Após dois conturbados anos letivos, devido à pandemia, as escolas preparam-se para um terceiro ano ainda bastante incerto, mas que desejam que seja o mais normal possível. O regresso à normalidade domina as declarações públicas de diretores escolares e de pais, alunos e professores. Este desejo de regresso à normalidade, sendo lógico e compreensível, após dois anos de imensa instabilidade, incerteza e experimentação, constitui ao mesmo tempo um sério problema.
De facto, este passado recente está prenhe de novas circunstâncias, novos ensinamentos e de novas práticas educativas, bem e mal-sucedidas. Ou isso é motivo de aprendizagem individual e coletiva, com base na reflexão de cada escola, ou perdemos uma excelente oportunidade para desenvolver uma educação pautada por uma (nova) qualidade, que brota da equidade e da personalização, da igualdade de oportunidades e do cuidado. Voltar ao normal é andar para trás e virar a cara aos desafios que temos diante dos olhos.
Se quisermos passar uma “borracha” sobre estes dois anos e apagar e esquecer tudo o que se passou, iniciaremos bastante mal o novo ano letivo. Em educação, quando não se avança, recua-se.
O contexto mudou:
(i) o imenso medo que se instalou entre os alunos, sobretudo entre os mais novos (que tendemos a menosprezar), pede-nos cuidados redobrados na sua escuta, no seu encorajamento e em torno do seu bem-estar; (ii) a perda gigantesca das experiências de comunicação, de cooperação e de entreajuda reclama urgentes investimentos na interação, no trabalho de equipa, nas dinâmicas entre pares e na reconstrução de ambientes escolares como verdadeiras “comunidades educativas”; (iii) as profundas desigualdades que se evidenciaram na consecução de aprendizagens nucleares e nos modos de acesso e usufruto dos meios tecnológicos chamam a atenção para cuidados redobrados para com aqueles que estão hoje ainda mais fragilizados que antes; (iv) as dinâmicas inovadoras de ensino e aprendizagem que o “ensino à distância” gerou constituem uma experiência cheia de ensinamentos, com efeitos positivos e negativos sobre os processos de ensino e aprendizagem, que importa peneirar, incorporando o mais rápido possível os ganhos obtidos, que são muitos; (v) o “novo” envolvimento das famílias e das autarquias na promoção da escolarização e da igualdade de oportunidades vem abrir novas possibilidades à volta da participação da comunidade na escolarização de todos, com particular atenção aos mais pobres e negligenciados… Se tudo isto ocorreu em vão, se não importa e é para esquecer o mais depressa possível, isso vem revelar que nosso sistema escolar está mais bloqueado do que se poderia pensar e perderá qualidade a um ritmo muito acelerado, deixando a salvo aqueles que sempre se salvam, enquanto a maioria lá ficará a um canto, agarrada aos seus telemóveis, entretidos e ausentes do mundo e da sua própria vida.
Voltar ao normal é regredir, é recusar seguir por diante e aprender com o difícil caminho feito durante estes dois anos.
Identifico cinco domínios em que estes anos nos pedem para seguir por diante, para não ficarmos agarrados ao chão que pisámos, nos incitam a descolar.
Primeiro: fica muito mais claro que a competição como modo de vida das escolas e modo de estar nas salas de aula é um buraco negro: leva à recusa do outro e do diferente, envolve a seletividade numa conversa doce sobre incapacidades dos alunos para aprender e para aproveitar as oportunidades oferecidas, é excludente e acentua um modo de vida em comum em que cada um é para si e está por si. Nada de positivo e humanamente sustentável nasce deste tipo de ambiente escolar.
Segundo: torna-se mais evidente que as escolas ao colocarem os seus principais esforços na concorrência entre si, ou seja, ao darem tudo para “ficar bem na fotografia” das avaliações externas, ao saltarem administrativamente por cima das reais dificuldades que o aprender e desenvolver-se supõe por parte de cada aluno, sobretudo dos que se encontram mais desprotegidos e marginalizados, ao selecionarem os alunos supostamente com base no mérito, estão a negar, ainda que aparentemente de modo doce, a cidadania e o desenvolvimento a muitos milhares de portugueses que confiam na escola ou que a ela têm de recorrer obrigatoriamente para pertencerem.
Terceiro: salta muito mais à vista que o cumprimento das normas é insuficiente para que a escola para todos seja democrática e justa e, nesse sentido, tenha qualidade. Embora o abandono e o insucesso escolares tenham diminuído imenso, ainda deixámos para trás perto de 10% dos alunos sem conclusão da escolaridade de 12 anos e cerca de 30% dos alunos reprovam antes de concluir o 9º ano. Uma escola cheia de normas e repleta de moral pode ser, ao mesmo tempo, um ambiente de escassez ética, uma instituição que, cumprindo todas as normas, é incapaz de dar a cada um a resposta concreta que cada um reclama, sobretudo os “diferentes”.
Quarto: é bastante claro que a “digitalização” representa um caminho irrecusável (manuais digitais, meios tecnológicos, plataformas de e-learning, enriquecimento dos processos de ensino-aprendizagem e da avaliação formativa) e que as escolas que incorporarem os ensinamentos que o ensino à distância já proporcionou, integrando e aprofundando esse caminho, vão poder crescer nesta qualidade de que aqui falo, comprometendo mais e melhor quer os seus alunos no esforço diário de aprender e ser mais, quer os seus professores na árdua missão de ensinar e educar.
Quinto: existem entretanto novas condições para que os professores e os órgãos pedagógicos de cada escola possam gerir o currículo prescrito de modo mais autónomo, inteligente e adequado, articulando vertical e horizontalmente as disciplinas, os saberes e as competências, o que representa uma excelente oportunidade para melhorar o ensino e as aprendizagens.
Dois anos volvidos e tantos escolhos depois, será muito mau se voltarmos ao normal, como se nesta semana de recomeço do ritmo escolar anual bastasse dizer: “the show must go on!”.
Uma escola não só para todos, mas sobretudo para cada um e com cada um, tem de ser uma instituição que cuida, que se foca no essencial, nos melhores processos de ensino e de aprendizagem e que não deixa nunca um só aluno para trás, seja sob que pretexto for. E hoje isso requer: a reconstrução de um quadro de cuidado, cooperação e bem-estar que acolha, promova e escute a voz de cada um, a reconfiguração do foco das inúmeras ações das escolas, fazendo menos e melhor, num ambiente eticamente mais enriquecedor, a reformulação do modo de gerir o currículo e a reestruturação dos tempos e espaços, dos grupos de alunos e de professores, numa geometria variável, sempre à procura de servir de modo positivo e encorajador a melhoria das aprendizagens, a emancipação e a liberdade de cada cidadão.
E para isso é preciso parar, refletir, preparar e programar novos passos, num novo horizonte, sempre prontos para avaliar e corrigir. Este deveria ser, pois, um tempo de recomeços e não apenas do retorno ao habitual e ao conforto dos sofás encovados e corroídos.
Tem de ser o modo como cada escola cuida de cada um, sobretudo dos mais frágeis e desprotegidos, a definir a qualidade da educação. Bom ano!
Joaquim Azevedo
Professor da Universidade Católica Portuguesa (Porto) e membro do Conselho Nacional de Educação.
Fonte: 7 Margens
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