A palavra-chave que o atual Governo e os seus parceiros parlamentares elegeram para sintetizar o traço comum às suas políticas foi “reversão”. A princípio pretendiam reverter as políticas de austeridade expressas na redução de “direitos” e rendimentos que o Governo de Passos Coelho teria concretizado. Desde os feriados à legislação laboral, às sobretaxas e aos “cortes” nos salários e pensões, tudo foi revertido total ou parcialmente na dose mínima suscetível de criar a ilusão que se revertiam as políticas de austeridade. Com tanta reversão, necessário será afirmar, o fundamental das políticas de austeridade não foi revertido. Apenas se deslocou o foco dos rendimentos para a descapitalização do Estado, das despesas correntes para as despesas de capital, com efeitos óbvios na debilitação das funções de soberania, na precarização da segurança da rede de infraestruturas e na redução da qualidade dos serviços prestados.
No caso das políticas educativas, essa reversão assumiu uma outra natureza: ela foi de carácter ideológico, antes de mais, e de criação de expectativas que dificilmente poderiam ser satisfeitas.
Comecemos pelas primeiras. A mais emblemática foi a supressão das provas finais do 1.º e 2.º ciclos — em clara violação do programa eleitoral de governo do Partido Socialista — com a sua substituição por provas de aferição no 2.º, 5.º e 8.º anos de escolaridade. Em que evidência fundamentada se inspirou a medida? Nenhuma! Apenas o “horror” dramatizado à curta experiência das provas e a cobertura de alguns “peritos” da OCDE ainda enferrujados pela velha e falsa dicotomia entre avaliação formativa e sumativa. A tese da violência sancionatória sobre os “meninos” e da perversidade dos rankings emergiram de novo, fazendo lembrar os argumentos que a secretária de Estado da Educação Ana Benavente tanto esgrimia. Acresciam, agora, as velhas ideias de que não se deve “estudar para exame” e que a memorização, a repetição e o treino estavam obsoletos, porque o que importava era compreender a “matéria” e não decorá-la. Os resultados desta primeira reversão ficaram bem expressos nos péssimos resultados apurados nas primeiras provas de aferição. O diagnóstico não poderia ser pior.
O segundo passo foi a orientação da ação pedagógica para a valorização das competências. Uma vez mais, adotou-se de forma acrítica a cartilha da OCDE atestada pela frequência inusitada com que o sr. Andreas Schleicher e os seus peritos passaram a visitar Portugal. O Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória — aprovado por um mero despacho do secretário de Estado — e as novas orientações curriculares para os ensinos básico e secundário repunham, no fundamental, os princípios do Currículo Nacional do Ensino Básico: competências essenciais, lançados por Ana Benavente (2001), agora alargados ao ensino secundário. Toda a agenda da OCDE foi incorporada nesta mistura entre as visões românticas da educação e as teorias do capital humano orientadas para as respostas educativas às supostas necessidades do mercado.
A letra e o espírito da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) que era a última réstia de uma visão humanista e personalista da educação foram também pervertidas, não obstante as declarações de fidelidade e intransigência para a sua revisão. No fundo, rejeita-se qualquer alteração séria e refletida da LBSE, para se continuar a ignorar ou remendar à medida de paixões e ideologias. Para quê refletir, se temos à mão as receitas e a cartilha da OCDE? Mesmo de órgãos que deveriam ser independentes e críticos das políticas educativas se ouve o apelo do mercado, quando se defende que a escola não está a ensinar o que a economia precisa, confinando a instituição escolar à produção de mão-de-obra para o mercado de trabalho e rompendo com o desejável equilíbrio entre desenvolvimento pessoal, formação cívica e profissional.
Surpreendentemente, todas estas alterações foram desencadeadas no final de um ano letivo para se aplicarem de imediato no seguinte. Durante o período de exames e férias lançaram-se os instrumentos fundamentais e lançou-se o desafio às escolas para concretizarem o projeto de gestão flexível do curriculum. Como princípio, a devolução do poder às escolas para uma melhor gestão do curriculum, nada tenho a opor. O problema reside na forma como, sem informação nem formação, se lançam professores e escolas numa reforma curricular que deveria ser concebida, planeada e lançada com pelo menos um ano de antecedência. Sem qualquer avaliação do que se fez e do que se faz, anuncia-se agora uma nova vaga de normativos, programas e orientações curriculares para serem lançados nos próximos três meses e aplicados no próximo ano letivo, de forma generalizada, a todas as escolas do ensino básico e secundário de todo o país.
Que avaliação foi feita da experiência em curso? Que ações foram desenvolvidas para conferir à reforma a indispensável sustentabilidade que vá além dos ciclos político-eleitorais? Houve algum esforço de consensualização com as restantes forças partidárias, de forma a garantir a continuidade das alterações?
As respostas a estas questões são invariavelmente negativas. Tudo é feito de supetão, sem diagnóstico, nem avaliação rigorosa e honesta dos problemas, sem espírito de compromisso, nem planeamento atempado das mudanças que se pretendem introduzir, como atrás afirmámos, sem informação, nem formação. Não estranhem que no futuro qualquer outro governo de cor diferente e à semelhança de governos anteriores proceda da mesma forma e retome a sanha reversiva. Tal como agora, os efeitos recairão em cima dos professores e dos alunos, das escolas e dos seus diretores, só porque não conseguiram cumprir a visão iluminada de quem nos desgoverna.
O que se está a fazer no atual Ministério da Educação não se limita a reverter as políticas do anterior Governo, o seu alcance vai muito para além dele. É um regresso aos últimos anos do século passado e primeiros do atual, é a negação das mudanças que permitiram a melhoria sustentada dos resultados dos alunos portugueses nos testes internacionais e a redução histórica dos indicadores de abandono e de insucesso escolares. Não é só a afronta às políticas dos governos do Partido Social-Democrata, é um evidente insulto às políticas educativas dos governos do Partido Socialista nos últimos 15 anos.
O que se anuncia para o curriculum do ensino básico, para o ensino profissional e para a facilitação do acesso ao ensino superior através da diminuição das provas finais do ensino secundário só nos dá razões de preocupação acrescida.
Tão ou mais grave foi a ilusão lançada sobre a melhoria das condições dos professores, educadores e bolseiros de investigação. O processo de vinculação de precários, a contagem do tempo de serviço e as progressões foram temas lançados na praça pública, criando justas expectativas de melhoria da condição laboral destes profissionais. Porém, raramente se fez uma avaliação rigorosa do impacto financeiro das medidas e do seu enquadramento no contexto da administração pública. O resultado estava à vista: o possível estava muito aquém do prometido.
Por isso estranho este silêncio comprometedor em torno das políticas do atual Governo. Tal como estranho a complacência para com uma equipa sem liderança, limitada que está à função de procuradoria da Fenprof, o indiferentismo perante a submissão à cartilha da OCDE e à evidente instabilidade que se lança sobre as escolas e os contextos de aprendizagem. Sem querer assumir o papel de ave agoirenta, receio que os testes internacionais a realizar neste mês de maio acabem por refletir esse clima de incerteza e de desmotivação. Lamentavelmente.
David Justino
Fonte: Público
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