segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Não faz sentido prolongar as ocupações das crianças?


Investigadora defende que é fundamental perceber que os mais pequenos têm ritmos de trabalho diferentes. E que brincar é uma forma de descobrir o mundo.
Acaba de lançar o livro Crianças ocupadas, no qual pretende facultar aos pais um instrumento que lhes permita decidir o que é melhor para os seus filhos. Maria José Araújo, investigadora do Centro de Investigação e Intervenção Educativa da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, adianta que estudar não é repetir o que se fez na aula. E que ensinar a estudar não é fácil. Há requisitos a cumprir, como ouvir e compreender o que as crianças aprendem e perceber como valorizam os conhecimentos. Fez as contas aos tempos e concluiu que as crianças, dos 6 aos 12 anos, trabalham oito a nove horas por dia, o mesmo horário de trabalho de um adulto. Sugere a análise de uma nova metodologia de trabalho. Não é contra a revisão da matéria dada, mas sim contra "o trabalho repetitivo e inútil", a que muitas vezes se chama de TPC. "Brincar é a actividade natural da criança." Brincar é importante. Para descobrir o mundo. Maria José Araújo alerta que, para as crianças, brincar é "um acto muito sério". "Se estivermos com atenção às brincadeiras das crianças podemos perceber a espontaneidade, o empenhamento voluntário, a regularidade e a consistência do acto de brincar", alerta.
EDUCARE.PT: No seu livro, defende que é preciso repensar o modelo de estudo proposto à criança. O que deve mudar?
Maria José Araújo: O meu livro dá conta de um estudo com crianças entre os 6 e os 12 anos de idade. Este modelo de TPC, de que eu sou crítica, baseia-se na quantidade e no exercício mecânico. Fazer TPC não é, exactamente, estudar. Nestas idades, o conceito de estudar é muito confuso e as crianças só o vão percebendo com o decorrer da escolaridade e à medida que se vão confrontando com outras situações e, mesmo assim, tudo isso depende delas. Um dos problemas dos TPC é que dá a ideia de que qualquer pessoa pode ensinar as crianças. Não é qualquer pessoa que ensina a estudar, porque não é fácil e exige formação na área da infância e competências específicas. Exige conhecer as crianças, mas também vontade de as entender, disponibilidade para as ouvir e para compreender o modo como elas aprendem e valorizam o que aprendem. Temos de parar para reflectir criticamente sobre este modelo dominante, ver porque é que não está a dar resultado, ou seja, porque é que as crianças não aderem e não gostam, e mudar as propostas envolvendo até as crianças na definição de uma nova metodologia de trabalho. É necessário perceber que têm interesses e ritmos de trabalho diferentes, têm direito a descansar e brincar e ter isso em consideração.
E: Conclui que as crianças que têm entre 6 e 12 anos trabalham oito a nove horas por dia no seu ofício de aluno, sensivelmente o mesmo horário de trabalho de um adulto. É possível chegar a um equilíbrio?
MJA: Equilíbrio não me parece a palavra certa. Na verdade, o horário escolar para o 1.º ciclo do Ensino Básico está regulamentado pelo Ministério da Educação. Vinte e cinco horas lectivas (Língua Portuguesa 8 horas, Matemática 7, Estudo do Meio 5, Áreas de Expressão e restantes áreas curriculares 5), com "uma distribuição equilibrada ao longo da semana" (Despacho nº 19 575/2006). Esta regulamentação foi, com certeza, pensada e proposta tendo em consideração a idade e as possibilidades de dedicação das crianças a um trabalho formal deste tipo. Não vamos agora mais longe do que a própria legislação. São 25 horas e não 40,45.
Depois do ensino formal obrigatório na sala de aula, as crianças têm direito, no seu tempo livre, a fazer outras coisas. Neste sentido, eu penso que todas as propostas que aparecem para aumentar esta carga de trabalho escolar formal são basicamente desequilibradas e equiparadas ao trabalho dos adultos.
E: Há uma linha muito ténue entre tempo livre e tempo ocupado para as crianças. O que separa estes dois tempos?
MJA: O que eu digo é que o conceito de "tempo livre", na sua relação com o contexto educativo das crianças, tem sido usado na educação sem grande precisão. O contrário de tempo livre não é tempo ocupado, como muitas vezes se diz. Porque o tempo pode ser ocupado com liberdade quando as crianças podem ter uma palavra decisiva na escolha da sua ocupação, e sem liberdade quando as crianças são vítimas de uma imposição ou escolha a que são totalmente alheias. Para tempo não livre já temos as aulas, e é normal que assim seja. Depois das aulas é bom que o tempo livre seja mesmo livre. Não faz sentido prolongar as ocupações e obrigações das crianças de tal modo que não lhes deixamos tempo para brincar e descansar. Para serem crianças...
E: Considera que a sociedade privilegia as opções dos adultos em detrimento da vontade dos mais novos em brincar. Quais os benefícios das brincadeiras?
MJA: Brincar é a actividade natural da criança. No discurso dominante, o brincar, sobretudo quando relacionado com as actividades escolares, aparece quase sempre como actividade secundária e pouco relevante. Mas as crianças brincam para descobrir o mundo, as pessoas e as coisas que estão à sua volta. Se estivermos com atenção às brincadeiras das crianças podemos perceber a espontaneidade, o empenhamento voluntário, a regularidade e a consistência do acto de brincar. É um comportamento que permite o conhecimento de si próprio, do mundo físico e social e dos sistemas de comunicação. Brincar faz parte da cultura da infância e para as crianças é um acto muito sério. Através da brincadeira, as crianças aprendem a escolher, tomar decisões, avaliar, distinguir, decidir. Para um adulto, a leitura de um livro, de um romance, é importante para a sua imaginação, ajuda a pensar e escrever. Para as crianças, o brincar ajuda a ler a realidade social, interpretá-la e a agir sobre ela.
E: Escreve que "se a criança não escolhe a sua brincadeira, já não é ela que brinca". Não devem ser os adultos a orientar as brincadeiras?
MJA: Não.
E: Contra ou favor dos TPC?
MJA: Sou contra o trabalho repetitivo e inútil como o que muitas vezes se propõe às crianças naquilo a que se chama TPC.
E: Escreve que "normalizar os TPC e fazer deles uma prática continuada não parece sensato". Os TPC não são uma boa forma de rever a matéria dada e ajudar a ultrapassar dificuldades de aprendizagem?
MJA: Isso poderá e deverá ser feito na escola. Eu não refiro nunca que sou contra rever a matéria dada ou estudar, muito pelo contrário. O que proponho é que se faça isso na escola e nas condições adequadas, sobretudo porque estamos a falar de crianças pequenas. De qualquer modo, o meu estudo é sobre o que as crianças fazem no seu tempo livre e não sobre as suas aprendizagens formais.
E: Refere que as actividades de enriquecimento curricular (AEC) são pensadas para ser aulas. Há um desfasamento entre o que as crianças querem fazer nesse tempo e os programas definidos pelo Ministério da Educação?
MJA: O que as crianças querem é brincar. No entanto, gostam de fazer actividades e estas podem ser uma forma de brincar. Uma das dificuldades que condicionam as escolhas das crianças nas actividades organizadas, por exemplo nas AEC, é que elas são pensadas para ser aulas, e as opções (música, plástica, etc.) são organizadas por turmas, muitas vezes sem ter em conta os interesses das crianças. Como todas as crianças que ficam na escola depois do horário lectivo, têm obrigatoriamente de participar e as actividades são organizadas em função das idades e anos de escolaridade.
Neste sentido, são na maioria, para o melhor e para o pior, actividades realizadas em colectivo coincidente com o grupo que funcionou durante o período lectivo. Portanto, para as crianças, além do carácter obrigatório, não há diferença substancial entre estas aulas e as outras. Por outro lado, os professores das AEC são formados para dar uma importância muito maior ao saber escolar do que ao brincar. Se não estiverem conscientes do que significa ser criança e atentos ao seu cansaço, o que pode acontecer - ou o que acontece - é que toda a situação fica mais difícil para as crianças e para os professores. O problema pode não ser só as actividades que se fazem com excesso de orientação, mas sim ser essa metodologia prevalecente em todas as actividades. Todas as medidas precisam de ajustes e de um tempo para ver como podem funcionar. É importante fazer avaliações para se perceber como podemos melhorar a qualidade das propostas, mas também do tempo que as crianças passam na escola.
E: Como vê a utilização do computador Magalhães pelos alunos do 1.º ciclo?
MJA: Essencial enquanto passo importante no acesso às Tecnologias de Informação e Comunicação. No entanto, falar de computadores nas escolas do 1.º ciclo é falar de educação e não dos equipamentos. Na verdade, já muitas crianças o usam com bastante sucesso.

Sem comentários: