Pedro tem oito anos e está a fazer de novo o 2.º ano de escolaridade básica na Escola Básica de Esgueira, em Aveiro. Gosta de ir para o “ninho” - um grupo reduzido de alunos que é desviado da turma para que possa, noutro local, ir usufruindo de um ensino mais personalizado - porque “a professora ajuda mais e as coisas tornam-se mais fáceis de aprender”.
Na biblioteca da escola, igual a tantas outras escolas deste nível de escolaridade com um recreio cheio de árvores que garantem sombra e as habituais composições e desenhos nas paredes dos corredores, Pedro lá vai explicando que, depois de um ano a sentir-se “diferente” por estar a repetir o ano, deverá dentro de pouco tempo transitar para o 3.º ano com alguns bons na pauta.
O seu percurso como aluno personifica a trajetória ascendente que esta escola, no concelho de Aveiro, percorreu num espaço de poucos anos em termos de repetências no 2.º ano de escolaridade: no ano letivo de 2013/14, a escola reteve 13,5% dos alunos que frequentavam aquele ano e, no último ano lectivo, as repetências circunscreveram-se já a apenas 3% dos alunos.
Por fim, no ano letivo em curso, “e a ter em conta as avaliações do 2.º período, a escola deverá chegar ao fim com zero repetências”, na expectativa da diretora do agrupamento, Helena Libório. Foi o bastante para que a Escola Básica de Esgueira passasse de caso de insucesso para um dos bom exemplos apontados no projeto Aprender a Ler e a Escrever, apresentado segunda-feira, na Gulbenkian, que procurou aprofundar o problema do insucesso nos primeiros anos de escolaridade.
O insucesso escolar no 1.º ciclo do ensino básico atinge 14% das 3886 escolas públicas deste nível, segundo o estudo coordenado pela ex-ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues. No total, 541 escolas foram classificadas como “escolas de insucesso”. E a Esgueira foi, até há pouco tempo, um destes maus exemplos. “Tínhamos uma percentagem de retenções superior à média nacional”, recorda Helena Libório.
O que se passava?
Quando assumiu o cargo de diretora do agrupamento, em julho de 2013, uma das perguntas que se lhe colocaram foi: “O que é que um aluno ganhava ficando retido? Quando se lhes perguntava o que se passava, os professores iam dizendo coisas como: os miúdos não estudam, têm dificuldades, não aprendem a ler nem a escrever como deviam no 1.º ano, as famílias são por vezes desinteressadas… Eram razões que não tinham que ver com aquilo que a escola podia mudar, isto é, a escola não pode dar um emprego aos pais nem mudar as condições sociais deles. E sabemos, até porque todos os estudos apontam nesse sentido, que um aluno que fica retido acaba quase sempre por sofrer outra retenção ao longo do seu percurso e que acaba por acumular dificuldades. Então ficou claro que o que era necessário, e isso a escola podia fazer, era intervir logo que os alunos começassem a acumular dificuldades.”
A solução não implicou investimentos colossais de dinheiro nem o recurso a nada que não existisse já. “Introduzimos o projeto Fénix, ou seja, começámos a ter em conta a sua metodologia na forma como organizámos as turmas e os apoios educativos, em 2014/15 de uma forma ainda um pouco débil, e consolidámos depois em 2015/16”, descreve Helena Libório.
Na prática, o que mudou? “Cada turma tem dois professores, o titular e um de apoio. Quando o professor titular se apercebe que há alunos que evidenciam dificuldades num determinado conteúdo, chama-os para o "ninho", onde, numa sala diferente e até um máximo de seis horas por semana, estes alunos são ajudados a ultrapassar as respectivas dificuldades. Enquanto isso, o professor de apoio fica com o resto da turma dá continuidade aos trabalhos com os restantes alunos, ajudando-os a aprofundar as matérias dadas.”
E não, não há risco de estigmatização. “Pelo contrário, já me aconteceu ter alunos a perguntar-me se não podem ir também para o ninho porque eles falam entre si e apercebem-se de que ali têm um apoio maior da parte do professor”, garante Fernando Rodrigues, coordenador do departamento e professor de apoio nalgumas turmas. Mas o principal entrave ao estigma é a flexibilidade do método. “Os alunos que entram no ninho não são sempre os mesmos. Vão entrando e saindo à medida que evidenciam e ultrapassam as dificuldades face a determinadas matérias. A lógica é intervir logo que as dificuldades se instalem para impedir que elas impeçam as aprendizagens seguintes”, complementa Helena Libório.
O click necessário
Sendo o 2.º ano de escolaridade o primeiro em que são admitidas retenções no sistema português de ensino, é nesta fase que muitos alunos são travados pelas dificuldades de leitura e interpretação dos textos que vêm de trás. “Se um aluno vai para o 2.º ano sem ter adquirido o mecanismo da leitura”, explica Fernando Rodrigues, “não consegue ler os testes e os textos e isso tem implicações tanto no Português como na Matemática e no Estudo do Meio. E aquelas aulas do ninho, ainda que sejam apenas uma hora e meia, rendem muito com estas crianças, porque é naturalmente diferente ensinar um grupo de três ou quatro alunos”. “Por vezes”, reforça, “é só uma questão de mudar de estratégia pedagógica para se conseguir o click necessário”.
Face aos resultados obtidos, e porque há nesta escola uma “consciência colectiva de que a retenção não é uma inevitabilidade nem a solução para que os alunos façam as aprendizagens necessárias”, como enuncia Helena Libório, a pedagogia Fénix foi entretanto alargada a outros níveis de ensino. E, mais do que isso, a outro tipo de alunos: “Nas turmas em que há uma maioria de alunos bons, os três ou quatro que são muito bons acabam por ficar um bocado estagnados porque o esforço do professor anda em torno do grande grupo. Então decidimos aproveitar a metodologia Fénix para criarmos também ninhos de alunos de alto rendimento e, como se diz na gíria, puxarmos por eles”.
Não se pense que a redução das retenções a zero resultou de uma maior benevolência na atribuição do "Suficiente” necessário para transitar de ano. Tomando como exemplo o desempenho a Português da turma do 2.º A, no 1.º período deste ano letivo, houve 14 bons e muito bons contra apenas seis suficientes e dois insuficientes. “O único segredo aqui está em intervir logo que surgem as primeiras dificuldades, porque estes dois primeiros anos de escolaridade são definidores de todos os anos subsequentes”, enuncia Helena Libório, para recordar as premissas de partida: “A retenção não é uma inevitabilidade nem a solução para que os alunos façam as aprendizagens. É, pelo contrário, geradora de exclusão.”
No caso de Pedro, que se situa agora no grupo de alunos de “Suficiente” ou “Bom”, o salto na leitura foi “absolutamente incrível”, nas palavras da professora Edite Carmo. O aluno, aliás, continua a merecer atenção especial, mas agora no ninho dos alunos de médio rendimento, que a professora decidiu experimentar para “tentar que alguns suficiente passem a bom”. E porque “seria um pouco chato’ continuar no 2.º ano, Pedro garante que já domina as contas de dividir e de vezes. Ao lado, o amigo, Rodrigo, aproveita apenas o microfone para deixar um único pedido: “Era bom termos um campo de futebol maior, insufláveis e um baloiço no recreio.”
Fonte: Público
Sem comentários:
Enviar um comentário