O Brincar de Rua - que agora está ‘recolhido’ - acabou de lançar um e-book sobre o combate à obesidade infantil. É a necessidade de combater o sedentarismo a todo o custo?
O e-book surge agora porque nunca foi tão relevante. Por graça, recuperámos agora há pouco tempo uma expressão do professor Carlos Neto, em que ele dizia que a pandemia só veio agravar o que já era evidente: os miúdos já estavam confinados em casa, entre telhados e paredes, há muito tempo, mas isso tornou-se mais evidente com a pandemia. Porque agora nós também estamos em casa e vemos que eles passam ali o dia. Ou seja, agora o problema está à nossa vista, enquanto pais. E mostra que não é só descartar para as instituições (escolas), mas também que legado queremos deixar aos nossos filhos.
É quase um grito de alerta, sobretudo nesta altura?
Sim, o e-book surge como uma chamada de alerta para esta realidade. Um estudo recente mostra que no primeiro confinamento as crianças levaram 80% do seu tempo em atividades sedentárias. É assustador porque estamos a falar de crianças. A APCOI (Associação Portuguesa contra a Obesidade Infantil) também já veio falar de uma coisa que o Brincar de Rua tinha constatado: quando voltámos à escola, os miúdos pareciam-nos mais gordinhos. A APCOI faz um estudo regular com a universidade de Lisboa sobre a obesidade infantil, e concluiu um aumento do peso nas crianças.
Quer dizer que o problema se agravou.
Os sinais estão aí. Mais uma vez, acho que só foram ligeiramente acentuados pela pandemia, mas já se evidenciavam pela nossa tendência de mundo ocidental: privilegiar o estudo, focar-mo-nos demasiado nas atividades intelectuais. Não equacionarmos como deve ser o verdadeiro impacto que os ecrãs têm na vida dos miúdos, sobretudo pelo que não dão.
Não podemos construir uma casa pelo telhado. Os ecrãs dão um conjunto de estímulos que não se adequam com as necessidades que uma criança tem. A experiência de uma criança tem de ser essencialmente sensorial e motora. Até chegar à puberdade tem de ser uma experiência de investimento corporal. E só a partir daí é que as coisas mais intelectuais começam a ganhar espaço.
E como é que invertemos isso?
Quando nós aceitamos que uma criança com 2 anos pegue num tablet, ou que uma com 5 anos passe horas à frente de um ecrã, ou que uma com 10 anos passe 300 minutos à frente de um ecrã por dia (como se passa em Portugal) é estar a construir o edifício do ser pelo telhado. E com riscos.
A edição deste e-book será única ou há outros temas que se lhe vão seguir?
Não é um e-book que se vai limitar a esta edição; há vários já planeados. Começámos justamente com a questão do sedentarismo e da obesidade infantil porque este é aquele problema cuja consequência é por ventura mais silenciosa. Uma criança obesa já pode começar a desenvolver sintomas patológicos graves. Normalmente estamos a falar do impacto a médio/longo prazo. Um corpo obeso é um corpo que se vai deteriorando e gerando patologias que se podem alojar não de forma imediata mas a médio e longo prazo. Além disso, antes de se falar da pandemia COVID, já a OMS falava desta pandemia do sedentarismo e da obesidade infantil.
E que temas estão programados a seguir?
O próximo vai ser sobre a questão dos ecrãs. A estrutura de todos os e-books será sempre a mesma: o que é que a ciência de um modo geral nos diz sobre o tema, e como é que nós podemos pensar proativamente para combater e prevenir este problema.
Sempre (ou sobretudo) dirigidos aos pais?
Sim, são sobretudo dirigidos aos pais e podem ser descarregados gratuitamente no nosso site.
Já foi esse princípio de combater o sedentarismo que esteve na base do Brincar de Rua...
É uma sequência. Foi a base do programa.
E como é o Brincar de Rua consegue suportar estes custos?
Neste momento o programa consegue suportar estes custos com ganhos que teve previamente à pandemia, e graças ao prémio da UEFA Foundation for Children, que recebemos no ano passado. A UEFA reconheceu-nos como entidade promotora da atividade física e do bem estar das crianças. Foi um prémio de 50 mil euros que nos permite ganhar aqui alguma bolsa de oxigénio, porque no final de novembro terminámos o nosso financiamento no âmbito do programa Portugal Inovação Social.
O que é que a pandemia fez, concretamente, ao programa Brincar de Rua? Que impacto teve?
O que fez foi sobretudo reforçar o nosso sentido de missão. Tal como aconteceu com outros projetos que privilegiam a maneira como nós, pais, temos que pensar o crescimento dos nossos filhos, de não continuarmos com este reng-reng de deixarmos para a escola essa responsabilidade da educação dos miúdos, pensarmos que isto amanhã logo se resolve. Há dias tivemos uma play-box sobre nutrição, e achei graça porque havia quem defendesse “os miúdos agora comem mal mas depois, lá para a frente, quando isto voltar à normalidade vão passar a comer bem”. Toda a gente sabe que isso não é verdade. Da mesma maneira que se temos uma criança que não ganha hábitos de andar de bicicleta, correr lá fora, observar a natureza, e de a respeitar, muito dificilmente se tornará ativa e preocupada com o mundo que tem à sua volta. Por isso todos temos que ter essa consciência. Essa missão de consciencializar. E trazer estas discussões, tratar disto enquanto pais e enquanto sociedade.
E como é que agimos?
Temos que pensar que infância não pode rimar com inatividade, com, indoor, com afastamento social.
As pessoas ainda não perceberam o quão doloroso isto [a pandemia] pode ser para uma criança. Ainda há dias estivemos a debater esse assunto: o que é que podemos fazer para nos mantermos próximos socialmente. Porque é importante dizer às crianças que agora não é o tempo de estarmos juntos, mas isto não pode querer dizer que deixemos de nos preocupar com os nossos vizinhos, com quem está à nossa volta, com quem se dirige a nós na rua. Estamos a falar de crianças! E não de um adulto que pode mudar novamente o chip, quando isto melhorar - embora eu tenha algumas dúvidas sobre isto.
Como é que o Programa se reorganizou? Como é que será o regresso?
O principal que nos surge é esta ideia de que temos que continuar. É cada vez mais relevante. E podermos ser um programa que mais facilmente aborda questões essenciais da vida das crianças, das famílias e das comunidades, com a perspetiva de que quando isto melhorar podermos voltar à rua. E sentimos que nas comunidades onde estamos pode haver uma verdadeira mudança, um verdadeiro movimento de transformação social.
Em quantas cidades do país já estavam presentes?
Em 26 cidades. Leiria foi a primeira, mas foi replicado por todo o país.
Com as atividades presenciais suspensas, o que tem feito o Brincar de Rua?
Quando aconteceu o regresso à escola, em setembro, também houve movimento de alguns grupos para voltar, nalgumas cidades. Somos todos humanos e por isso há pessoas com muito medo do que está a acontecer...nem todos os miúdos voltaram. Além disso depois entrámos num registo em que as regras mudavam a cada semana, eram diferentes de concelho para concelho, e isso também causou uma instabilidade e insegurança muito grande nas pessoas. Da nossa parte o que fizemos foi continuar a alertar para estas questões, colocando o foco num lado positivo: o que é que nós podemos fazer para melhorar a vida dos miúdos neste tempo de pandemia.
Mas sabe-se que é muito importante sair com as crianças à rua, nem que seja por curtos períodos de tempo...
Em todos os Estados de Emergência, no decreto que emanou de cada um deles, essa questão das saídas é clara, mas infelizmente pouco noticiada. Em Portugal gosta-se muito desta cultura de infantilizar as pessoas. Basta ver a história do ‘portaram-se mal no Natal e agora vão ficar todos de castigo”.
Assim como a cultura da culpa?
Sim, o culpabilizar. O que devíamos estar a falar é: tomem atenção, que isto tem consequências. E a questão das saídas é fundamental. Nós podemos até ser acusados às vezes de alguma irresponsabilidade (o que é perfeitamente insano) mas começámos a utilizar até uma # que é #saidecasacomresponsabilidade.
Entretanto estamos de novo a receber pessoas que se queiram transformar em guardiões do brincar, para iniciar o processo de formação.
Para voltarem à rua, mal possam?
Porque continuamos com esperança que em breve a pandemia em Portugal esteja mais controlada, e que as crianças possam voltar a brincar na rua, e se encontrarem com os seus vizinhos, com os seus amigos. E que possa regressar alguma normalidade há vida deles.
Tem esperança que o Brincar de Rua volte ao seu lugar, que são os bairros, as praças, as ruas?
Tenho a certeza. Quando perdermos essa esperança perdemos a esperança na humanidade. Temos que perceber que por muita tecnologia e muitos avanços em muitas áreas, nós continuamos a ser animais que vivem num ecossistema, e que não se podem distanciar dele por muito que a tecnologia tenha transformado a nossa vida e nos tenha permitido criar ambientes artificiais que - de uma forma às vezes bem conseguida - reproduzam aquilo que é a vida natural.
E isso só se consegue na rua, na natureza...
Estes dias tivemos a primeira apresentação internacional do Brincar de Rua, muito sui generis - a um grupo de miúdos do Canadá, que também estão em confinamento. Como vamos arrancar com as AEC’s à distância, achámos que seria engraçado fazer esse intercâmbio com miúdos de outras paragens. Eu estava a falar-lhes da minha varanda, eles conseguiam ver através do Google Earth o Castelo de Leiria, mas nada disso substitui aquilo que é a experiência real.
Sucintamente, o que é e por que nasceu o Brincar de Rua?
O projeto-piloto nasceu em Leiria, no outono de 2016. O Brincar de Rua surgiu como uma resposta ao sedentarismo das crianças, tirá-las do sofá, promovermos hábitos de vida mais saudáveis desde o início, porque sabemos que essa é uma marca identitária para a vida futura. As estatísticas mostram que o período da adolescência é conturbado, por todas as razões e mais algumas, porque há muita coisa em ebulição - mas o que a ciência também mostra é que crianças ativas provavelmente vão dar adultos ativos. As crianças querem brincar na rua, os especialistas dizem que é fundamental para o seu crescimento, mas os pais não conseguem dar o passo, porque sentem insegurança nas ruas. Enquanto profissionais ligados à educação e saúde que somos, decidimos cozinhar tudo, descobrir a fórmula mágica e…foi assim que nasceu o projeto Brincar de Rua, um programa que permite que as crianças voltem a brincar na rua, em segurança, de forma não estruturada.
E nestes tempos de confinamento, como é que os pais podem proporcionar aos filhos um tempo bom, sem uns e outros entrarem em registos de stresse e ansiedade?
Não há uma receita para isto. É sempre muito subjetivo. Em tenho uma criança de cinco anos, ao meu lado vive uma família que tem três crianças, de diferentes idades, não adianta tentar encontrar aqui uma solução mágica porque ela não vai aparecer. Mas há alguns pontos: o primeiro de todos tem que ver com a empatia. Não adianta nada constatar que os miúdos estão cansados, estão a fazer uma birra, sempre a zangarem-se entre irmãos, se não combatermos isso com empatia. Pedimos para não nos interromperem no telefonema que vamos ter, mas também temos que perceber o outro lado de lá. É a empatia. Percebermos que as rotinas deles foram completamente alteradas e agora estão com os pais o dia inteiro: a pessoa mais importante da minha vida está ali, por que razão eu não devo usar e abusar o dia todo dele? Isso implica uma necessidade de calendarizar as coisas, planificar e organizar o que são os dias da semana, em que o pai e a mãe precisam de trabalhar, mesmo estando em casa. A importância de compreender os tempos que cada um precisa. A partir dos 5/6 anos é perfeitamente possível fazer isso, seja com desenhos, esquemas ou calendário.
Fonte: Educare
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