terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Viver com uma doença rara. Patrícia, Gonçalo e Margarida combatem o estigma todos os dias

Gonçalo Alves estava a entrar na adolescência quando um professor de Educação Física alertou os pais para a quantidade (anormal) de vezes em que caía. Era um miúdo "perfeitamente normal", que gostava de jogar à bola, quando os primeiros sintomas se manifestaram: primeiro as quedas, depois a falta de força e as dores. Mas entre os primeiros e os últimos demorou "cerca de dois anos para que chegasse o diagnóstico final". Aos 13 anos, Gonçalo soube que era portador de atrofia muscular espinal, conhecida pela sigla SMA (Spinal Muscular Atrophy), uma doença rara e degenerativa que em Portugal afeta cerca de 150 pessoas. Esta é uma das doenças raras diagnosticadas no país, que terá, segundo estimativas, entre 600 e 800 mil pessoas a sofrer de algum tipo de patologia rara.

Gonçalo tem agora 23 anos. É um otimista militante, que conta ao DN ter tido a sorte "de nunca deixar de andar, por isso sou um privilegiado". Trabalha desde os 17 anos, já fez várias coisas, e neste momento é operador de caixa num supermercado em part-time, enquanto frequenta o 2.º ano do curso de Marketing no Instituto Politécnico de Lisboa. Desloca-se num carro adaptado e tem contrariado todos os prognósticos que lhe vaticinavam a finitude. Há três anos integrou um grupo-cobaia de um medicamento experimental e continua a fazê-lo, através do Hospital de Santa Maria. "Desde que comecei a fazer essa medicação a doença não progrediu, e só isso já é um grande alento", explica Gonçalo, que, ao contrário de muitos outros portadores da doença, faz todo o seu dia a dia com relativa autonomia. Porém, nota que há "muita coisa com a qual a sociedade não está preparada para lidar. Por exemplo, perceber que nós não conseguimos atravessar a rua de um lado para o outro com rapidez ou subir passeios altos. Um dos maiores entraves com que se depara no mundo profissional é a questão das cadeiras altas. Por outro lado, movimentos mais bruscos limitam o seu dia a dia de trabalho. "Tenho a sorte de contar sempre com o apoio dos meus colegas e coordenadores, que adaptaram tudo no meu local de trabalho para eu poder estar bem e confortável no desempenho das funções. Costumo dizer sempre que sou um privilegiado com as pessoas que tenho à minha volta, incluindo a entidade patronal", relata. Aos 17 anos disseram-lhe que num ano ou dois deixaria de andar. E então não se matriculou na universidade, foi trabalhar a tempo inteiro e convenceu um amigo a acompanhá-lo numa viagem pela Europa. De resto, viajar continua a ser um dos seus objetivos de vida.

Patrícia e o sonho de ser atriz

Patrícia Santos nunca andou. Os médicos descobriram-lhe a doença ainda em bebé, quando tinha apenas nove meses. É portadora de SMA tipo II desde a nascença e cresceu sempre com prognósticos de esperança de vida muito reduzidos. Quando era criança, não julgava chegar à idade adulta. "Naquela altura, em 1993-1994, a minha esperança de vida era até aos 10 anos." Tem agora 29 e é também rara a carreira que entretanto construiu no grupo Santander, já lá vão cinco anos. "Aconteceu graças à Associação Salvador. O queria mesmo era ser atriz, fazer novelas, trabalhar em televisão." Porém, não chegou a ingressar na Escola Superior de Teatro e Cinema por dois motivos: "Primeiro, porque as universidades não dispõem de auxiliares cuidadores, como tive sempre até ao secundário. Depois, uma das disciplinas era Expressão Corporal... não tinha hipótese". "Infelizmente, as novelas ainda não abordam este tema, cujos papéis eu poderia fazer", confessa Patrícia, que depende sempre de terceiros para fazer a maioria das ações da sua vida. No trabalho conta com uma cuidadora a tempo inteiro, que a ajuda, por exemplo, a ir à casa de banho e nas refeições. Em casa é o namorado (com quem vive em união de facto) o seu grande apoio.

Quando soube do projeto da Associação Salvador - que reúne num dia várias empresas abertas a empregar pessoas com deficiência - inscreveu-se. "Fui a esse bootcamp e passado uma semana ligaram-me. Já lá vão cinco anos." Patrícia trabalha na sede do banco, onde diz ter sido "muito bem integrada". A empresa estava equipada com todos os acessos, porque já tinha vários funcionários deficientes, "mas nenhum era tão dependente quanto eu", conta ao DN, para recordar o momento em que passou a contar com uma cuidadora. Ela e outros colegas, entretanto contratados, com semelhante grau de dependência.

Mas nos anos anteriores experimentou o outro lado, aquele que é mais conhecido da maioria dos portadores de doenças raras. "Eu ia às entrevistas e notava que as pessoas ficavam assustadas. Ficavam de dizer alguma coisa e nunca diziam. Porque, na verdade, há um tabu muito grande na forma como se lida com a deficiência. A sociedade associa deficiência a incapacidade cognitiva."

Na infância, lembra-se apenas de um episódio em que se sentiu discriminada na escola. De resto, colegas e professores da escola pública - e regular, sem nunca recorrer ao ensino especial - "foram sempre impecáveis". Sublinha que teve a sorte de contar com uma educação que lhe permitiu "fazer sempre tudo", com a ajuda dos pais e dos quatro irmãos. Terá sido essa ligeireza que lhe permitiu sempre "brincar com a minha situação", encarar os olhares alheios com naturalidade. Aos 16 anos já frequentava discotecas. "Eu nunca senti que a minha doença me impedisse de fazer seja o que for. Posso fazer de maneira diferente, mas faço. A única coisa que me deixa triste não fazer é trabalhar em televisão."

Do Canadá a Portugal, faltam oportunidades

A experiência de Margarida Marques, 47 anos, é outra. É portadora de distrofia muscular das cinturas, uma derivação da atrofia muscular espinal. Licenciada em Sociologia, frequenta agora o mestrado em Gestão e Planeamento em Turismo. Mora em Aveiro, com o companheiro, mas já viveu no Canadá durante duas décadas. É por isso que tem o termo de comparação no que respeita à empregabilidade também. A doença foi-lhe diagnosticada na adolescência, quando tinha 16 anos. A falta de força foi também um dos sintomas.

No país onde morava teve várias experiências profissionais (um call center, um gabinete de advogados, associações de apoio a imigrantes, como administrativa). Ao DN diz que aí nunca sentiu discriminação no local de trabalho. O regresso a Portugal coincidiu com o agravamento da doença, e aqui a experiência não tem sido a melhor. "Existem questões relacionadas com os preconceitos e estereótipos relativamente à capacidade produtiva, contributiva e decisiva da pessoa. Subsiste uma imagem social preconcebida sem nenhum fundamento", afirma ao DN. "Acredito que o mercado de trabalho pressupõe que somos incapazes de desempenhar tarefas e tomar decisões. Ou seja, existe uma lacuna enorme relativa às nossas capacidades." E fala de "uma mentalidade antiquada e que não vê que somos uma mais-valia ou mesmo um fator diferenciador para as empresas. Sinto que os empregadores e os departamentos de RH receiam a possível dificuldade de modificar os espaços de trabalho resultante das barreiras arquitetónicas e outras possíveis adaptações. Também me parece que os apoios são reduzidos. E por isso as empresas não são incentivadas a empregar". O que poderia, então, ser feito? "Em primeiro lugar, seria criar condições que permitissem às pessoas com deficiência exercer as tarefas diárias de um emprego, como dar formação para colegas de trabalho sobre inclusão, com ações internas de integração. Por outro lado, investir em equipamento ajustado, criar espaços projetados com um design universal para o uso e acesso para todos, que fosse para além dos WC."

Em Portugal, Margarida ainda não conseguiu trabalhar. "Prefiro não utilizar a palavra discriminação, mas sim, sinto que sou excluída de um emprego devido à minha situação atual."

O que é a SMA

A atrofia muscular espinal (SMA) é uma doença neuromuscular genética rara caracterizada pela degenerescência de neurónios motores na medula espinal (células responsáveis por regular a atividade muscular, nomeadamente ao nível da força e dos movimentos musculares). Perante um défice destes neurónios, os músculos deixam de receber sinais do sistema nervoso central, o que acaba por resultar na fraqueza e atrofia muscular progressivas (ou seja, na diminuição gradual da massa muscular e da força dos músculos), que, por sua vez, podem dar origem a paralisia progressiva e à perda de diversas capacidades motoras.

Consoante a idade de início da doença e o nível de capacidade funcional, a SMA pode dividir-se em quatro tipos: os primeiros três tipos com aparecimento de sintomas em idade pediátrica e um quarto tipo (que constitui cerca de 5% do total de casos) com aparecimento dos sintomas na idade adulta.

É importante salientar que a manifestação da doença varia de pessoa para pessoa, consoante o tipo de SMA e o seu nível de progressão. Embora o tipo 1 seja o que apresenta sintomas mais graves e o tipo 4 sintomas menos graves, a fraqueza e atrofia muscular são consideradas as manifestações mais comuns e transversais a todos os tipos. Nestes doentes verifica-se ainda que a fraqueza é geralmente igual nos dois lados do corpo e mais acentuada nas pernas do que nos braços. Os doentes com SMA mais severa também apresentam frequentemente dificuldades respiratórias, na mastigação e na deglutição, sendo que em idades mais avançadas podem apresentar adicionalmente escolioses acentuadas.

Fonte: DN

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