Muito se diz sobre a recuperação das “aprendizagens perdidas”. Pois é!
Não que tenha algo contra, pelo contrário!
Mas a maior parte dos conteúdos previstos nos currículos das nossas disciplinas ‒ digo eu por experiência própria, aquilo que são as aprendizagens essenciais (e outras) ‒ podem sempre ser aprendidas, dependendo do interesse, da necessidade, entre outros fatores.
Recomecei a estudar depois de cumprir o Serviço Militar Obrigatório e deixei de ser um dos piores alunos para ser (se bem me lembro) o melhor da turma.
Fartei-me de “marrar”! Mas obtive o fruto desse “marranço”!
A melhor disciplina? Claro que foi Geografia, com média interna de 19 valores e 18 valores em exame ‒ valeu-me São José Cupertino (padroeiro dos estudantes) e as duas Superbock que bebia antes dos exames para que os nervos ficassem dentro das garrafas vazias. Havia quem tomasse Valdispert ou fizesse exercícios de yoga antes dos exames. Cada um com a sua mania!
Belos tempos!!!
É esta a evidência (pessoal) que uso quando digo que os exames atestam (grosso modo) a capacidade do “marranço”.
Mas a minha verdadeira preocupação, a minha preocupação número um do pódio, aquela a quem pediria ao Mr. Jones (Indiana Jones) para me ajudar numa busca incansável até ao interior da caverna mais profunda do planeta, vai para as relações sociais, para as brincadeiras para as esfoladelas de joelhos que se perderam não só na escola mas também nas ruas. Estes dois espaços estão agora despidos das sonantes gargalhadas e dos gritos das crianças e dos jovens de outrora, surripiados dos atores e figurantes que tanto aprenderiam na relação, nas conversas, nas partilhas.
É certo que tanto a rua como a escola têm vindo a perder protagonismo na construção do currículo não formal. Mas a pandemia veio agravar ainda mais este nicho de aprendizagens desligadas do currículo formal nacional, e que são fundamentais para a vida de todos nós – a escola da vida!
Algo que os nossos alunos, os nossos filhos, nunca voltarão a ter (enquanto não se descobrir a máquina do tempo) é aquela visita de estudo, aquele acampamento de final de ano, aquela festa onde todos se preparavam para a despedida do ano letivo, a festa de finalistas para a qual todos se preparavam a rigor, a festa de Natal onde iam os pais, avós e tios, aquele jogo que os pais iam ver nas atividades extra, aquele passo novo de ballet que os pais iam ver na escola de dança. Isto sim, é preocupantemente irrecuperável!!!
Quantas conversas ficaram perdidas que só faziam sentido naquele contexto, naquela idade, naquele local, as descobertas que se iam fazer com os amigos nos intervalos?… Isto sim, é preocupante!
Isto preocupa-me MUITO! Como professor e como pai!
Em suma, o currículo não formal foi amplamente condicionado uma vez que as interações na rua e no espaço escolar foram fortemente condicionados. O currículo formal também foi, obviamente, tremendamente afetado. Basta pensarmos nos valores enunciados no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, tais como a liberdade, a cidadania, a responsabilidade…
Não obstante, como em tudo na vida, existe sempre o lado B. Houve ganhos de autonomia dos alunos cujos pais não puderam estar ao lado dos filhos nas aulas a distância, houve certamente reforço da relação familiar noutros casos e houve ainda a tomada de consciência social (chamar-lhe-ia assim) de que o papel do professor é bastante importante e que a profissão docente é muito exigente e desgastante.
Fizeram-se os possíveis e os impossíveis para que a Escola, nas suas funções mais importantes de aprendizagem e de socialização, se mantivesse viva. Conscientes das desiguais oportunidades.
Mas onde quero chegar com estas reflexões?
Quero chegar a uma outra preocupação que tem a ver com a interpretação de documentos normativos que pretendem colocar um penso rápido nesta ferida das aprendizagens e relações perdidas.
Refiro-me, em específico, ao Plano 21|23 Escola+, Plano Integrado Para A Recuperação das Aprendizagens.
Ao longo deste documento (se fizermos uma leitura minimamente cuidada) verificamos que existe uma preocupação com as competências socioemocionais.
Mas temo que os três eixos estruturais deste plano (pp. 46 e 47) diluam esta preocupação com as questões sociais e emocionais.
Temo que se caia numa luta espartana pelas aprendizagens perdidas em cada uma das disciplinas, sem que, inicialmente, se subam os primeiros degraus da pirâmide de Maslow.
E não falo só do primeiro degrau da pirâmide, um degrau muito crítico.
Sabemos que em alguns casos não havia/não haverá acesso a alimentos para todos ou parte dos elementos do agregado.
Certamente, existiram/existirão muitos casos (alguns identificados, outros não, pelos organismos competentes) em que as crianças/jovens “dormem com o inimigo”. Com a agravante, neste contexto, de não poderem sair de casa devido ao isolamento. Haverá casos de alunos privados da liberdade de procurar socorro e algum conforto e estabilidade emocional fora das suas casas.
Como pode alguém subir até ao “degrau” do querer aprender quando passa fome? Como alguém quer chegar ao “degrau” do aprender se existem problemas de violência familiar?
Receio que este documento não abra as portas necessárias para apoiar estas situações.
Receio ainda que o documento seja apenas interpretado quanto aos “resultados positivos” em termos de “decorar” o que não foi decorado, aprender o que não foi aprendido, mas que se esqueça que para caminhar para esses degraus, terá, de facto, de existir uma “abordagem escolar global, promotora de resultados positivos em termos de saúde mental, social e educacional” (p. 52).
Para terminar, temo que, no meio dos domínios de atuação previstos neste documento, os pontos “1.6 ‒ +Inclusão e Bem-Estar” e “1.7.2 – E depois da escola?” passem despercebidos e que não sejam interpretados como OS MAIS IMPORTANTES.
Recuperação e consolidação das aprendizagens?
Sim! Talvez!
Mas antes, vamos recuperar as relações perdidas?
Vítor Bastos
Fonte: Aula Digital
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