É um tempo inédito e os impactos estão a ser avaliados e monitorizados em tempo real. Há um ano, desde março de 2020, depois da descoberta de um novo vírus que virou o mundo do avesso, que tem havido “ondas” com impactos diferentes nos mais novos. Margarida Gaspar de Matos, psicóloga clínica e da saúde, psicoterapeuta, professora catedrática na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, coordenadora nacional do estudo HBSC - Health Behaviour in School Aged Children, da Organização Mundial da Saúde, fala de “ondas de incerteza, ondas de temor, ondas de ajustamento, ondas de novo desajustamento, ondas de esperança, ondas de grande fadiga, ondas de irritabilidade, de ansiedade, de depressão”. Uma enorme instabilidade. E a saúde mental, como fica?
“Os adolescentes têm, em geral, uma grande plasticidade comportamental, mas na verdade estamos todos com os ‘elásticos’ muito repuxados. A ‘fadiga pandémica’ aperta, não se vê um fim, e os miúdos veem arrastar-se e cancelar-se diversos eventos de socialização que normalmente os acompanham nas suas rotinas de crescimento, escolarização e socialização”, refere Margarida Gaspar de Matos (...).
Inês Afonso Marques, psicóloga clínica, psicoterapeuta infantojuvenil, que gere a área infantojuvenil da Oficina de Psicologia, adianta que há grupos de crianças e adolescentes particularmente afetados pelas consequências da pandemia, aqueles com fragilidades prévias, aqueles que veem intensificadas dificuldades pré-existentes, que já apresentavam perturbações psicológicas ou outros problemas de saúde, jovens mais isolados socialmente. E há famílias, afirma, “cujos pais apresentam vulnerabilidades emocionais que os tornam menos competentes em processar o sofrimento dos seus filhos, ou pais que expõem os filhos a situações de stress adicionais, como situações geradas por abuso de substâncias ou violência”.
Essas situações não podem ser esquecidas. Há crianças, adolescentes, jovens, em circunstâncias sanitárias que vão além da pandemia, com doenças crónicas, por exemplo. Em circunstâncias de vulnerabilidade psicossocial que agravam situações de maus-tratos, exposição à violência, abandono.
O contexto é duro, a situação é penosa, não há um fim à vista. O real impacto da pandemia na saúde mental dos mais novos será percebido no futuro, ainda não é possível estimar a magnitude das consequências a longo prazo, que dependem também do tempo de isolamento e distanciamento físico, assim como de características mais individuais, dos recursos e fragilidades, e do contexto envolvente. “O impacto depende em grande medida de dois fatores: características individuais e eventuais vulnerabilidades prévias e da forma como os adultos de referência gerem a situação”, adianta Inês Afonso Marques ao EDUCARE.PT.
“Pensando nos adolescentes, alguns jovens sentem que a sua adolescência foi interrompida. Há experiências que só se vivem uma vez e representariam vivências de grande simbolismo nas suas adolescências: concertos, eventos associados a desportos que praticam, bailes e viagens de finalistas, namoros, primeiras experiências sociais no Ensino Superior”. “Muitos eventos e experiências que ansiavam têm vindo a ser cancelados, o que para os mais novos são perdas potencialmente impactantes, acompanhadas de frustração, deceção, angústia, tristeza... Representam pequenos lutos que se vão somando”, acrescenta.
Mais choro, mais birras, mais tristeza
Tensos, chateados, fartos, cansados, desmoralizados. São sensações transversais e normais neste tempo pandémico, mas que podem ser usadas como foco de motivação para manter a coesão na família ou na turma. “Mas tudo com muita serenidade… não vale a pena tentar tornar tudo uma animação. Isto não está uma animação e talvez seja mais verdadeiro falar sobre isso”. Margarida Gaspar de Matos aconselha, por isso, especial atenção a crianças e adolescentes que manifestem alterações de apetite e do sono, irritabilidade, isolamento, comportamentos agressivos, choro, consumo de substâncias.
Taquicardia, tremores, dores de cabeça e de barriga, tonturas, mudanças de humor repentinas, irritabilidade, agitação, choro fácil, tristeza, mais birras e explosões emocionais, regressões no comportamento, medo, insegurança, aborrecimento e perda de interesse por coisas que gostavam. É essencial que as famílias estejam atentas a sinais de alarme destas alterações no comportamento dos filhos, que se prolonguem no tempo, para uma intervenção precoce, de modo a evitar mais repercussões negativas e sofrimento provocado pelas circunstâncias. “Especial atenção a crianças e adolescentes que estavam sinalizados pelas comissões de proteção, ou que tinham acompanhamento médico e psicológico que possa estar a ser interrompido”, avisa Margarida Gaspar de Matos.
“Mudanças decorrentes da pandemia, como a alteração de rotinas, interrupção de atividades de prazer e realização, afastamento dos amigos, ter mais tempo livre sem nada definido para fazer parece fazer crianças e adolescentes sentirem-se angustiados, com grande stress em relação à incerteza e desesperança em relação ao futuro. Em alguns casos, as dificuldades emocionais só poderão manifestar-se mais tarde, aquando do regresso de maior ‘normalidade’ nas suas vidas”, diz Inês Afonso Marques.
A pandemia apanhou o mundo desprevenido, a situação é difícil. Margarida Gaspar de Matos lembra que é natural andar aborrecido, muito aborrecido até, preocupado com o futuro, com a família, com a escola. A ideia é tentar que esta preocupação una famílias e também a comunidade escolar à volta dos pequenos passos que se possam fazer juntos, para que, quando tudo melhorar, estejam todos juntos e com a maior energia possível.
A psicóloga clínica e da saúde refere que é preciso não deixar “ferver” emoções quentes, desgastantes e inúteis, que é necessário aceitar limites. É também importante respeitar, tanto na escola como na família, tempos de isolamento e tempos de partilha, tempo de trabalho e tempo de lazer. Um clima afetivo de aceitação e partilha ajuda quando tanto mudou no ritmo da vida pessoal, familiar, escolar, profissional.
Um aspeto essencial é, segundo Inês Afonso Marques, criar espaço e tempo para que as crianças e adolescentes possam expressar livremente aquilo que pensam ou sentem, sem se sentirem julgados. Nos mais pequenos, é importante ajudar a dar nome ao que estão a sentir. Validar e aceitar todos os estados emocionais, por mais estranhos ou despropositados que possam parecer aos olhos dos adultos. Valorizar e promover rotinas estruturantes, nomeadamente em relação ao sono. Valorizar ainda o movimento e atividade física dentro de casa, contrariando o sedentarismo natural que as aulas online e o próprio dever de confinamento implicam. Promover uma alimentação equilibrada.
Não minimizar queixas, validar emoções
Há mudanças e sentimentos que sobressaem para o bem e para o mal. Numa perspetiva mais positiva, Inês Afonso Marques salienta que “algumas famílias relatam estarem a aproveitar mais o tempo passado em conjunto para conversar mais, criando oportunidades para conhecerem interesses e outras características dos filhos, partilharem o que pensam e sentem, algo que na azáfama da rotina é mais difícil de acontecer”. Por outro lado, numa perspetiva mais negativa, acrescenta, “nas famílias em que já havia grandes dificuldades de comunicação, os conflitos familiares podem ser ainda mais frequentes e intensos, verificando-se um ambiente familiar mais tenso, e um maior isolamento”.
Estimular a inteligência emocional é essencial para a capacidade de adaptação e sucesso ao longo da vida. Encontrar atividades de prazer dentro de casa, em família e individualmente, também é importante. “Que haja tempo de qualidade, com presença e atenção plena, todas os dias, em família, para a brincadeira, jogos e conversa”. Para Inês Afonso Marques, é igualmente importante começar a investir na autorregulação emocional, com mais atenção às emoções e oscilações comportamentais dos mais novos. Exercícios de respiração e meditação ajudam a reduzir o stress.
Há várias estratégias. “Conversar com alguém de confiança sobre o que pensam e sentem e não ter receio de pedir ajuda poderá fazer toda a diferença. Devem estar informados sobre a pandemia e respetivas medidas de segurança, mas devem evitar a sobre-exposição a notícias”. Os pais devem estar atentos, validar as emoções dos filhos e não minimizar as suas queixas. “Devem ouvir, compreender e mostrar-se disponíveis para conversar e ajudar”, refere Inês Afonso Marques. “Haverá sempre tempo para aprender. Mas para se aprender e se ser feliz a aprender é necessário dar atenção ao mundo emocional das crianças e colocar o foco mais nos processos e menos nos resultados”, sublinha.
Para Margarida Gaspar de Matos, o mote, por agora, “é flexibilizar e ir avançando, passo a passo, com a maior serenidade”. Até porque estes tempos difíceis podem, realça, “ser um bom desafio, e pode mesmo ser uma oportunidade de virmos a tornar as nossas vidas em vidas melhores, mais humanizadas, mais afetivas, mais pertinentes”.
Técnicos de saúde mental, nomeadamente psicólogos, estão na linha da frente. “A Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) tem sido inexcedível no apoio ao Governo, às populações, aos profissionais associados e tem disponibilizado muitos materiais, além de disponibilizar serviços de apoio. Também os técnicos de educação, professores e outros técnicos nas escolas se têm perfilado para a ação”, adianta Margarida Gaspar de Matos. Há um bom movimento de coesão social, um esforço concertado para minorar problemas, em seu entender.
A OPP criou uma checklist para ser respondida pelos pais para os ajudar a perceber como se têm sentido os filhos nas últimas semanas. É uma forma de entender o estado emocional e cuidar da saúde psicológica e do bem-estar dos mais novos. Os resultados, avisa a OPP, não são um diagnóstico psicológico, mas servem para ajudar a pensar. Se há preocupações, é aconselhável procurar ajuda profissional. “Como me Sinto – Checklist sobre Crianças e Adolescentes” está disponível no site da OPP.
Fonte: Educare
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