É permanente a discussão sobre as opções educativas estruturantes do sistema de educação. Ainda bem. Isso reflete a centralidade da educação na sociedade. Os debates e controvérsias tendem a colocar duas posições em confronto: uma, que classifico como mais progressista, defende a modernização da educação e das suas funções com vista a responder aos requisitos das sociedades do presente e do futuro; outra, mais conservadora, orienta-se para a manutenção de certos valores educativos profundamente inscritos nos padrões educativos dominantes e nas preferências de muitas pessoas, nomeadamente a respeito do que se deve aprender, de como se deve ensinar e como se avaliam as aprendizagens. Ambas as posições são independentes de preferências e ideologias políticas.
Esta clivagem incide num vasto leque de matérias: currículos, modalidades de educação secundária, programas, metodologias pedagógicas, objetivos de aprendizagem, infraestruturas e equipamentos, recursos humanos docentes e não docentes e, naturalmente, métodos de avaliação dos alunos e das escolas. Está na ordem do dia, entre outros, este último tópico, a propósito dos exames do secundário. É esse assunto que aqui visamos.
De um lado defende-se a redução do número de exames ou mesmo o seu fim, já que eles capturam o trabalho de professores e alunos, desviando-os do fundamental, a qualidade do trabalho e das aprendizagens nas escolas. Além disso, por razões diversas, que vão da possibilidade de beneficiar de explicações à vantagem relativa dos alunos com maior “capital cultural”, os exames criam desigualdade de oportunidades de acesso ao ensino superior.
Do outro lado, têm sido utilizados dois argumentos: 1. os exames são fundamentais porque são a melhor forma de avaliar a preparação e os conhecimentos dos alunos, sendo a redução do seu peso apenas um passo do que afirmam ser o facilitismo e a perda de qualidade do ensino, o que implica a reivindicação de mais e mais difíceis exames; e 2. os exames são a melhor forma de comparar o desempenho de diferentes escolas e, assim, contribuir para a redução das desigualdades. Estas duas posições não costumam andar juntas, mas o resultado é o mesmo.
O problema de ambos os argumentos é que se esquecem da questão fundamental: o que é que os exames avaliam, afinal? Na verdade, como é amplamente reconhecido em pedagogia, apenas duas coisas, a capacidade de os alunos memorizarem conteúdos que esquecem pouco depois do exame, por um lado, e o treino que têm na resposta a testes com formato semelhante, por outro lado. Isto é, a posição conservadora é contraditada pelo facto de ser cada vez menos necessário decorar matérias num mundo em que elas estão acessíveis, de modo amplo e preciso, à distância de um clique. Torna-se assim inútil um ensino baseado na transmissão de conteúdos científicos e humanísticos específicos e, na verdade, a comparação de resultados entre escolas é apenas a comparação entre resultados amplamente inúteis.
A escola deve ser capaz de redirecionar a sua ação para o desenvolvimento de outras competências para além da memorização (sem porém a descartar), como sejam a capacidade de procurar, escrutinar e analisar informação, o pensamento crítico, a curiosidade, o espírito inovador, a operacionalização dos saberes (na investigação, no trabalho de projeto ou no treino de uma profissão), a sensibilidade artística e o desenvolvimento do gosto estético, o sentido de cooperação e trabalho em equipa, entre outros requisitos de qualificação no quadro da sociedade digital.
O problema não é, assim, apenas saber para que servem os exames, mas para que servem os cursos científico-humanísticos. Não são apenas os exames que são inúteis, são também os cursos que ainda constituem a modalidade mais frequentada no ensino secundário. Inutilidade total? Não. Obviamente, eles são muito úteis às universidade e ao seu comodismo.
O fim dos cursos científico-humanísticos implicaria que o ensino superior encontrasse a sua própria solução para o recrutamento, em vez de parasitar um nível educativo que tem importância em si mesmo, e não apenas como trajeto. E talvez descobrissem que, afinal, teriam tudo a ganhar se em vez de candidatos treinados para o marranço, tivessem candidatos treinados para pensar e investigar. A escola, incluindo a universidade, não pode continuar a ser orientada, principalmente, para a memorização de conteúdos científicos e humanísticos que os alunos despejam em exames. Mais tarde ou mais cedo, seria preferível mais cedo do que tarde, terá de mudar para se constituir numa instituição em que se podem outras competências mais importantes.
É claro que estas palavras podem ser classificadas como irrealismo, quem sabe até se fruto de loucura. Ainda mais do que a ideia, defendida em 2009 contra o “establishment educativo”, de que Portugal podia aceitar confortavelmente a meta de 10% de Abandono Escolar Precoce proposta pela União Europeia e estabelecer sem receio a escolaridade mínima obrigatória até aos 18 anos ou à conclusão do secundário. Uma “loucura” que, afinal, veio a revelar-se tão realista. Aliás, loucura é persistir no erro enquanto nos digladiamos em ferozes confrontos sobre o que é mau e o que é ainda pior.
Luís Capucha
Fonte: Público
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