Há crianças muito imaturas, com problemas de linguagem ou que simplesmente não estão prontas para começar o ensino formal. O que devem os pais fazer? O primeiro conselho é conhecer bem o seu filho.
Quando a filha de Júlia Vale tinha 3 anos, uma equipa do centro de saúde de Braga visitou todos os jardins de infância do concelho. Quem bateu à porta das escolas foram psicólogos que tinham uma mensagem para os encarregados de educação. Era clara e sem rodeios: os pais não deveriam cometer o erro de matricular os seus filhos no 1.º ano, caso eles só tivessem 5 anos de idade.
O alerta era para os pais dos chamados alunos condicionais, as crianças que completam os seis anos de idade entre 16 de setembro e 31 de dezembro, já depois do início do ano letivo. Estes estudantes só ingressam no ensino obrigatório se os encarregados de educação assim o entenderem e se houver vaga para eles nas turmas já constituídas.
O argumento, lembra Júlia Vale, era o de que as crianças com 5 anos ainda não têm a maturidade emocional para iniciarem as aprendizagens do 1.º ciclo. Hoje, a sua filha tem 21 anos e Júlia, de 55, é a secretária nacional da Fenprof para o pré-escolar. Com as crianças dos 3 aos 5 anos passa um dia por semana como educadora de apoio.
Lembra-se desta história com algum orgulho do que foi feito no seu concelho há tantos anos, mas lamenta que nada tenha mudado na lei que permite que crianças de 5 anos ingressem no ensino obrigatório. “Temos de pensar que o nível de exigência é grande — vão iniciar a aprendizagem da leitura e da escrita — e têm de ter determinadas condições emocionais e físicas para iniciarem essa aprendizagem”, defende a educadora de infância.
Os alunos condicionais devem ir para o 1.º ano?
Hugo Rodrigues, pediatra no Hospital de Viana do Castelo, não tem dúvidas. A regra deveria ser entrar no 1.º ano apenas com 6 anos. As exceções deveriam ser raríssimas. “Os alunos condicionais deveriam ser isso mesmo, condicionais. Só deveriam entrar com 5 anos os casos excecionais. Todos os outros deveriam seguir o seu percurso normal, ou seja, aguardar até ter 6 anos para entrar para o 1.º ano. O problema é que atualmente passa-se exatamente o contrário, o que faz com que a exceção seja aguardar. E isso é completamente errado.”
Helena Gonçalves conta o exemplo dos seus dois filhos, o rapaz nasceu a 23 de dezembro, a rapariga em agosto. “Mais vale não nascer nestas alturas”, diz a rir. “Eu fui logo posta à prova, mas não tinha grandes dúvidas de que o meu filho não ia entrar com 5 anos de certeza.” Quanto à filha, diz que preferia que tivesse nascido uns dias mais tarde, a 16 de setembro. Assim, também ela poderia ter entrado um ano depois, com mais maturidade.
“É uma situação que causa um grande dilema aos pais”, diz a terapeuta familiar, licenciada em Educação Especial e Reabilitação. Por isso, o primeiro conselho que tem para pais de alunos condicionais é conhecerem bem o seu filho porque só olhando para a criança como um todo se pode chegar a uma conclusão informada.
“É preciso ponderar. É preciso ver o interesse dele pelas aprendizagens, se é um menino interessado em ler, se quer saber o que está escrito nos sinais na rua”, explica Helena Gonçalves. “Em termos de linguagem é preciso ver se consegue manter uma conversa, se consegue compreender, se tem acesso a algum tipo de complexidade de linguagem. E há também as questões de frustração, as questões emocionais, se tem uma boa autoestima, se se frustra muito quando é chamado à atenção, se aceita ser corrigido e se consegue lidar bem com isso. E, claro, a relação com os pares”, acrescenta.
Mas ter um filho que é condicional “é sempre um pau de dois bicos”, diz Júlia Vale, porque não basta ponderar, é preciso também dar atenção às questões burocráticas. A educadora de infância lembra que, em termos legislativos, o Ministério da Educação admite a possibilidade de se ingressar no 1.º ciclo com 5 anos, mas apenas se isso não implicar a constituição de uma nova turma. E esta situação pode trazer alguma angústia às famílias que acreditam que o filho vai iniciar a escolaridade obrigatória, mas depois percebem que ela não tem lugar na escola: “É criada uma expectativa aos encarregados de educação que se pode traduzir num flop”, adverte.
O seu colega Manuel Micaelo lembra a mesma condicionante: “Além das questões estritamente pedagógicas, que são as primeiras que se devem pôr, o Ministério depois também põe entraves financeiros. Acontece haver vagas para uns e para outros não, quando as crianças estão em situações iguais. E criam-se algumas injustiças.”
Seja como for, o professor de apoio do 1.º ano e secretário nacional da Fenprof para o 1.º Ciclo, acredita que o melhor para as crianças — haja vagas ou não — é não saltarem etapas. “Fazer as coisas antes do tempo, por norma, paga-se. Não é conveniente dar saltos, as etapas devem vir umas a seguir às outras. E no caso dos condicionais é uma etapa que se salta. Claro que há exceções, mas as crianças só deveriam entrar para o 1.º ciclo quando já tivessem a idade-norma. Os condicionais só deveriam entrar em situações muito específicas e muito bem vistos por uma educadora.”
Júlia Vale concorda. “O tempo vai demonstrando que estas crianças podem vir a ter dificuldades em termos das suas aprendizagens.” E mesmo que o 1.º ano corra bem, a queda pode vir a acontecer mais à frente, quando as próprias crianças já tem consciência de sucessos e fracassos.
As exceções existem: há crianças de 5 com maturidade de 7
Como em todas as regras, também para os alunos condicionais as exceções existem. E não é sequer de crianças prodígio de que se fala, das que mais tarde ouvimos dizer que chegaram à faculdade ainda durante a adolescência. Há simplesmente crianças de 5 anos que têm tanta ou mais maturidade que outras de 7. E, para essas, ficar para trás faria mais mal do que bem.
“Há crianças que se vê que já estão cansadas do jardim de infância. Conheço miúdos que se tivessem ficado mais um ano no pré-escolar, apesar de terem 5 anos, teria sido um grande problema, porque estavam prontos para avançar”, lembra o professor Manuel Micaelo, fazendo questão de ressalvar que nas questões de educação as generalizações nunca são boas. Esse é aliás um tom consensual entre todos os especialistas. Cada criança tem a sua singularidade que não pode ser esquecida. Mas não é a única coisa. A sua envolvente — pais e professores — é também fundamental.
“A primeira grande reflexão que temos de fazer é a prontidão da criança, temos de ver se ela está pronta ou não para iniciar as aprendizagens.” As palavras são de Ana Teresa Brito, doutorada em Estudos da Criança e membro do Conselho de Administração da Fundação Brazelton/Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé e da Família. “Quando pensamos se a criança está pronta ou não, temos de ver se ela é capaz de se sentir entusiasmada, se tem vontade de aprender, se sente a escola como um ambiente acolhedor…” E procurar olhar a criança como um todo implica virar os olhos também para a família, para a escola de onde vem e para a escola para onde vai. “Tudo isso faz parte da história que ela vai construindo.”
Quando a criança está pronta, não deve ser a data do calendário a impedi-la de avançar, na opinião da psiquiatra da infância e da adolescência, Isadora Pereira.
“Se uma criança está bem integrada, se é um menino com uma boa maturidade para os 5 anos, se estiver numa escola que também possa oferecer as condições de apoio de que ela possa vir a precisar, uma atenção mais individualizada, podemos achar que pesando os prós e os contras será preferível ir para o 1.º ano do que ver os amigos passar de ano e sentir que ficou para trás. Além de que as crianças têm sempre a expectativa de que no ano seguinte vão para o primeiro ano. Este menino está pronto? Então pode ir.”
A terapeuta familiar Helena Gonçalves concorda: “Claro que há exceções. Não podemos dizer, de forma absoluta, que um miúdo com 5 anos não está preparado para ir para o 1.º ano, depende muito. Temos de ver que é mais uma idade de maturidade do que uma idade cronológica.”
Isadora Pereira lembra que há crianças de 5 anos mais maduras que outras de 7, e isso não pode ser ignorado na hora de tomar a decisão. Fundamental é olhar também para a escola, perceber se o estabelecimento de ensino terá condições para dar apoio à criança, caso ela venha a precisar dele.
“A criança até pode nunca vir a precisar de um apoio concreto. Mas temos de olhar para a escola: se for para uma com poucos recursos, com turmas enormes, com turmas difíceis, vai ser difícil. Mas se forem oferecidas as condições que suportem uma criança que por si já terá alguma maturidade, o cenário é diferente. Cada caso é um caso. Tem de se atender muito bem ao que é aquela criança, ao seu nível de desenvolvimento, não só cognitivo mas também emocional. Ver como é que ela se vai sentir se seguir em frente ou não. É preciso atender também à envolvente e perguntar o que é que a escola vai poder oferecer a esta criança”, sublinha a pedopsiquiatra.
É a tal conjugação de que fala Ana Teresa Brito. “Necessariamente estão ligadas e têm de estar alinhadas a prontidão da criança, da família e da escola. A fundação da criança começa a construir-se desde o nascimento, esta construção é feita internamente mas é feita de forma sistémica, holística, feita com base nas relações que a criança vai tendo com a escola, com a família e que a vão construindo.”
Olhar só para uma parte da criança não serve. E o exemplo dado é o de uma criança fantástica no raciocínio matemático, mas ainda com muitas dificuldades em relacionar-se com as outras crianças e em fazer amigos.
“Podemos ter uma criança que já sabe ler e fazer contas desde os 4 anos, e isso faz imenso sentido para ela, e vai fazendo esse caminho de descodificação simbólica muito rapidamente, mas do ponto de vista da sua relação com os outros há um caminho ainda grande a fazer. Acelerar, olhar a criança só de um ponto de vista sem a compreender na sua globalidade, não é correto. Estamos a acelerar um processo, enviesado por um olhar que vê apenas um domínio do desenvolvimento”, argumenta Ana Teresa Brito.
As principais dúvidas dos pais: perder um ano e o grupo de amigos
As dúvidas que muitas vezes chegam aos gabinetes dos especialistas nem sempre têm a ver com saber se a criança está ou não pronta. As perguntas não passam necessariamente sobre a maturidade ou a etapa de desenvolvimento em que se encontra. As grandes dúvidas dos pais prendem-se com perder o grupo de amigos e perder um ano no percurso académico.
“Os pais ficam muito neste dilema, principalmente com esta questão de eles se atrasarem. Não sei para quê”, diz Helena Gonçalves, rindo. “Costumo dizer que atrasarem-se só se for para o desemprego. Mas é este o principal medo dos pais, que eles percam um ano, que chumbem, que fiquem retidos”, acrescenta, num tom de voz mais sério.
Esse receio de perder um ano não é simplesmente verdade, explica Helena Gonçalves, enquanto faz as contas de cabeça. “Se os alunos condicionais entrarem com os 6 anos feitos, fazem a sua escolaridade exatamente com a mesma idade dos outros. Acabam o primeiro ano com sete anos, e o ensino obrigatório com 18. Foi o que aconteceu ao meu filho que está agora no 12.º ano. Os condicionais são é os primeiros a fazer anos.”
A pedopsiquiatra Isadora Pereira usa a mesma aritmética e diz que, na vida adulta, já ninguém se vai lembrar se acabou o liceu com 17, 18 ou 19 anos, até porque isso se irá diluir no percurso académico. A diferença será mesmo na altura da entrada e aí não tem dúvidas: “Para os condicionais diria que, por regra, os 6 anos são melhores do que os 5, mais um ano de brincadeira não é algo que perdem, é algo que ganham.”
O pediatra Hugo Rodrigues traz outra variante para esta equação: “Esse é outro erro de pensamento. Não se trata de adiar a entrada dos que têm cinco anos. O que se passa é o oposto, está-se a adiantar a entrada dessas crianças, pois o que era suposto era aguardar até aos seis para entrar para o Ensino Básico. Se respeitarmos este pressuposto não só não estamos a perder ano nenhum, como provavelmente estamos a ganhar muitos anos de maior solidez académica e desenvolvimento pessoal.”
E esta solidez não é de desprezar. O não querer atrasar esse primeiro ano na escola pode representar muitos mais anos perdidos, esses sim de retenção, nos ciclos seguintes. Essa é a convicção do professor Manuel Micaelo: a perda será maior se insistirmos em colocar a criança num nível de ensino para o qual não está preparada.
“Os alunos condicionais são imaturos e vão andar durante bastante tempo com demasiada imaturidade e com dificuldade em acompanhar os outros. Se não se sente logo no 1.º ano, sente-se no 3.º, 4.º, 5.º, e por aí fora. Chegam a determinada altura e não têm maturidade suficiente para acompanhar os conteúdos que são dados”, argumenta. O professor diz que basta olhar para as taxas de retenção do 2.º ano para perceber que é ali que muitos dos condicionais esbarram. Nas salas de aulas, continua, os professores percebem nitidamente quem são os alunos que ainda deviam estar no pré-escolar.
“Às vezes ouço os colegas, nas turmas a que dou apoio, a dizerem: ‘Está ali o bebezão.’ Isto não é dito como insulto, é como diminutivo carinhoso, mas serve para dizer que aquela criança ainda devia estar no jardim de infância porque precisava de fazer uma série de aprendizagens antes de fazer as do 1.º ciclo”, explica Manuel Micaelo.
Por isso defende, uma e outra vez, que não se deve saltar etapas, até porque são os alunos os primeiros a sentir-se mal: “É o bebezinho que está ali, que não se sabe sentar nem estar na sala de aulas e que está só a causar problemas e distrações. Quando eles entram para o 1. º ciclo percebemos logo que há aprendizagens que, ou não foram feitas, ou foram feitas de modo muito supérfluo. E, ao fim de um mês, já sabemos que vai ser complicado conseguirem fazer as aquisições do 1.º ano, porque há uma série de coisas que se saltaram e que não podem ser saltadas.”
O que acaba por acontecer é que ficar retido mais tarde tem efeitos negativos sobre a criança. “É pior ficar retido no 2.º ano do que ficar mais um ano no pré-escolar”, diz o professor. Num caso, explica, basta dizer à criança que ainda não tem idade para ir para a escola dos grandes. No outro, o aluno vai perceber diariamente que não está a conseguir acompanhar os outros, e isso, diz, é um acumular de fracassos.
“Se tivesse ficado no pré-escolar, ele iria fazer as coisas muito melhor do que a maioria dos outros, enquanto que no 1.º ciclo faz tudo muito pior do que os outros. Num lado fica acima da média, do outro fica abaixo. E nas coisas da educação a autoestima é fundamental”, sublinha o secretário nacional da Fenprof para o 1.º ciclo.
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