sábado, 12 de maio de 2018

A Educação não é uma ilha

O estudo publicado recentemente pela Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre a Desigualdade em Portugal – publicação feita no seguimento de outras iniciativas de grande oportunidade e interesse – confronta-nos com realidades muito chocantes do nosso país. Vale a pena ganhar algum tempo a consultar estes dados. De todos eles realçaria três: 2,4 milhões de portugueses (cerca de um quarto!) vivem às portas da pobreza; o coeficiente de Gini (um índice que atribui um valor à desigualdade) é maior em Portugal do que nos países da Europa e nos países da Comunidade Europeia e que este coeficiente apesar de ter progredido discretamente nos últimos anos não atingiu ainda o valor mais positivo que se verificou antes da crise económica de 2009/2014. O estudo lembra ainda que, se os 10% mais ricos dos portugueses perderam com a crise 13% do seu rendimento, os 10% mais pobres perderam em contrapartida 25%. Num tempo em que a economia apresenta indícios animadores de recuperação e até de promessas de prosperidade, estes números vêm-nos lembrar a dimensão do que nos falta ainda caminhar para podermos não só ser tão prósperos como os nossos parceiros europeus, mas ser, pelo menos, tão menos pobres e tão menos desiguais.

Conhecemos os argumentos (que muitas vezes usamos) que “isto é um processo”, que “Roma e Pavia não se fizeram num dia”, que “estamos no caminho certo”. Mas os dados deste estudo levantam uma questão antiga e recorrente que é a de sabermos qual o lugar, qual o papel que podemos assumir no nosso continente e no mundo. A endémica pobreza e a enorme desigualdade são realidades que têm resistido a políticas e ciclos diferentes e que não nos auguram nada de bom. Claro que podemos advogar que – “nesta fase em particular” – as coisas melhoraram, mas o certo é que nunca melhoraram para podermos sequer ficar junto da média dos países que são nossos parceiros políticos e geoestratégicos.

Quando se pensa no que é possível fazer para acelerar a diminuição destes índices de pobreza, exclusão e desigualdade, quase sempre se perfila no pelotão da frente das prioridades a Educação. Seria a Educação que constituiria uma alavanca poderosa que permitisse atalhar estas tristes realidades. E é verdade: dispomos de dados que nos fazem crer que sim; uma pessoa com melhor nível de educação tem menos possibilidades de ser fustigada pela pobreza, pela exclusão e pode, desta forma, escapar a um destino de injustiça social. É certo que sim. Mas hoje, as pessoas que se dedicam ao estudo da Educação – informando-se e investigando sistematicamente – sabem que falar de Educação “em geral” sem se precisar do que se fala, pode ser um discurso oco e inútil.

E aqui se levanta a questão de saber como deve ser, como se deve constituir a Educação que pode alavancar, que pode contribuir para que Portugal deixe de estar em posições tão dececionantes no combate contra a pobreza, contra a desigualdade e contra a exclusão. Valeria a pena discutir longamente e extensamente este assunto e é para esta discussão que deixo três contribuições.

Precisamos antes de mais de uma Educação com recursos. Talvez se possa fazer mais com os recursos que temos, mas certamente não podemos fazer o que precisamos só com os recursos que temos. O apoio nas escolas aos alunos com dificuldades continua a ser muito insuficiente e se percentagens muito elevadas de reprovações – como as que temos e somos quase recordistas europeus – são certamente a expressão da falta de apoio que para muitos alunos é essencial para poderem ter sucesso na escola. E insucesso na escola é um forte preditor de exclusão, de desigualdade. Se deixarmos algum aluno para trás na escola, estamos a ser ineficazes com os números das desigualdades. Porquê? Porque os países menos desiguais e com menos exclusão social têm contado com o efeito positivo de menores taxas de insucesso escolar. (É óbvio que o que diminui a desigualdade é a boa aprendizagem e não uma política de “passar todos”). Mais meios para a Educação: turmas mais pequenas, mais professores de áreas não letivas na escola, mais técnicos a apoiar o trabalho docente, mais tempo para os professores se formarem e se prepararem, mais equipamento que permita um ensino laboratorial. (Na passada semana ao estudar com uma jovem as propriedades do som descobri que havia no manual muitas e criativas atividades sobre o tema. Perguntei: “Quais destas experiências fizeste?” Resposta: “A minha professora mostrou-nos um diapasão!”)

Precisamos de uma educação mais inovadora. A inovação na escola tem de ser incentivada, acarinhada, reconhecida e recompensada. Conhecemos hoje que a inovação não é um ato isolado, esporádico e inconsequente. As escolas que têm desenvolvido projetos de inovação - e são muitas - criaram uma lógica e um impulso de mudança que atrai outros fatores que galvanizam a possibilidade de inovação: o trabalho cooperativo a reflexão sobre práticas, o estabelecimento de parcerias. A frase estafada “se fizermos o que temos feito até agora, vamos conseguir exatamente o mesmo que conseguimos até agora” aplica-se aqui plenamente. A inovação é fundamental para ajudar a quebrar este círculo de pobreza e desigualdade.

Por fim precisamos de uma escola mais eficiente. Continuamos a confrontar-nos com problemas que agravam fortemente as injustiças educacionais. Dou um exemplo sobre as políticas de contratação de professores. Há alunos nas escolas públicas que passam meses e meses sem professores a algumas disciplinas; numa escola privada, isso resolve-se em dias ou numa semana. E o problema é que as aulas para os alunos da escola pública são provavelmente mais decisivas para os tirar do ciclo da exclusão do que as aulas em escolas privadas. Poder-se-iam juntar muito mais exemplos, mas entende-se como é que uma escola ineficiente ou chumbada de burocracia origina e agrava a desigualdade, a pobreza e a exclusão.

Endémicas ou não, as desigualdades têm de ser atacadas na sociedade e na Educação, como sendo uma fase do caminho, algo que pode e tem de ser melhorado e ultrapassado. É este o espírito positivo e realista que nos trouxe até aqui e nos vai levar mais longe. Eu acho.

David Rodrigues

Presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial; Conselheiro Nacional de Educação

Fonte: Público

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