas para diminuir, em vez de aumentar, as disparidades sociais permitindo que todos, e não só os indivíduos economicamente privilegiados, atinjam o seu potencial cognitivo. Isto não erradicaria a competição mas geraria condições em termos semelhantes.
Falou da Ritalina usada por estudantes que querem melhorar o seu desempenho académico. Mas atualmente vemos também muitas crianças muito novas, nos primeiros anos de escola, com prescrições para este tipo de fármacos. Qual é a sua opinião sobre este assunto polémico?
Se a criança tem um diagnóstico “real” de transtorno de défice de atenção com hiperatividade (TDAH), tomar Ritalina pode ser útil, mas cada caso deve ser considerado de forma individual. Quando o meu sobrinho Linus (diagnosticado com TDAH e autismo) começou a tomar Ritalina com seis anos, eu fui contra. Mas depois falei com ele. Insistiu que queria tomar aquela droga porque fazia com que os seus pensamentos não fossem tão confusos, conseguia relacionar-se melhor com as outras pessoas e sentia-se mais como as outras crianças. Assim, chegámos a um compromisso. Linus está a tomar o fármaco quando vai para escola mas não ao fim-de-semana.
Acredita que será possível melhorar funções cognitivas através de técnicas de edição genética como a tesoura molecular CRISPR/Cas9, que permite um jogo de corta e cola no nosso ADN?
Acredito que a CRISPR/Cas9 será uma ótima tecnologia para curar doenças genéticas e matar células do cancro. O departamento de engenharia genética da Universidade de Leiden, onde estou a trabalhar, está a procurar uma cura para uma doença rara chamada distrofia muscular facio-escápulo-umeral [caracterizada por fraqueza muscular progressiva com envolvimento dos músculos da face, ombro e braço]. Um dos filhos de uma das minhas colegas sofre desta doença e esperamos encontrar uma cura nos próximos dez anos usando a tecnologia da CRISPR/Cas9. No entanto, quanto ao uso desta tecnologia para “fins de melhoria cosmética” temos de ter muito cuidado. Este tema está associado ao que se chama “o lado negro da ciência”. Precisamos de estar em alerta e espero que nunca se chegue tão longe.
Em que é que está a trabalhar neste momento?
Estou a investigar o efeito de microdoses de psicadélicos na criatividade. Neste momento assistimos a um regresso da tendência do uso de substâncias psicadélicas. Incluindo em Portugal, onde este revivalismo também parece estar a acontecer (Boom Festival). Em particular, gestores a trabalhar em Silicon Valley estão a tomar microdoses (doses que são mais ou menos um décimo das quantidades normalmente usadas para uso recreativo, e que se pensa representarem um perfil de baixo risco quando confrontado com o seu potencial benefício) para ficarem mais criativos. Estamos atualmente a investigar se isso é mesmo assim.
Defende que há substâncias e ações que podem potenciar as nossas funções cognitivas. Na sua vida, recorre a estas substâncias, come os alimentos que diz serem capazes de melhorar as funções cognitivas, pratica exercício e/ou meditação?
Acredito que um cientista deve ser “neutro” e não deve necessariamente usar todas as substâncias/intervenções que investiga, pois pode ser influenciado para “querer encontrar um efeito positivo”. De qualquer forma, como de forma saudável, faço muito exercício físico e ioga, mas não faço estimulação cerebral nem meditação, não uso jogos de vídeo nem drogas (cafeína, substâncias psicadélicas). Toda a gente é diferente e deve escolher a intervenção que lhe parece mais adequada. O meu objetivo como cientista é mostrar os efeitos de possíveis intervenções, mas compete a cada indivíduo a escolha da mais apropriada para as suas necessidades.
Fonte: Público
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