De repente, as prioridades e o foco alteraram-se. Os alunos que se envolviam em campanhas solidárias nas escolas, em doações e recolhas de bens, tornaram-se alvos dessa ajuda. Estão agora do outro lado. E são sobretudo famílias da classe média. Os diretores escolares estão preocupados com a situação, com o impacto da pandemia a nível económico. Os casos de dificuldades financeiras detetados nos estabelecimentos de ensino aumentam de dia para dia.
A Lusa ouviu relatos de diretores escolares que dão conta de histórias pouco felizes. O rendimento das famílias diminui, os alunos ficam mais frágeis. “Já não são as tradicionais famílias que estão em dificuldades. A classe média também está a passar mal”, adiantou, à Lusa, Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos de Escolas Públicas (ANDAEP). “A necessidade de acudir às famílias está a aumentar e, por isso, a faceta social das escolas está também a emergir”, acrescentou.
Foi o que aconteceu no Agrupamento Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia, onde Filinto Lima é diretor escolar. Na altura de Natal, 89 famílias de alunos receberam um cabaz. “Algumas das famílias que antes ofereciam alimentos estão agora do outro lado, a receber ajuda”, alertou o responsável que avisou que há escolas que já não conseguem chegar a todos que precisam de ajuda. E as notícias recentes não são animadoras: mais de 12 mil casais deixaram de ter qualquer fonte de rendimento.
Os destinatários da ajuda estão a mudar, portanto. A Lusa ouviu Irene Louro, diretora do Agrupamento n.º 2 de Loures. Habitualmente, a escola entregava cabazes à paróquia no Natal. No último, não foi assim. Os cabazes foram todos entregues aos alunos. “Sentimos que tínhamos que nos virar mais para dentro, porque os nossos alunos são quem mais precisa”, explicou.
No Agrupamento de Escolas General Serpa Pinto, em Cinfães, aconteceu o mesmo. Mais de 50 cabazes de Natal foram distribuídos pelos alunos. Manuel Pereira é diretor deste agrupamento e presidente da Associação Nacional de Diretores Escolares (ANDE). “Há muita pobreza encoberta e as pessoas têm receio e vergonha de mostrar o quanto necessitam. Nós conhecemos bem as famílias e, infelizmente, são muitas as que precisam. Mas para nós é fácil falar com elas”, referiu à Lusa, acrescentando que, nas escolas, as ações de solidariedade não têm data marcada. Acontecem quando é necessário.
Nas escolas de Cinfães, no ano passado, recolheram-se vários alimentos, como arroz, massa, azeite, leite, distribuídos pelas casas de vários alunos. Em Cinfães, as escolas trabalham em colaboração com a autarquia que é avisada quando surge um caso de carência económica.
Toda a ajuda é bem-vinda. Fazem-se campanhas de alimentos, de material escolar, de roupa. Dão-se refeições que não estavam programadas. As iniciativas surgem de forma espontânea, quando é necessário, quando há urgência, quando há pedidos de ajuda. “São coisas genuínas que nascem das comunidades educativas”, adiantou Filinto Lima, à Lusa. Irene Louro sublinha que as ações solidárias fazem parte da “filosofia da escola”. “Os alunos de famílias mais carenciadas procuram a escola e nós procuramos ajudar com aquilo que podemos”. “Tentamos fazer isto de uma forma quase silenciosa”, disse.
Pobreza instantânea, desigualdades sociais
No livro “Um Olhar Sociológico sobre a Crise COVID-19” vários autores analisam o impacto da pandemia em setores diversos como educação, desigualdades sociais e económicas, saúde, habitação, ambiente, arte e cultura, ensino superior, entre outros. Uma publicação com 16 textos organizada pelos investigadores Renato Miguel do Carmo, Inês Tavares e Ana Filipa Cândido, no âmbito do Observatório das Desigualdades, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES), do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa.
As pessoas mais afetadas pela pandemia são as mais vulneráveis do ponto de vista das desigualdades sociais. Esta é uma evidência desta crise pandémica profunda e singular que destapa vulnerabilidades socioeconómicas. As investigadoras Inês Tavares e Ana Filipa Cândido adiantam, em jeito de síntese, que quem mais sofre nesta crise sanitária são as pessoas com “menos capitais sociais, económicos, culturais e simbólicos, na medida em que, por um lado, são as mais afetadas pela própria doença e, por outro lado, são as que sofrem mais consequências económicas e sociais negativas no presente e, previsivelmente, no futuro”. E aqui estão as famílias com filhos em idade escolar que ficaram sem trabalho.
As famílias deparam-se com um empobrecimento abrupto, as que têm filhos sofrem ainda mais. Trabalhadores precários com contratos temporários ou sem contratos, trabalhadores com escassos recursos económicos, que, de um dia para o outro, perdem o emprego e ficam sem chão, são os mais afetados. Inês Tavares e Ana Filipa Cândido destacam ainda a dificuldade de adaptação à telescola em agregados familiares com dependentes a cargo e níveis desiguais de literacia digital, e cujos efeitos ainda estão por apurar em toda a sua extensão e dimensão.
António Firmino da Costa, sociólogo, professor catedrático do departamento de Sociologia do ISCTE, membro do CIES, é um dos especialistas que partilham as suas visões relativamente às consequências desta crise nas desigualdades sociais. Num vídeo de 21 minutos, fala de desigualdades sociais. Antes da pandemia, essas diferenças já eram acentuadas, agora agravam-se e aumenta o fosso entre os mais pobres e os mais ricos. “Os mais desfavorecidos e vulneráveis estão a ficar ainda mais desfavorecidos e mais vulneráveis”, refere. “Não se encontram praticamente exemplos de sentido contrário”, acrescenta.
Desigualdades exacerbadas, desigualdades que emergem. “O atual período de quarentena representa um esforço monumental por parte dos indivíduos e respetivas famílias. O isolamento não só quebrou a regularidade dos laços e das ligações sociais em copresença e proximidade física, como está a gerar um conjunto de processos disruptivos decorrentes do confinamento prolongado”, escrevem os investigadores.
Fonte: Educare
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