No dia em que recebi o diagnóstico de surdez profunda do Pedro descobri que a expressão “sentir o chão a fugir” pode ser absolutamente literal. Porque mais do que tristeza ou dor o que me lembro de sentir foi uma espécie de vertigem e uma quase total incapacidade para andar. A médica continuava a falar comigo (ou, pelo menos, foi o que me pareceu), mas depois de a palavra surdez ser pronunciada deixei de conseguir compreender o que me dizia. A voz dela ecoava ao longe e eu sentia-me à deriva em alto-mar, náufraga, sem saber como continuar agora que o bebé nos meus braços não era o filho perfeito com que tinha sonhado.
Saí do consultório a medo, depois de a custo ter entendido que tínhamos de ir a uma consulta para colocação de próteses auditivas que podiam não resultar. Num esforço tremendo para não desabar, com o Pedro no colo e um pai que parecia tão desorientado como eu me sentia, caminhei até ao carro. E não me lembro de mais nada sobre esse dia. Felizmente lembro-me da noite.
Lembro-me de me ajoelhar ao lado do berço do meu filho e de o ver tão lindo e tranquilo no abraço de Morpheu, lembro-me de lhe prometer que até ao meu último fôlego lutaria com ele e para ele e, acima de tudo, lembro-me de perceber de uma forma avassaladora que a surdez dele não beliscava em nada o amor que lhe tinha. Pelo contrário, parecia até aumentá-lo. No dia seguinte arregacei as mangas e comecei o trabalho que ainda hoje mantemos e que, se tudo correr como previsto, manteremos por muitos anos. Terapia da fala, próteses auditivas, implante coclear, muito trabalho em casa... E sabem qual é o meu maior orgulho? Não é o facto de ele estar a desenvolver bem a oralidade ou de compreender a maioria do discurso que lhe dirigimos. O meu maior orgulho é sentir que o Pedro é uma criança feliz. Muito, muito feliz.
Nos últimos anos tenho conhecido muitas crianças e adultos com deficiência motora, mental e sensorial. Entrei neste mundo devido à surdez do Pedro e por lá permaneci. Nele encontrei empatia e solidariedade, cansaço extremo e dias muito duros. Mas também encontrei muita felicidade. E é por isso que não me conformo quando assisto a debates como aquele a que assisti há uma semana em que, num grupo numa rede social, três pessoas defendiam convictamente que qualquer pessoa com doença hereditária se deveria abster de procriar. E neste saco metiam tudo, do autismo à deficiência profunda. Mais, uma das defensoras desta teoria acreditava que o Estado devia poder forçar as mães a abortar sempre que os problemas fossem detectados in utero. Fiquei furiosa. Respondi que o que ela defendia era eugenia na sua forma mais cruel. Eugenia na sua forma nazi. O que ela defendia, ainda que mascarado por uma suposta piedade de “escusam de vir sofrer para este mundo”, era um melhoramento (será mesmo?) da raça humana através do aprimoramento dos seus indivíduos.
É óbvio que o tom da conversa endureceu. Aparentemente, eu fui horrível quando disse que o que elas defendiam já dava para redigir a versão 2.0 das leis de Nuremberga. Mas elas acham que não foram horríveis quando sugeriram que o Pedro deveria ser impedido de ter filhos não fosse o caso de lhes passar a surdez. E quando a paciência estalou dos dois lados, começaram a sair dos teclados os mais asquerosos argumentos, entre os quais o “tenham filhos deficientes sim que nós depois cá estaremos a descontar para pagar as baixas intermináveis e as ajudas técnicas”. Quase vomitei quando li isto, juro. A Segurança Social, em 2017, teve uma despesa de exactamente 89.932,1 euros com bonificações por deficiência. E isto é uma coisa tão absolutamente irrelevante que fica até abaixo da despesa com o subsídio de morte e funeral. Quanto aos subsídios por assistência a terceira pessoa, o valor chega a ser risível: 15.468,9 euros. Um balúrdio num país que já injectou 11 263 milhões de euros só no Novo Banco (e não, isto não é demagogia, são factos).
Poucas coisas me incomodam tanto como esta ideia de querermos abolir a deficiência. Esta vontade que alguns parecem cultivar (e que quanto mais nos afastamos do período da Segunda Guerra Mundial mais à vontade se vão sentindo para exprimir “alto e bom som”) de uma raça humana sem variações, sem membros “mais fracos”. Uma raça geneticamente perfeita em que a diferença não teria lugar.
Tenho noção, obviamente, de que este pensamento não é novo. Basta olharmos para a A República, de Platão, na passagem em que Sócrates assume que o melhor para a cidade será eliminar os que forem conformados e incuráveis espiritualmente e deixar morrer os fisicamente debilitados para percebermos a noção de eugenia existente. Mas estamos em 2021 e eu gostava de acreditar que evoluímos, que eticamente chegámos ao ponto de perceber que estas questões são perigosas, redutoras e muito pouco lineares.
Francis Galton (primo de Darwin) cunhou o termo eugenia em 1883 e falava essencialmente de uma selecção artificial para aprimoramento da raça humana. Chegou a sugerir até uma espécie de eugenia positiva através de casamentos em que os mais inteligentes deviam casar-se com os mais inteligentes. O problema é que Galton foi redutor. Redutor porque não analisou mais do que o papel hereditário na inteligência. E ao fazê-lo esqueceu que a inteligência é também influenciada pelo contexto socioeconómico e que não existe apenas numa forma.
O regime nazi, em 1933, tornou obrigatória a esterilização de todas as pessoas com problemas hereditários físicos ou mentais. E sabem o que aconteceu aqui, pegando apenas num único e simples exemplo? O regime decidiu que a delinquência sexual era também hereditária e que a homossexualidade era um tipo desta delinquência e determinou a esterilização de todos os homossexuais.
Estamos em 2021, caramba. Temos o registo de tanta história e, mesmo assim, parecemos empenhados em correr atrás dos mesmos erros. É fácil dizer que a vida seria mais fácil se a raça humana fosse mais perfeita. Mas quem determinaria essa perfeição? Eu não conheço nada mais perfeito do que os meus filhos, sendo que um deles é surdo profundo. Será que ninguém vê o perigo de impedir a diversidade? Quem ditaria as regras? Será que pessoas com graus académicos elevados que defendem a eugenia (sem, contudo, utilizarem o termo) acreditam que melhorar geneticamente o ser humano é o mesmo que melhorar a raça humana? Quem disse que humanos sem deficiência física, mental ou sensorial serão melhores pessoas? Ou mais felizes?
Pela minha parte lutarei cada dia para preservar e integrar a diferença. Pelo meu filho. E pelos filhos de muitos outros. Mas acima de tudo pela humanidade, que acredito perfeita na imperfeição que só a diversidade lhe pode conceder. Num discurso em 2002, Nelson Mandela disse que “as nossas diferenças são a nossa força enquanto espécie e enquanto comunidade”, e eu acredito nisto com cada fibra do meu ser. Serei sempre pela diferença.
Carmen Garcia
Fonte: Público
1 comentário:
Parabéns pela sua contribuição Carmem. Primeiramente como mãe que ao receber o diagnóstico do seu filho vem lutando incansavelmente pelo desenvolvimento de seu filho e segundo pelo conhecimento que vem adquirindo ao longo do tempo. Compactuo com suas ideias e saberes. vivemos numa sociedade que "infelizmente", mesmo com todo os avanços, ainda extermina psicologicamente, ou pelo menos tenta, os nossos com alguma diversidade funcional. Há felicidade sim, há prazer em viver e seguir o percurso da vida. Por onde passo ministrando aulas (sou professora na área da Inclusão) que é necessário enxergar além da diversidade funcional. Há uma PESSOA ai e que merece todo nosso respeito. Somente a convivência com a diversidade afasta os estigmas. Vamos continuar essa luta. Cordiais cumprimentos e mais uma vez Parabéns Peo texto.
Cristiane de Freitas
Mestre em Educação
Doutoranda em Educação Física e Desporto com ênfase na Educação Inclusiva.
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