Nada do que hoje reencontro naquela
casa abandonada continua a pertencer a este tempo, pois o contexto que lhe
conferia sentido há muito que se apagou irremediavelmente. Desapareceu a dona
das pedras de granito, a janela de carvalho perdeu a cor e até o menino que lá
entrava, a tactear as paredes em plena escuridão, deixou em grande parte de
existir.
Ainda assim, as fotografias a preto
e branco, as cartas religiosamente depositadas na gaveta, as velhas arcas
brasileiras a testemunharem a aventura transatlântica que tantos portugueses
empreenderam, os tachos e a trempe enferrujada… tudo o que hoje ainda reconheço
naquele santuário me ajuda a marcar um encontro comigo mesmo, com uma parte da
minha identidade. Deste modo, ao interrogar cada fragmento, vou reconstruindo e
desfazendo imagens, onde a luz e a escuridão se materializam em memórias
fugazes e intermináveis esquecimentos, que mais tarde, na busca do rigor, vou
cruzando com as narrações de outras vozes que ainda recordam o passado
partilhado.
Eis aqui a imagem que melhor me
ocorre quando penso no ofício de estudar História: regressar ciclicamente às
casas abandonadas (moradias, mais ou menos familiares, que nunca param de
aumentar dentro de nós), para interrogar incessantemente o que somos, à luz das
nossas preocupações atuais. História: uma narrativa científica feita de luzes,
sombras, silêncios, memórias e esquecimentos, à qual, nos últimos anos, deixei
de dever o pão que me alimenta, mas que, ainda assim, jamais poderei apagar do
meu posicionamento cívico perante o mundo.
Ora, no âmbito das comemorações dos
43 anos da Revolução de 1974, a RTP2 (balão de oxigénio da televisão pública
nacional) transmitiu um interessante programa a respeito das conquistas de
Abril (“Sociedade Civil”, XIII, 26/4, episódio 68). Já na parte final das
conversas, o jornalista confrontou o historiador António José Telo com a
seguinte questão:
– Estamos a ensinar aos mais novos verdadeiramente o que foi o 25 de
Abril? Estamos a passar-lhes os valores de Abril, estamos a ensinar-lhes as
diferenças que existiam com a ditadura e aquilo que é a vida deles agora com a
democracia?
A resposta do académico – autor de
uma prolífica, séria e multifacetada obra, decisiva para compreender o último
século da nossa existência coletiva – fez-me saltar do sofá:
– Todas essas preocupações são
preocupações mais a ver com a política do que com a História. Esta preocupa-se
em explicar o que aconteceu (https://www.rtp.pt/play/p3150/e285778/sociedade-civil).
Devo dizer que discordo em absoluto
desta posição. Afinal, como escreveu Marc Ferro, as primeiras etapas do ensino
desempenham um papel fundamental na “imagem que fazemos de outros povos e de
nós mesmos” (A manipulação da História no
ensino e nos meios de comunicação, Brasil, IBRASA, 1983, p. 11), daí –
acrescento eu – o carácer absolutamente determinante do educador de infância e
do professor do 1.º ciclo na formação do indivíduo. Um tema que, de resto, bem
justificaria outro artigo…
Segundo creio, vários dos nossos
problemas radicam no modo como continuamos a tratar as ciências estruturantes
do pensamento, caso da História, mas também da Literatura e da Filosofia, que
ainda há pouco tempo vi ser apelidada, por uma professora britânica, como o
domínio do “nonsense”, perante a gargalhada geral da plateia.
As sociedades contemporâneas
necessitam de ética e pensamento próprio como pão para a boca, a começar pelos
líderes que governam o que ainda sobra da União Europeia. Pese embora as
profundas transformações a que continuamos a assistir, a Escola continuará a
desempenhar um papel decisivo na construção dos nossos alicerces
civilizacionais. É a partir dela que poderemos continuar a combater de modo
sustentado Trump, Le Pen e demais extremismos, que nos poderão conduzir, num
ápice, a mergulhar no inferno autodestrutivo da guerra total. Estar atento é,
portanto, uma necessidade, para todos os cidadãos.
Mais do que nunca faltam-nos pontes
de sabedoria, nesta era dos muros de aço. E os (denominados) intelectuais
deveriam ser os primeiros a compreendê-lo, descer das torres de marfim em que tantas
vezes vivem enclausurados, erguer a voz e intervir. Por conseguinte, os
historiadores que desprezam problematizar o modo como a sua ciência é
trabalhada nos vários níveis de ensino estão a demitir-se da sua função cívica.
Todos nós temos as nossas casas
abandonadas, esqueletos aos quais somos tentados a regressar. A História exerce
um fascínio tremendo sobre o indivíduo, a começar pela maioria das crianças e
jovens das nossas escolas. Falta-nos garantir que os programas curriculares da
disciplina sejam ajustados à faixa etária dos alunos, que sejam pensados como
um todo (numa perspetiva global, estruturada e articulada entre os vários
ciclos), que a disciplina passe a contar com uma maior carga horária, que as
turmas sejam efetivamente reduzidas (não me refiro às recentes produções de
cosmética que continuam a vir a lume) e, por exemplo, que os professores passem
a ter tempo para estudar e aprender. O que equivale a dizer que é urgente
expurgar o sistema das inúteis burocracias e da kafkiana máquina de fazer
dinheiro em que se transformaram as inúteis formações que para aí proliferam.
Nestes estranhos tempos em que quase
tudo nos faz adormecer e obedecer, a Escola ainda pode continuar a fazer toda a
diferença. Para isso, terá de constituir-se enquanto um jardineiro do
pensamento e do espírito democrático. Ora, um dos primeiros passos concretos
poderia ser o regresso da eleição da figura do diretor por todos os seus pares pedagógicos.
Caso a Escola não consiga adaptar-se,
a mensagem dos Pink Floyd continuará
a ser cada vez mais atual: “We don’t need no education”. E todos os
extremismos terão cada vez mais escravos à sua disposição…
Renato
Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
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