terça-feira, 21 de setembro de 2021

Na escola é melhor ser feliz do que contente

Neste início de novo ano letivo, relembro uma proposta que, há cinco anos, apresentei aos meus alunos na primeira aula de setembro de 2016. Tinha sido num dia de agosto, na praia, em pleno momento de repouso em frente ao mar, que me surgira a ideia de começar a minha quarta década de docência propondo uma reflexão aos meus alunos, naquele momento ainda completamente desconhecidos para mim. Assim pensado, assim feito.

Depois da tradicional apresentação do professor e de algumas formalidades sobre as aulas, provoquei-os (alunos de 9.º e de 12.º ano), solicitando-lhes intervenções sobre a diferença entre dois grandes objetivos associados à frequência escolar: a alegria e a felicidade.

A generalidade dos alunos ficou algo perplexa com o desafio, mas, com a disponibilidade própria dos adolescentes, facilmente os mais extrovertidos começaram a responder à minha solicitação. Das diversas apreciações sobre o tema proposto, quer dos alunos de 9.º quer dos de 12.º ano, deu para perceber que, para eles, aqueles conceitos eram quase redundantes, não estabelecendo distinção entre alegria e felicidade. Os pontos de vista expressos mostravam que a interseção entre aqueles conceitos era absolutamente maior do que os pequenos pormenores que os pudessem diferenciar.

Permiti um ligeiro debate interpares sobre o tema e aprofundámos o assunto. Tentei demonstrar-lhes que alegria e felicidade, apesar de interligadas, não são o mesmo e que, para além da proximidade de emoções associadas à alegria e à felicidade, existem algumas diferenças fundamentais. Referindo apenas um exemplo: evidenciei a maior proximidade do riso com a alegria e do sorriso com a felicidade. Na verdade, nunca me aconteceu ter um aluno às gargalhadas quando lhe entrego um teste com 20 valores, mas, nos impercetíveis esgares, sinto-o profundamente feliz. Que felicidade, quando se sabe responder a alguma pergunta cuja resposta não é trivial!


Em seguida, apesar do espanto em que os sentia, entreguei uma folha de papel a cada um e pedi-lhes uma breve reflexão escrita sobre o assunto em debate, admitindo que se limitassem ao registo de algumas notas sobre as diferenças entre a alegria e a felicidade.

Lembro-me bem que me deliciei a ler as várias dezenas de páginas.

Aqui transcrevo alguns pequenos recortes desses escritos.

Testemunhos de alunos do 9.º ano:
  • A alegria é mais difícil de ocultar. A felicidade é mais difícil de alcançar.
  • A felicidade é algo que se vai ganhando ao longo da vida com as nossas experiências, que podem ser alegres ou tristes.
  • A alegria, ao contrário da felicidade, é uma sensação que não necessita de grande esforço.
  • Por vezes, a alegria é como uma falsa felicidade.
  • A felicidade de uma pessoa que subiu de cargo pelo seu próprio esforço é muito maior do que a felicidade de uma pessoa que tenha sido promovida por suborno ou por laços familiares.
  • Há quem esconda a infelicidade atrás de uma absurda alegria sem motivo.
  • À alegria aplica-se o verbo estar; à felicidade, o verbo ser.
Testemunhos de alunos do 12.º ano:
  • O procurar ser feliz está cada vez mais a cair em desuso, porque as pessoas se preocupam mais com pequenos prazeres momentâneos.
  • A alegria é um sentimento leve e breve. A felicidade é o que sinto quando algo de bom me acontece numa área que realmente se apresenta como fundamental para a minha sanidade e equilíbrio mental.
  • A felicidade é uma alegria que vem do coração.
  • A alegria vive-se num certo momento, num período de tempo. Por sua vez, a felicidade transmite um sentimento constante, que mora dentro da pessoa e que se mantém mais tempo que a alegria.
  • Ambos os sentimentos são satisfatórios, apesar de a felicidade ter mais impacto do que a alegria.
  • A alegria e a felicidade são sentimentos que transmitem ambos impressões positivas, mas são completamente diferentes.
  • A felicidade é mais ampla e abrangente que a alegria; no entanto, ambas têm um grande peso na minha vida e igual importância.
  • A alegria e a felicidade são sentimentos muito semelhantes e estão muito presentes no nosso dia a dia.
  • A felicidade é mais um estado interior e a alegria é mais exterior.
  • A felicidade é uma alegria eterna.
Efetivamente, a alegria é um estado de espírito que muitos de nós atingem com grande facilidade. Basta uma anedota, basta uma vitória do nosso clube preferido, basta uma festa com amigos, uma música bailadora ou até, tristemente, assistir ou participar numa praxe académica (daquelas que submetem os caloiros à condição de escravos). Por outro lado, a felicidade parece ser algo que está em permanente processo de construção, sempre inacabado, sempre incompleto, tal como a educação e a formação do ser humano. Não existe felicidade completa, perfeita, e, talvez por isso, porque a felicidade seja algo que não se atinge nem fácil nem completamente, parece que nos dispomos a investir mais na procura de momentos de alegria do que na construção de situações que contribuam decisivamente para ir edificando um estado de espírito que nos aproxime da felicidade. Vivemos em tempos de sermos levados a desenvolver a ideia de que a felicidade é inatingível, pelo que não vale o esforço de nos preocuparmos com esse mito. Ao contrário, a alegria, de fácil alcance, é um razoável substituto e muito compensador, pelo menos aparente e imediatamente.

Desde a última década do século XX que em Portugal se fazem experiências de orientar o ensino em função dos interesses dos alunos (cf. programas para o ensino básico de 1990-1991). Apesar de malogradas, voltámos a viver em tempos em que o Ministério da Educação, aprimorando o combate à qualidade da escola pública, revogou todos os programas e pretende que a escola, as aulas e a educação devam estar centradas no aluno e nos seus interesses, mais do que no conhecimento.

Veja-se o que é proposto, em 2021, pelas Aprendizagens Essenciais de Matemática, que, exaltando a frustrada ideologia dos anos 90, preconizam que os professores utilizem como estratégia de ensino «provocar a discussão de ideias com toda a turma, questionando os alunos sobre o que querem saber». Que tamanha imbecilidade! Como se eu, professor, mesmo com os programas eliminados, não soubesse qual a sequência de aprendizagens que devo promover e estivesse ali para entreter os alunos enquanto os pais estão a trabalhar. «Que tal irmos aprender a melhorar os desempenhos num jogo de Playstation?» – propõem os alunos. «E agora?» – interroga-se o professor. Agora? Ainda te interrogas? Então não foste tu que, seguindo escrupulosamente as orientações do Ministério da Educação, os questionaste sobre o que queriam saber?…

Docentes e não docentes, todos temos claro conhecimento de que, frequentemente, os conteúdos lecionados versam sobre assuntos completamente desconhecidos dos alunos. Assim, como seria possível um aluno querer saber algo sobre um tema que, para ele, simplesmente não existe? Impossível, por definição! Talvez os responsáveis pelo Ministério da Educação estejam convencidos da bondade da proposta, mas menos convencidos da sua razoabilidade, pois utilizaram as férias escolares para fingir uma discussão pública e, como quem o quer fazer à socapa, para que entrem disfarçadamente no sistema pela porta camuflada das férias (na gíria da minha adolescência, dizia-se “fazê-lo pela surra”), aproveitaram o passado dia 19 de agosto para publicar o despacho com a respetiva homologação.

Ora, uma escola centrada na fruição de prazeres e na obtenção de alegrias constantes é mais apropriada para formar patetas contentes do que seres humanos na sua plenitude e dificulta muitíssimo a transmissão e a aquisição de conhecimentos. Numa turma com 28 alunos há, nem mais nem menos, 28 conjuntos de interesses diferentes, e a escola não pode ser uma feira popular ou um centro de ocupação de tempos livres. Alguém acredita que, anualmente, seja do interesse simultâneo de centenas de milhares de jovens estudar Fernando Pessoa ou Camões, épico ou lírico? No entanto, todos sabemos o rombo que a noção de portugalidade sofreria se esse “interesse” não lhes fosse incutido.

A escola básica e secundária, do ponto de vista da aquisição e construção de conhecimentos, da formação científico-humanista dos cidadãos, ou mesmo na perspetiva de poder ser um estádio intermédio para acesso a um curso superior, deve ser encarada como um local de sociabilização onde se desenvolve um processo merecedor de grande investimento para a construção da nossa realização como pessoas e da nossa felicidade. E a promoção deste objetivo não se faz colocando o foco na tecnologia e estimulando a diversão. Na entrevista dada ao The Guardian (22/08/2021) e da qual a Visão fez eco (29/08/2021), a psiquiatra e especialista em vícios Anna Lembke explica que «o facto de estarmos obcecados com a necessidade de satisfação constante e imediata faz com que estejamos sempre a estimular o sistema límbico, que processa as emoções, em vez de estimularmos o córtex pré-frontal, responsável pelo controlo, atenção, resolução de problemas e desenvolvimento da personalidade».

Naturalmente que, ao longo do nosso percurso escolar, é imprescindível e inevitável termos muitos momentos de alegria. A alegria é extremamente agradável, a alegria é preciosa, a alegria é também fundamental. Mas a principal finalidade das aulas, grande parte das quais com bastantes alunos com enorme disposição para a brincadeira, não pode ser proporcionar-lhes momentos de alegria. É natural e desejável que isso aconteça em algumas ocasiões, todavia a orientação principal deve ser a da aquisição dos conhecimentos, acompanhada pela reflexão sobre a vida, a ciência, as artes e as humanidades, que proporcionem aos alunos uma boa preparação para enfrentar tanto eventuais estudos futuros como a vida em geral, quer nos aspetos profissionais ou sociais, quer nos privados e pessoais. Para o matemático e filósofo Bertrand Russell, há três meios que nos conduzem com facilidade a especiais momentos de felicidade: o mais comum é o amor, outro é o conhecimento e outro a arte. E o principal desígnio da escola é a transmissão de conhecimentos, diligenciando o sucesso nos estudos e na vida pessoal e profissional, e deve ser claramente mais associado à construção da felicidade do que à promoção da alegria e do divertimento.

Mas, para tal, é também necessário valorizar o reconhecimento social dos professores, tal como é necessário combater a indisciplina, a brincadeira e o ruído nas salas de aula (uma coisa de apavorar muitos dos comuns mortais). É imprescindível apreciar muito a disciplina e, com equilíbrio, proporcionar alguns momentos de silêncio. Tal como na apreciação de uma obra cinematográfica, a qualidade das aulas deve também ter em conta os momentos de silêncio. Não os silêncios de velório, mas os de estudo, de aplicação de conhecimentos, de reflexão, daqueles que fazem nascer os sonhos que comandam a vida. É no mesmo sentido que Anna Lembke afirma que «as pessoas deixam de saber ficar a sós com os seus pensamentos e procuram na tecnologia um escape, o que significa que raramente perdem tempo com tarefas que despendam muita energia ou estimulem a criatividade». Na verdade, os silêncios são frequentemente parteiros de ideias vivas, para além de incrementarem o respeito pelos outros, porque aprender na escola é também aprender em conjunto (para quem tivesse dúvidas, a experiência provocada pela pandemia arrastou a queda abrupta das aprendizagens, pela quebra do conjunto, pela falta da relação humana, em presença).

A educação em geral, e a escola em particular, deve passar por muitos momentos de alegria, porém a finalidade deve ser dirigida para a construção da felicidade. O recreio é mais apropriado para acolher e desenvolver os momentos de alegria, enquanto as aulas têm maior vocação para se focarem na construção da felicidade pela aquisição de conhecimentos. Se bem que é costume reconhecer-se que a produção de grandes obras não parece estar fortemente associada à felicidade do autor, é certo que o contacto com grandes obras nos proporciona ótimos momentos de felicidade. Quanta felicidade se potencia, de modo individual e diverso nos diversos alunos, ao explorar clássicos da literatura, ao mergulhar nos dilemas filosóficos, ao demonstrar teoremas, ao adquirir perspetiva histórica, ao nos deixarmos invadir por um poema ou por uma sinfonia, ao melhorarmos a compreensão das forças físicas e químicas que gerem o universo e nós próprios.

Há, neste processo, um problema intrínseco, que é o da pouca capacidade que, enquanto jovens, temos em reconhecê-lo no imediato. Porém, é suposto que os professores e os pais já tenham ultrapassado essa fase e confiem plenamente no fortalecimento dessa capacidade. Tal como os pais não desistem quando é necessário dar alimento ao filho que “faz fita para comer”, os professores devem mostrar-se firmes, sem vacilar, com todos os seus pupilos, porque o objetivo não é o imediato e a finalidade é maior. Os pais, por ligação biológica, têm um amor natural pelos filhos; de forma algo semelhante, os professores, por formação deontológica, desenvolvem uma ligação com os seus alunos que, embora muito diferente do amor de pais, é também desse domínio. Consequentemente, tal como os pais não expulsam de casa o filho que se porta mal, também os professores, relativamente aos alunos que demonstram maior dificuldade em distinguir os comportamentos adequados, não devem recorrer à expulsão da sala de aula, pois o prejuízo é demasiado grande, mas devem antes utilizar a respetiva formação profissional para que, em simultâneo com as propostas desafiantes facilitadoras do acesso aos conhecimentos, exijam, desde o primeiro momento, a correção dos comportamentos.

Seria muito importante que a sociedade, através de normas explícitas dos poderes políticos, apostasse na valorização social do reconhecimento e da autoridade dos professores, tanto pelos alunos como pelos pais e pela comunidade em geral. A minha experiência acumulada de muitos anos de docência, que nos últimos quatro anos foi partilhada com o exercício das funções de subdiretor de uma escola secundária da capital do país, fez-me constatar a existência de uma fração crescente, embora claramente minoritária, mas não despicienda, de pais que apoiam os filhos em atitudes de enorme desrespeito pelos professores, com casos em que são os próprios pais na dianteira desse terror, o que é um sinal destes tempos que não consigo acomodar. É verdade que há também casos (poucos) de professores, ou melhor, de uma espécie de dadores de aulas, que revelam enorme desrespeito pelos alunos. Embora o número destes casos seja residual, seria ótimo que se implementassem mecanismos mais eficazes para os arredar da função pública (no privado é relativamente simples descartar esses dadores de aulas tresmalhados).

A propósito da distinção entre alegria e felicidade, rememoro igualmente que, já perto do final desse ano letivo 2016/2017, depois de Portugal ter vencido o Festival da Eurovisão com uma canção muito bonita, tanto na letra como na melodia, sem artifícios para fomentar a alegria, dirigi aos meus alunos a seguinte mensagem, cujos retornos foram deliciosamente compensadores:

«O fenómeno europeu “Salvador Sobral” parece indicar uma tendência para dar mais valor à felicidade do que à alegria, o que não é habitual na Eurovisão e também é muito raro na faixa etária em que vocês se encontram.

Talvez, devagarinho, possam aprender que os estudos conseguem, em geral, contribuir decisivamente para a vossa felicidade.

Outra coisa que certamente contribuirá profundamente para a vossa felicidade é o amor. Mas aqui fica um conselho: não desistam à primeira, nem à segunda, nem à terceira, mas não se ponham a “amar pelos dois”. Não se deve amar sozinho, pois o amor exige reciprocidade.

Desejo que sejam felizes.»

Desejo verdadeiramente que os meus alunos sejam felizes, muito mais do que contentes e, decisivamente, não patetas contentes.

Carlos Grosso

Fonte: Observador por indicação de Livresco

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