“Os portugueses podem e devem considerar-se seguros”, diz Marcelo Rebelo de Sousa, após o impedimento do presumível atentado à FCUL que ocupou os media nos últimos dias. Mas a comunidade portuguesa de autistas não tem as mesmas razões para estar tranquila. Uma vez mais, pessoas autistas e as suas famílias tiveram de assistir à associação nefasta e estigmatizante da sua condição a comportamentos agressivos e anti-sociais.
Tendo em conta que a população autista é desproporcionalmente sujeita a violência e abusos de todo o tipo ao longo da sua vida, e tal ser reconhecido pela comunidade clínica e científica, a associação do autismo a comportamentos violentos promovida pelos media constitui em si mesma, além duma gigantesca campanha de desinformação, uma forma de estigmatização em que as pessoas autistas se tornam num outro monstruoso, contra quem toda a violência é justificada.
É este enquadramento que motiva todas as tentativas de curar, corrigir e erradicar à nascença uma condição que faz parte da diversidade humana. “Agora muitos pais vão resistir a diagnosticar as suas crianças ou a revelar publicamente os diagnósticos”, lia-se numa rede social. Todos os passos dados no sentido da inclusão social de pessoas autistas por parte das associações de autismo têm agora de responder a este espaço público enviesado pela produção e reprodução continuada de estereótipos.
“Conheceste um autista, conheceste um autista”, repete Rick Glassman, actor e comediante autista, para falar da série As We See It. É verdade. Mas o estereótipo negativo do autismo, associado principalmente a rapazes, cala as nossas vozes e põe-nos, mais uma vez, a falar sós.
A falta de voz de autistas nos media portugueses é gritante pela utilização dos mesmos moderadores políticos para falar de uma comunidade a que não pertencem, o que, claro, origina mal-entendidos e desinformação passada a milhões de portugueses. São também convidados profissionais que não têm qualquer experiência com autistas adultos, a defender ideias ultrapassadas, que não são apenas erradas, mas perigosas.
Ser autista não é crime, mas, segundo as estatísticas, somos mais vítimas.
No meio da histeria a nível nacional, esqueceram-se que existiam autistas no dia do eventual atentado no local, como tivemos a oportunidade de saber. Estes portugueses não só têm agora que lidar com o medo que o evento lhes causou, mas com o medo criado pela comunidade onde se inserem, por terem a mesma condição que a pessoa que iria ser o agressor e, por tal, serem considerados inerentemente perigosos.
No próximo ano assinalam-se 80 anos desde que o autismo foi diagnosticado por Kanner pela primeira vez. A ideia de que profissionais de saúde sabem tudo sobre o autismo, não só é errada, como continua a remover-nos como especialistas das nossas próprias experiências.
Convidamos a ouvirem e a partilharem vozes autistas, como no Monólogos de Mulheres Autistas – uma iniciativa do Centro de Estudos Sociais (CES) e da Associação Portuguesa Voz do Autista (APVA), onde, como estamos habituados em locais públicos, fazemos monólogos sobre as nossas experiências. Esperemos que um dia se torne uma conversa. Convidamos também a conhecer a APVA, uma associação de auto-representação portuguesa, que dá casa segura a autistas para desenvolverem os seus projectos para a sua própria comunidade e, com isso, poder ter voz na mesma.
A voz de cada pessoa autista é única e alargar o espectro do autismo é alargar o espectro da humanidade. Precisamos de recursos onde a comunidade de pessoas autistas se possa reconhecer a si mesma, aberta às pessoas que nos acompanham ao longo da vida. Claro que diversos profissionais podem ir lá espreitar. Sem o entendimento mútuo entre pessoas com cérebros diferentes, existe uma paz podre, que explode a cada novo incidente. Que possamos caminhar juntos para maior conhecimento, respeito e aceitação da diversidade humana, em detrimento da sua estigmatização e normalização.
Sara Rocha e Rita Serra
Fonte: Público
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