A entrada para a entrevista é feita ao som do piano, Noturno op. 9 n.º 2, de Chopin. Não é música ambiente do hotel, é Nuno Maulide que ensaia ao piano. É uma das suas paixões, só não é profissão porque é "solitária".
Formou-se no Instituto Superior Técnico e depois seguiu pelo mundo até se fixar na Áustria, há oito anos. É professor de Química Orgânica na Universidade de Viena. Elegeram-no Cientista do Ano em 2019, recebeu depois o prémio Lieben e, em 2020, ascendeu à Academia das Ciências da Áustria. É o único estrangeiro não germanófono e o mais novo, tem 41 anos. Veio a Portugal para a apresentação do livro Como se Transforma Ar em Pão? Estas e Outras Questões a Que Só a Química Sabe Responder, que escreveu com a jornalista de Ciência Tanja Traxler. Na forja está um segundo, este sobre cozinha molecular. Mas com coisas simples.
Ao ler o livro, fica-se com a ideia de que tudo é química.
É a ideia correta. Mas quando se ouve a palavra "químicos", há uma reação negativa.
Há químicos bons e maus?
Não se deve dar uma conotação positiva ou negativa aos compostos químicos porque tudo depende do uso que lhes dermos. A água é um químico bom, nós somos 70% água, mas morremos se bebermos quatro litros numa hora, os órgãos começam a falhar. Muitos compostos químicos não são bons nem maus, dependendo do seu uso, podem ter consequências boas ou más.
Como o plástico, a descoberta do século XX e que caiu em desgraça?
E continua a ser a maior descoberta da química no século XX, revolucionou a sociedade e a maneira como olhamos para os materiais. Só tínhamos a madeira e o metal, hoje em dia, temos coisas que parecem madeira e metal mas que são polímeros [plásticos] e compósitos, e que são utilizados de formas muito diferentes. Não refletimos sobre os problemas que ocorreriam quando, depois de os utilizarmos, os deitamos fora sem pensar duas vezes.
A solução está na reciclagem.
Se pensássemos que não se decompõe tão facilmente, que não é biodegradável, teríamos evitado muitos problemas. Todo o plástico tem implicações no ambiente. Tem de ser reutilizável ou ter mecanismos de o reciclar de forma apropriada.
Sabia-se quando foi inventado?
Não se sabia porque não se quis estudar, queria fazer-se coisas rapidamente e ganhar dinheiro. Não houve pressão nem da sociedade civil nem das entidades reguladoras para se fazer um estudo sobre o que acontece ao plástico quando vai para o aterro sanitário. Sem as embalagens de plástico, dois terços da produção mundial de alimentos estragava-se sem chegar ao seu destino. Quando eu era mais novo não havia todos os dias arroz no supermercado, massa, todos os frutos, não havia capacidade para preservar esses alimentos e os fazer transportar. As pessoas estavam limitadas à produção local ou regional e hoje em dias os supermercados estão cheios porque há uma rede de transporte que precisava das embalagens de plástico para se poder colher, empacotar e transportar.
E o esferovite ou a cortiça?
São polímeros, cai tudo no mesmo saco. Poder-se-á perguntar se não se podem encontrar outros materiais, mas terão outros problemas e é demitirmo-nos da nossa responsabilidade social. Devíamos pensar em usar de maneira diferente.
Qual é o grande problema atual?
Ainda é o plástico mas temos grandes problemas sobre como vamos lidar com o CO2 [dióxido de carbono], que não tem propriamente uma solução óbvia. Ao fim de 10/15 anos de investigação intensiva ainda não há soluções novas que sejam economicamente viáveis. E também temos o problema da energia, o consumo continua. Acho que ainda há espaço para as energias solar e eólica crescerem e são soluções que a química pode providenciar.
Como é que surgiu este livro?
Foi na sequência do prémio de Cientista do Ano, atribuído por jornalistas da área, e a editora abordou-me. Percebeu que: a) a química tem má reputação; b) faz falta alguém que explique as coisas da química de maneira simples. Foi um desafio muito atrativo.
Comunicar química tem sido uma preocupação?
Sempre tive essa vontade. Viajo muito e converso com as pessoas. Quando lhes digo que sou de química, dizem que detestavam, que não percebiam nada na escola. Não é assim tão complicado, tão difícil, precisa é de ser explicado de uma maneira que cative. Na escola o grande problema é as crianças não entenderem para que serve a química. Compreendo que há conceitos abstratos e que não é possível explicar a utilidade em todos os casos, mas o livro mostra que há tanto que se pode explicar recorrendo ao dia-a-dia.
Em criança, já se interessava por estas questões?
Sim, para tentar explicar ou perceber o mundo que me rodeia, não tinha era as ferramentas.
Os professores de Química ajudaram ou antes pelo contrário?
Tive sorte, tive bons professores de Química e de Matemática. No Instituto Superior Técnico tive a melhor professora de Química Orgânica, Matilde Marques, e que me encaminhou quando quis sair da minha zona de conforto.
A capacidade de fazer do complicado simples é natural ou trabalha-se?
É natural, sempre quis dar aulas, não pensava em ser químico, queria ser pianista. Lembro-me de ser pequeno e pegar num livro, até em inglês sem saber falar, pegava nas bonecas da minha irmã, metia-as num cantinho e dava-lhes aulas. Fui fazer ginástica no Sporting e queria dar aulas de ginástica, fui tirar a carta de condução e queria ser instrutor. Estudei piano e fui professor de piano, e ainda sou, sempre quis ensinar. Gosto de pegar em conceitos difíceis e de os explicar de uma forma acessível ao meu interlocutor.
Porque é que não se fixou no piano?
Porque o estudo da música é muito solitário, são horas e horas. Quando um hobby se torna uma profissão, oito horas por dia, todos os dias, o prazer do hobby desaparece.
Pertence à Academia das Ciências pelo poder de comunicação?
Não, porque em alguns círculos ainda há o estigma de que quem comunica ciência é porque não é bom na investigação. Está a mudar, mas acho que tem que ver com o reconhecimento pelos pares, fui nomeado pelo grupo de Química.
Sente que os cientistas portugueses são reconhecidos?
Portugal terá a suas limitações, o que também tem que ver com a falta de financiamento. Não se pode ter num financiamento de 1% do PIB para a ciência e querer ter o mesmo resultado do que num país com um financiamento de 3%, não há milagres. As barreiras têm diluído com a UE, somos todos cientistas europeus. Eu não insisto em ser considerado um cientista português, ou viver na Áustria, sou um cidadão do mundo.
Porque é que emigrou?
Emigrei muito antes, fui para a Suíça seis meses, depois para a Bélgica, os Estados Unidos e a Alemanha. Emigrei quando achei que me faltava estar num ambiente em que não soubesse muito. Quando se fica muito tempo num sítio tem-se a tendência para estagnar e a mim faz-me falta sair da minha zona de conforto. Saí na perspetiva de aprender.
Tem aprendido muito?
Muito. Só mudar de gabinete já se aprende. Ir para um ambiente diferente, com uma organização diferente, só esse aspeto já faz evoluir. A nossa mudança da Alemanha para a Áustria, em 2013, fez-me colocar tanto em questão os projetos de investigação. Um ser humano é de hábitos e é muito fácil habituar-se.
Fala no seu grupo de investigação.
Sim, estava muito bem no Instituto Max-Planck, poderia até ficar permanentemente. Nem queria ir embora, mas ainda bem que fui ou não conhecia a mulher da minha vida. É sérvia e trabalha na Áustria.
É cofundador de uma startup criada em Portugal. O que investigam?
Foi criada há três anos para explorar um processo com muito impacto em questões de economia circular. Serve-se do lixo da produção de tremoço, que é tão português, e extrai uma coisa valiosa, a cerine. O tremoço, quando se coze, tem de se passar por várias águas para retirar o amargo, que vai fora, com a água Com uma reação de síntese transforma-se num composto oleoso que se vende a centenas de euros por grama. É a lupanina e o que se extrai, por um processo que inventámos, é a esparteína. É muito valiosa, daí a empresa se chamar Spartax.
É usada em que situações?
Na indústria química, em medicamentos, cosmética, materiais, e tem havido problemas de stock. As fontes naturais são muito irregulares e estão em zonas do mundo em que geopoliticamente não há estabilidade. E a indústria reorientou-se para outras direções. Um dos trabalhos é convencê-los a voltar à esparteína.
Já estão a vender?
Temos vendido para vários fornecedores. É uma empresa que funciona sem investimento externo, temos dois colaboradores. Funciona ainda de maneira muito virtual, até por causa da covid. Estamos a tentar crescer para validar tudo isto em grande escala. Vamos instalar os laboratórios em Oliveira do Hospital.
E em Viena, desenvolve uma investigação para tornar o mentol mais eficiente e sustentável.
O mentol é uma molécula muito importante, entra não só nos rebuçados como em cosméticos, cigarros e em produtos da medicina. Tem um efeito de arrefecimento, muitos dos cremes para as queimaduras têm mentol. É conhecido há séculos, o problema é que a procura mundial excede em muito a produção. Há vários processos para extrair o mentol, são duas etapas até chegar ao mentol e que utilizam metais pesados como catalisadores, que são caros e têm problemas de contaminação e de geopolítica. Estamos a fazê-lo numa etapa e sem metais pesados. É mais económico e melhor para o ambiente.
Está na forja um novo livro?
Devemos avançar para um livro sobre de cozinha molecular, como é que a química pode ajudar para cozinhar melhor, para o cidadão comum, para a democratizar. Há 20 mil coisas o dia-a-dia que se podem melhorar se a pessoa perceber o fundamento químico. A cozinha molecular, que é muito celebrada hoje numa vertente que se pode chamar "fancy" [invulgar/único]. A que nos interessa mais é como é que nós, que não temos azoto líquido e gelo seco em casa, podemos modificar a forma de cozinhar?
É um bom cozinheiro?
Não sei, mas gosto de cozinhar.
Fonte: DN por indicação de Livresco
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