Há vinte anos, quando a retórica da “mudança curricular” estava em alta, um director escolar disse numa sessão destinada a estudantes de pedagogia que seria muito vantajoso que o ministro da Educação nada fizesse durante toda a legislatura. Esse tempo seria bem preciso para directores e professores conhecerem, além dos títulos, os conteúdos dos documentos legais e programáticos, o que, manifestamente, não acontecia.
O tom circunspecto indicava não se tratar de um exagero para captar a atenção do auditório, mas de uma reflexão séria, dissonante da habitual, que partia da perspectiva, nem sempre escutada, dos profissionais.
De facto, a dita mudança tende a ser defendida com base nas alegadas vantagens que terá para os alunos e para a sociedade, confiando-se que os profissionais a acolham e ponham imediatamente em marcha, com empenho e entusiasmo; aqueles que não o fizerem entram na categoria de “resistentes à mudança”, de “velhos do Restelo”.
Nos anos mais próximos, a concretização da pretendida mudança é acompanhada de especiais pressa e pressão. E não é só o poder político de cada país que o faz, mas, sobretudo, a pluralidade de entidades nacionais e internacionais que se declaram “interessadas” na educação. Em coro, veiculam a ideia de que o pós-pandemia constitui a “grande oportunidade” para introduzir a “disrupção” necessária à sua “radical reconfiguração”. Reconfiguração que já estava pronta antes da doença planetária aparecer, esta “apenas” a acelerou.
Não vou questionar se cada mudança é justificada nem se é viável, noto apenas que quem assegura, no terreno escolar, a sua concretização precisa, primeiro, de a decifrar e, depois, de a tornar em pensamento próprio, traduzindo-o em acção. Esta apropriação — distinta de “aplicação” —, para resultar num elevado nível de destreza profissional, é difícil e morosa.
Apoio-me em autores como o americano Lee Shulman ou o francês Gaston Mialaret para afirmar que essa destreza, no que respeita aos professores, decorre do domínio, profundo e alargado, de conhecimento em diversas áreas: disciplinar e de interface; das finalidades educativas; do currículo oficial; do contexto e dos alunos; da psicopedagogia e da didáctica.
Acresce que estas áreas exigem articulação sempre que se tomam decisões, cujo sentido é levar os alunos a aprender o mais e melhor possível. Trata-se de um processo complexo, que requer envolvimento e activação de recursos cognitivos, pelo que, se e quando colocado num novo cenário curricular, o professor — mesmo sendo empenhado e experiente — despende um esforço suplementar para recuperar e processar a informação desconhecida.
É certo que o esforço vai diminuindo à medida que retém, interpreta e ordena os dados recentes, conjugando-os com dados anteriores. Neste exercício, cria “esquemas mentais” e consolida “heurísticas”, ou seja, “modos de fazer”, que agilizam a interacção, tornando-a profícua em termos de aprendizagem desejada.
Aqui há que perguntar: como hão-de os professores preparar-se para conseguirem uma interacção deste tipo nos exíguos períodos de tempo que lhes sobra de outras tarefas, cada vez mais burocratizadas?
A pergunta terá sido feita por muitos depois de, no fim do ano lectivo, verem revogados os documentos curriculares de suporte ao ensino, com excepção dos designados por “Aprendizagens essenciais”, e outros que os sustentam e complementam.
Este mês, passarão a usar um “referencial” que, apesar de ser composto por documentos antes homologados, ganharam, na sequência do Despacho n.º 6605-A/2021 de 6 de Julho, um enquadramento diferente do anterior. Afinal, o enquadramento que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) estabeleceu para o “futuro da educação”.
Não falei com o director a que aludi no início, mas suponho que concordará comigo quando digo que os professores, mormente os que assumem uma atitude de autonomia e responsabilidade, estão, outra vez, face a um dilema que tem sido investigado: percebem que o dito referencial está repleto de escolhos, mas vêem-se perante a urgência de dar resposta a uma determinação superior. As suas decisões hão-de depender do modo como encararem esse dilema, sendo de presumir que nenhuma os deixará de consciência tranquila.
Maria Helena Damião
Fonte: Público
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