Chamavam-lhe “drama queen”, chegou a estar medicada para uma depressão. Sara, como Carolina, precisou de mais de 20 anos para receber um diagnóstico de Perturbação do Espetro do Autismo. No dia em que lhes deram os diagnósticos tudo fez mais sentido: "Estou a tentar desfazer a minha máscara, mas leva tempo"
Carolina Silva tem 24 anos, mas só há três é que lhe foi identificada uma Perturbação do Espetro do Autismo (PEA). “De repente tudo passou a fazer sentido.” Já Sara Rocha, de 32 anos, recebeu o diagnostico aos 29: “Foi uma descoberta enorme, tive que reavaliar a minha vida”. A elas juntam-se outros adultos, especialmente mulheres. Mas porquê?
“O viés de género faz com que os traços particulares femininos de autismo sejam subvalorizados ou confundidos com outras patologias”, explica Adriana Sampaio, professora e investigadora da Universidade do Minho com foco nos processos de neurodesenvolvimento. Assim, surge também um diagnóstico mais tardio: “As raparigas são diagnosticadas significativamente mais tarde do que os rapazes, em cerca de 20 meses.” A perturbação é diagnosticada em raparigas, em média, aos 81,26 meses, ou seja, perto dos sete anos de idade. Apesar de não haver dados sobre isso - uma vez que os estudos são por norma realizados em idade escolar ou infantil – “sabe-se que muitas mulheres só vão receber este diagnóstico mais tarde, no final da adolescência ou início da vida adulta”.
Ao longo de 21 anos, Carolina Silva viveu com “vergonha de ser autêntica.” A confirmação médica de que se encontrava no espetro do autismo fez com que se sentisse “finalmente livre para agir naturalmente.” O nome atribuído ao que sentia funcionou como “uma peça do puzzle.”
Apesar da identificação tardia, Carolina passou a ter um nome para dar à forma como via o mundo. Antes da PEA, já tinha sido referenciada com Perturbação de Défice de Atenção e Hiperatividade. Numa consulta de psiquiatria para esta patologia, a “médica comentou que talvez tivesse autismo.” Contudo, a profissional considerou que Carolina “não seria ‘autista que chegue’.” A opinião da psiquiatra fez com que Carolina mudasse para uma terapeuta com especialização na área.
Agora, o diagnóstico fez com que conseguisse olhar para si mesma fora das normas sociais. “Finalmente tive o à-vontade para fazer uma introspeção acerca de vários aspetos pessoais e intrínsecos à minha noção de “eu”, desde a minha identidade e expressão de género aos meus hobbies e gostos pessoais.”
“O diagnóstico de PEA é três a quatro vezes mais frequentemente em rapazes do que em raparigas”, refere Adriana Sampaio. Este número, na ausência de défice intelectual, pode chegar a um rácio de 10 rapazes para uma rapariga. De acordo com Nuno Lobo Antunes, neurologista e diretor do PIN - Centro para as Perturbações do Desenvolvimento, a PEA é definida através do DSM-5. “Um manual de diagnóstico e estatística que foi criado nos Estados Unidos para definição dos sintomas característicos das perturbações relacionadas com a saúde mental. Este manual defende que a PEA é uma perturbação do neurodesenvolvimento. Tem uma base biológica e inclui sempre dificuldades na interação social e interesses restritos ou necessidade de rotinas ou comportamentos ritualizados/repetitivos”.
“DEPAREI-ME COM O FACTO DE QUE O AUTISMO SÓ FOI INVESTIGADO EM MENINOS”
A professora universitária esclarece que “as mulheres parecem ser protegidas por mecanismos biológicos e hormonais, parecem ser mais empáticas. Possivelmente, devido a mecanismos compensatórios e de utilização de estratégias de ‘camuflagem’ dos sintomas que caracterizam a perturbação”. A camuflagem social, também conhecida como ‘masking’, é um conjunto de estratégias que os indivíduos com a patologia usam para esconder comportamentos próprios da perturbação.
Carolina sente que sempre foi esperado dela um “comportamento de menina”, que envolvia “falar de uma forma passiva e bem-educada, uma postura perfeita, um comportamento exemplar”. Sente “sorte” porque estas expectativas nunca vieram da parte dos pais. “Assim fui tendo espaço para ser o meu “eu” estranho e livre. Mesmo assim, ainda hoje a minha voz muda quando falo com figuras de autoridade. Estou a tentar desfazer a minha máscara, mas leva tempo. Acho que isto é uma coisa que todas as mulheres sentem, mas as pessoas autistas que cresceram como raparigas sentem-no a dobrar.”
Foram os comportamentos mais sociáveis que deixaram Sara sem diagnóstico. Procurava dar um nome àquilo que, segundo a mãe, a “tornava diferente das outras crianças”. Quando era mais nova conseguia fazer “check” nos “traços típicos de autismo”, mas o psicólogo achou que “não podia ser autista porque tinha amigos”. Procurou um diagnóstico em adulta porque leu num livro que “havia falta de investigação focada nos problemas das mulheres”.
“A investigação científica tem avançado algumas hipóteses explicativas do subdiagnóstico de PEA em mulheres. Uma das hipóteses que tem reunido algum consenso na literatura é a de que a PEA no sexo feminino se manifesta de forma diferente da que é observada no sexo masculino”, esclarece Adriana Sampaio. Sabe-se que, “historicamente, o modelo masculino tem sido a referência para as questões de saúde humana”. E, por isso, “tanto os critérios como os instrumentos de diagnóstico têm sido baseados numa apresentação masculina do que é o autismo.”
Com 29 anos, na altura, passou a ter de “reavaliar a vida”. “Nós temos uma perceção sensorial diferente, sentimos o som, a luz, o cheiro de forma diferente e isso tem impacto na socialização. Podemos ter dificuldades de comunicação não verbal, ou seja, haver comunicação errada por não entendermos a comunicação”.
Considera que é uma perturbação que “historicamente tem muita desinformação” e, por achar que “existe falta de conhecimento sobre o que é que é o autismo na vida adulta”, Sara fundou a associação “Voz Autista”. “Eu e mais alguns adultos com autismo achámos que fazia sentido criar uma associação feita por nós. Somos uma associação totalmente gerida por pessoas com perturbação do espetro do autismo, apesar de termos especialistas e pais a trabalhar connosco. O nosso intuito é realmente desenvolver projetos de educação, empregabilidade, saúde e dar apoio a autistas.” A associação pretende passar a mensagem que “cada autista é um autista” e, por isso, pretendem “mudar a perspetiva do que é realmente a PEA.”
Uma das maiores dificuldades que as mulheres com PEA sofrem, segundo Sara, é a sensibilidade sensorial. “Somos por vezes chamadas de drama queens e pedem-nos para parar de fazer birra. Não é uma birra, mas é uma reação neurológica”.
"FICAM BASTANTE MAIS ALIVIADAS AO SABEREM QUE EXISTE UM NOME PARA O QUE SENTEM”
Além da ausência de um tratamento adequado, o diagnóstico tardio pode ter diversas consequências. “Algumas das estratégias documentadas que são utilizadas pelos indivíduos do sexo feminino, como a ‘camuflagem social’, têm um custo. São processos altamente exigentes que as fazem mais vulneráveis a experienciarem emoções negativas. Como é o caso da ansiedade, dos sintomas depressivos, das perdas de identidade e da baixa autoestima, dos comportamentos autoinfligidos e dos pensamentos suicidas”, explica a investigadora Adriana Sampaio.
Devido a esses sintomas, Carolina chegou a estar medicada para uma depressão. "Na altura eu apresentava sintomas de depressão, mas sinto que nunca me foi permitido explorar o que realmente estava a dar aso a esses sintomas. O médico já tinha um plano para mim, e mesmo quando eu mencionei a possibilidade de um diagnóstico de neurodivergência, isso foi desvalorizado. Não parecia autista que chegue.”
“Cada vez mais vejo as pessoas de meia-idade, sobretudo mulheres, mas não só, que me procuram para saber se muitas das dificuldades que têm tido na vida e da sensação de indiferença que têm em relação às outras pessoas, se resulta da possibilidade de terem uma alteração de espectro de autismo. Portanto, muitas dessas pessoas sofrem ao saber que há algo nelas que é diferente dos restantes, sem saberem exatamente o que é que têm de errado, ou se é da responsabilidade delas, ou, enfim, qual a causa das suas dificuldades. E ficam bastante mais aliviadas ao saberem que existe um nome”, refere o neurologista Nuno Lobo Antunes.
Os sintomas acabam por ter uma “manifestação única nas mulheres, sobretudo naquelas que apresentam discurso mais fluente e melhores capacidades intelectuais, comunicativas e sociais”, explica a professora universitária. Isto pode levar a que, para além do diagnóstico tardio, este esteja incorreto ou não aconteça.
Com o diagnóstico correto, Carolina destaca a importância que as “rotinas” passaram a ter no seu dia a dia. “Tenho algumas dificuldades em perceber as necessidades básicas do meu corpo: muitas vezes esqueço-me de comer porque raramente sinto fome. O mesmo acontece com dormir e idas à casa de banho. Se não fizer um esforço para me lembrar, estas necessidades passam ao lado.”
Mas as dificuldades não ficam por aí. “Aquilo que sempre me afetou mais, e continua a afetar, são as questões sensoriais: certos tecidos fazem-me ficar enjoada, certos ambientes com barulho e/ou luz intensa fazem-me desesperar.” Quando era mais nova sentia “dificuldade em ler situações sociais” e a relacionar-se “com pessoas neurotípicas” (pessoas sem nenhum distúrbio neurológico). Agora assume ter “truques” que a ajudam a “navegar pelo mundo.”
Fonte: Expresso por indicação de Livresco
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