Nas últimas décadas, a autoestima tornou-se num dos conceitos mais populares da psicologia. Milhares de artigos, livros e oradores motivacionais informam-nos que devemos gostar de nós próprios e que, se não gostarmos, podemos aprender a fazê-lo. Acontece que estes conselhos, presumivelmente sensatos, podem estar a criar mais problemas do que aqueles que resolvem.
É preciso dizer que o conceito se tornou tão falado por boas razões: a investigação mostra que as pessoas com uma boa autoestima são mais felizes, mais bem-sucedidas, têm melhores relações interpessoais e menos probabilidade de ficarem deprimidas. Mas, se gostar de nós próprios é saudável, o dever de o fazer e o caminho para lá chegar podem não ser.
A definição de autoestima parece bastante inofensiva à superfície: ter confiança no próprio valor. Mas como é que definimos habitualmente o nosso valor? “Desde cedo vamos formando uma avaliação de nós próprios a partir daquilo que vão sendo as mensagens dos outros sobre nós e a forma como nos fazem sentir”, explica a psicóloga clínica Carla Cunha, professora da Universidade da Maia, onde coordena o mestrado em Psicologia Clínica e da Saúde. Ou seja, valorizamo-nos “na medida em que ‘encaixamos’ ou não na prescrição social” e “nas expectativas dos outros, que depois se tornam nossas”.
Estabelecemos então, desde novos e quase sempre sem dar conta, uma série de condições para nos sentirmos dignos de valor: ser filhos obedientes, amigos disponíveis, bons profissionais, companheiros pacientes, pessoas com sentimentos nobres. Condições, convenhamos, pouco compatíveis com a realidade do que somos tantas vezes: filhos que dão preocupações, amigos demasiado ocupados, profissionais que cometem erros, companheiros irritáveis, pessoas que sentem raiva do próximo. E o que é que acontece nessas alturas em que não cumprimos com as expectativas? Temos menos confiança no nosso próprio valor.
“É por isso que o conceito de autoestima pode ser prejudicial: porque implica corresponder a uma condição ou exigência ”, refere a psicóloga clínica e psicoterapeuta Cláudia Madeira Pereira. “Ficamos dependentes dos julgamentos e avaliações acerca dos nossos ‘sucessos’ ou ‘insucessos’ por comparação – seja com outras pessoas, seja connosco próprios no passado”, detalha.
Paradoxalmente, quando nos dizem insistentemente que ‘devíamos’ ter autoestima, está em jogo a mesma dinâmica: sentimos que acreditar no nosso valor é, em si, uma condição para termos valor. Parece uma subtileza de linguagem, mas é um problema profundo: a valorização social da autoestima tornou o amor-próprio em mais um bem que devemos possuir a todo o custo. Que nos sentimos obrigados a ter. Então, somos infelizes se não o temos.
Nós e os outros
Nas últimas décadas têm surgido vozes que apontam para a promoção excessiva da autoestima, não apenas como uma fonte de disfuncionalidade individual, mas também social, nomeadamente, como uma das origens do narcisismo e da desvalorização dos outros.
Porque a mesma sociedade que valoriza a autoestima, também valoriza a competitividade e o sucesso. “Somos seres sociais, produtos de sociedades que estão muito assentes em mecanismos de comparabilidade social, em que o estatuto e o valor individual se medem por aquilo que se tem e pelas experiências às quais conseguimos, ou não, aceder – especialmente quando nos comparamos com os outros”, sustenta Carla Cunha. E comparamo-nos com os outros não é novidade, mas a forma como o fazemos é, vivendo nós na era de redes sociais. “Escolhe-se seletivamente o que se mostra das nossas vidas e somos expostos a momentos particulares, também eles selecionados e editados, por isso estamos provavelmente mais expostos do que nunca aos efeitos da comparabilidade social.”
Na comparação com os outros, para sentirmos que temos valor, frequentemente, precisamos de nos sentir melhores ou especiais. Mas, como defende nos seus livros e apresentações Kristin Neff, investigadora e autora na área da autocompaixão, da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, ser mediano é hoje considerado um insulto: ninguém quer ser um profissional mediano ou uma mãe mediana. Mas estarmos todos acima da média é, por definição, uma impossibilidade.
Isso leva-nos a arranjar atalhos pouco saudáveis para resolver essa dificuldade. Em vez de suportarmos a dor de estar aquém das expectativas, criamos mecanismos de distorção da realidade: um é valorizarmo-nos em excesso, caindo no narcisismo, o outro é depreciando os outros. “A extrema importância que se tem dado ao aumento da autoestima tem contribuído para um fenómeno psicológico que se manifesta na necessidade, geralmente inconsciente, que as pessoas têm em julgar negativamente ou diminuir outras para se sentirem superiores ou melhores consigo próprias”, constata Cláudia Madeira Pereira. Isto é um problema individual, mas também social, porque na origem deste mecanismo estão fenómenos como o preconceito, o bullying e a intolerância.
“Ainda faz sentido refletir sobre os aspetos da autoestima, dada a forma como este conceito penetrou os nossos discursos quotidianos, tornando-se uma referência também para as pessoas que atendemos em consulta”, defende Carla Cunha, “quanto mais não seja, será útil para refletir com as pessoas acerca da forma como se autoavaliam e como foram formando o cálculo do valor próprio”. No entanto, a professora da Universidade da Maia e formadora da Sociedade Portuguesa de Terapia Focada nas Emoções, explica que, de acordo com vários modelos de psicoterapia e intervenção psicológica mais recentes, que subscreve, prefere outros construtores como a autoaceitação ou a autocompaixão. “Porque enfatizam mais a relação connosco próprios e direcionam-nos para aquilo que precisamos de mudar internamente.”
Aceitar para mudar
Ao consultório de Cláudia Madeira Pereira chegam com frequência pessoas que procuram ajuda por não se sentirem bem com características físicas, de personalidade, com pensamentos, sentimentos ou situações que veem como fracassos. “Embora as pessoas procurem ajuda para mudar todas essas condições com a finalidade de se sentirem melhor consigo próprias e aumentar a sua autoestima, na verdade, precisam primeiro de aprender a acolher-se e aceitar-se, tal como são”, garante.
Na verdade, a maioria das teorias psicológicas têm mostrado que é a aceitação – e não a autoestima – uma das condições essenciais da mudança. Carl Jung, o fundador da psicologia analítica, dizia que “aquilo a que se resiste, persiste”. Carl Rogers, um dos pais da terapia humanista, assegurava que “o curioso paradoxo é que, quando nos aceitamos como somos, podemos finalmente mudar”. E no centro da Terapia Focada nas Emoções está a frase “não se pode sair de um lugar sem antes lá ter chegado”.
E aceitar significa conseguir pôr de lado a ideia de julgar o valor. “A autoestima é o nível de avaliação positiva que atribuímos a nós próprios, (…) a autocompaixão não é um processo avaliativo, mas sim de uma atitude e de uma forma de nos relacionarmos connosco próprios, baseada na empatia, aceitação e bondade, sem julgamentos, avaliações ou comparações”, esclarece Cláudia Madeira Pereira. “Desta forma, não precisamos de nos sentir superiores ou melhores do que as outras pessoas, ou do que nós próprios no passado, para nos sentirmos bem connosco.”
É isso que nos permite mudar: só com a tranquilidade de aceitar o que somos – agora – podemos avançar para o que queremos ser. “A autocrítica e o julgamento negativo deixam a nossa mente deprimida, insegura, ansiosa, irritável e revoltada, o que destrói a motivação e a resiliência necessárias a qualquer mudança positiva e sustentável a longo prazo”, resume a psicóloga.
Então, voltando ao princípio: milhares de artigos, livros e oradores motivacionais informam-nos que devemos gostar de nós próprios e que, se não gostarmos, podemos aprender a fazê-lo. O que não dizem é que isso implica, em primeiro lugar, estar em paz com todos os momentos em que não gostamos.
Sofia Teixeira
Fonte: Notícias Magazine
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