Uma turma de estudantes de informática, composta por reclusos do Estabelecimento Prisional de Castelo Branco, e uma turma de jovens “meninos” com necessidades educativas, do projeto “Sim, Somos Capazes”, do Agrupamento de Escolas de Canelas, em Vila Nova de Gaia, podem parecer dois universos mais que apartados. À primeira vista, a probabilidade de se cruzarem seria quase nula. Mas foi isso que Paulo Serra e Luís Baião fizeram acontecer. E com sucesso.
Paulo e Luís moram em cidades diferentes, a mais de 300 quilómetros de distância, e nunca estiveram juntos em pessoa. Até há pouco mais de três meses, nem sequer se conheciam. Os dois, contudo, têm algo em comum: são professores por vocação; em novembro do ano passado, ambos estiveram nomeados para o prémio Global Teacher Prize Portugal.
“Através das dinâmicas de grupo, percebemos que tínhamos pontos em comum. Os dois temos formação para lidar com crianças com necessidades especiais”, recorda Paulo.
Na cerimónia de entrega do prémio, que decorreu de forma digital devido à pandemia, Luís partilhou com Paulo alguns dos jogos que usa e desenvolve com o programa Power Point para facilitar a aprendizagem dos alunos com necessidades educativas com quem trabalha em Canelas. E o albicastrense, que é docente que informática, “achou imensa piada”.
Passadas apenas três semanas, nasceu o +Power, um projeto que visa desenvolver tecnologias de apoio educativo para crianças com necessidades especiais, “através da reciclagem de materiais informáticos, promovendo a reinserção, a inclusão e o voluntariado”.
Até agora, os alunos de Paulo já construíram 20 consolas que são utilizadas pelos alunos de Luís. Ao mesmo tempo, já há professores a receber formação para utilizar esses equipamentos e os jogos de PowerPoint.
A 27 de janeiro, os dois professores organizaram um workshop online que contou com a participação de dezenas de pessoas e um representante do Governo. Têm nas mãos uma ideia em expansão – como o universo.
A consola
Há cerca de três meses, Paulo Serra levou para o estabelecimento prisional de Castelo Branco um desafio técnico. Mostrou aos alunos uma gravação dos jogos desenvolvidos pelo Luís Baião e perguntou-lhes: como é que podemos fazer isto funcionar para estas crianças?
Para algumas crianças com necessidades especiais - com baixo controlo de movimentos e com espasmos recorrentes, por exemplo - “um teclado tem simplesmente demasiadas teclas”. Era necessário, por isso, construir uma “consola” que isolasse “três botões”, já que para utilizar o Power Point “só precisamos do Enter, da tecla Tab e do Backspace”.
Em pouco mais de uma hora, os alunos conseguiram encontrar uma solução: as consolas seriam construídas tendo por base teclados velhos. Depois, seria necessário metê-los numa caixa que isolasse os três botões. O projeto foi um sucesso, mas não pelas razões mais óbvias, explica Paulo.
Os alunos-reclusos são, em norma, alunos céticos, desmotivados, que duvidam que a formação que obtenham na prisão possa vir a ser útil mais tarde, tendo em conta que “têm um curriculum vitae com muitas folhas, o registo criminal”. Mas neste caso, o professor percebeu que o discurso era diferente.
“Nós sabemos que as palavras não são inocentes. Quando me apercebi, eles estavam a falar da consola, embora não acreditando, diziam assim: 'Então isto aqui é para os meninos usarem?' E esta é a expressão”, diz.
Quando os reclusos viram “os alunos do 'Sim, Somos Capazes', do Agrupamento de Canelas, perceberam que o que estavam a fazer era importante, tinha sentido e começaram a tratá-los por 'meninos'”.
Somos capazes
O “Sim, Somos Capazes” é um projeto de apoio na “transição para a vida adulta de jovens com deficiência”, que arrancou em 2017, e cuja “essência está na simplicidade”.
Há 12 anos, quando Luís Baião começou a explorar o campo dos jogos via Power Point, foram muitas as pessoas que “desvalorizaram”. “Mas isso é Power Point”, disseram-lhe.
O professor do Agrupamento de Escolas de Canelas, contudo, percebeu o papel emancipador de dar o poder de criar aos seus alunos.
“Dizer a jovens com deficiência intelectual que eles vão ser um recurso para professores, vão ser um recurso para a comunidade, vão ser um recurso para crianças que estão a aprender a ler… ao princípio nem acreditam muito bem. ‘Mas eu vou fazer isso? Eu que estou sempre aqui no fundo da pirâmide? De um momento para o outro passo lá para cima?’ Quando começam a fazer, o entusiasmo é galopante. E à medida que vão fazendo, também vão aprendendo”, conta.
Aprender fazendo: enquanto professores, esta é estratégia que Paulo e Luís usam. O gaiense percebeu que para dar autonomia aos seus alunos, em vez de apenas falar, tinha de seguir outro curso. “Vocês vão aprender isto, vocês vão desenvolver este recurso.” O albicastrense segue a mesma fórmula.
O milagre
Paulo Serra vê o universo prisional e o das crianças com necessidades educativas como faces da mesma moeda. A ideia pode parecer contraintuitiva, mas o professor explica como é que essa sobreposição acontece: “São universos distantes, mas eu não os considero distantes, porque estamos a falar de inclusão. Inclusão social e escolar, e nesse aspeto, enquanto membro da sociedade e com responsabilidades de docente, não acho que sejam distantes. São comuns com tudo aquilo que é inclusivo tem de ser comum.”
Segundo o professor de informática, “a reinserção é reeducação em fim de linha” de jovens que tiveram “processos educativos incompletos ou inadequados”.
Luís Baião admite que a realidade prisional é-lhe distante. Não tem a mesma experiência que Paulo, por isso não consegue imaginar o que sentirão os reclusos. Em todo o caso, basta-lhe o que o colega de vocação conta para perceber o impacto do +Power.
“A partir do momento que o Paulo me diz que os alunos dele começam a tratar os meus alunos como 'meninos', sinto que o projeto está a mexer com eles e que se calhar pode desenvolver e criar situações de reinserção. Não seremos nós que vamos fazer um milagre, mas pode acontecer um clique”, diz. A consola já está nas mãos deles.
Fonte: RR por indicação de Livresco
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