Os testes de inteligência humana mostram que enquanto o QI – a medida das nossas capacidades analíticas – parece estar a aumentar, o pensamento criativo poderá estar a declinar porque o nosso mundo hiperativo exige que sejamos cada vez mais analíticos. O neurocientista John Kounios, professor de psicologia da Universidade de Drexel (em Filadélfia, nos Estados Unidos) e coautor, com o seu colega Mark Beeman, do livro The Eureka Factor (O Fator Eureka), estuda a forma como a criatividade – e esse momento em que de repente percebemos algo [insight em inglês] começam no cérebro. E explica-nos que há uma série de coisas muito simples que podemos fazer para estimular essa revelação súbita, o pensamento “fora da caixa”, a criatividade e os “murmúrios da intuição”.
Por que se interessou pela ciência da revelação súbita?
Houve uma controvérsia, na psicologia cognitiva, em torno da questão de saber se o pensamento muda gradualmente ao longo do tempo – num “processamento contínuo” – ou se o nosso cérebro passa de repente de um estado para outro e depois para outro. A ideia aceite na altura era que qualquer pensamento fluía gradualmente e que o que as pessoas sentiam como uma revelação súbita não era mais que um floreado emocional, um entusiasmo adicional no fim do processo de raciocínio, que fazia com que a revelação parecesse surgir de repente.
Nós concebemos algumas experiências, utilizando anagramas (sequências de letras que é preciso reordenar para identificar uma palavra) e descobrimos que algumas pessoas passam, num pulo, de não fazer a mínima ideia da solução a ter a solução. Isso mostrou-nos que a revelação súbita é um fenómeno real.
Foi então que decidi focar-me nas bases neurais da criatividade e que comecei a trabalhar com o meu colega Mark Beeman no sentido de mapearmos ao mesmo tempo onde e quando essa revelação súbita acontece no cérebro.
Eu uso a técnica de eletroencefalografia (EEG), que mede a atividade elétrica do cérebro e permite determinar exatamente quando é que algo está a acontecer no cérebro. Porém, a EEG não permite mostrar onde é que essa atividade está localizada. Mas o Mark usa a tecnologia de ressonância magnética funcional (fMRI), que deteta alterações no fluxo sanguíneo cerebral e é justamente muito útil para mostrar onde é que a atividade está a acontecer (embora o seja menos em termos temporais). Foi por isso que decidimos combinar as nossas estratégias.
E o que descobriram?
O estudo da questão da revelação súbita coloca vários desafios. Adorava enfiar pessoas dentro de um scanner cerebral e esperar que tivessem uma experiência deste tipo. Mas isso não é exequível. Portanto, o que fazemos é submetê-las a testes [da criatividade] chamados “problemas de associações remotas”.
Cada teste consiste em apresentar três palavras, como pine/crab/sauce [pinheiro/caranguejo/molho]. Os participantes têm então de pensar numa quarta palavra que permita formar uma palavra composta ou uma expressão familiar com cada uma dessas três palavras. Neste exemplo, a resposta é apple [porque com a palavra que em inglês significa "maçã" formam-se pineapple (ananás), crabapple (macieira) e apple sauce (compota de maçã)].
As pessoas podem resolver estes problemas de duas maneiras. Uma é a forma analítica, metódica – ou seja, através de um raciocínio analítico. E a outra é aquela que, por vezes, faz com que olhem para o problema e que a solução surja de repente na sua consciência. “Ah, é isso!”, pensam.
O que nós fizemos foi comparar a atividade cerebral dos dois tipos de soluções: a analítica e a da revelação. E constatámos que, precisamente no instante em que o problema é resolvido num instante de revelação, há um surto de ondas cerebrais gama no lobo temporal direito, situado acima da orelha – e, mais concretamente, no giro temporal superior anterior direito. As pessoas que resolvem o problema de forma analítica não apresentam essa atividade específica.
Também testámos as pessoas no seu estado de repouso e a seguir demos-lhes um monte de anagramas para resolver. E descobrimos que enquanto algumas pessoas, que designamos de analíticas, tendem a utilizar um raciocínio analítico para resolver estes enigmas, há um outro grupo, o dos “perspicazes” [insightful], que recorrem principalmente à revelação.
Também observámos que, mesmo em repouso, os cérebros destes dois grupos de pessoas funcionam de maneira ligeiramente diferente. As pessoas altamente analíticas apresentam um maior nível de actividade no seu lobo frontal esquerdo. E as mais perspicazes uma maior atividade no lobo parietal posterior direito, na parte traseira do cérebro.
Os lobos frontais têm a ver com concentração, controlo, pensamento estratégico – e as pessoas em cujo cérebro eles estão muito ativos são muito organizadas e muito focadas. Mas quando o lobo frontal é desativado, as pessoas têm tendência a ser relativamente dispersas e desorganizadas, mas também algo criativas.
De facto, as pessoas que sofrem de transtorno do défice de atenção e hiperatividade (ADHD na sigla em inglês) tendem a ter um desempenho melhor nos testes de criatividade.
Também descobrimos uma terceira categoria de pessoas, que podem ser altamente analíticas ou altamente perspicazes e que conseguem mudar voluntariamente o seu estado cerebral, passando de um destes estilos cognitivos para o outro quando necessário.
Portanto, somos capazes de pensar das duas maneiras. Há uma melhor que a outra?
Há problemas que podem ser resolvidos de ambas as maneiras – analiticamente ou através de um instante de revelação. Outros são mais adaptados ao raciocínio analítico. Se eu apresentar a alguém uma coluna de números a adicionar, não é possível esperar encontrar a resposta olhando para eles. Talvez alguns “savants” [pessoas com capacidades excecionais, como pode acontecer no autismo] o consigam, mas a maioria das pessoas não é capaz. O que elas sabem é como, passo a passo, adicionar os números e calcular o resultado.
Contudo, há problemas que não têm este tipo de constrangimentos, que são abertos. Por exemplo: como fazer para ser feliz? Para ser boa pessoa? Aqui não há regras de base particulares, não existe uma fórmula que se possa aplicar para chegar à resposta. E as pessoas resolvem frequentemente este tipo de problemas através de instantes de revelação, que são uma forma de criatividade que nestes casos se torna desejável possuir.
Ora, como é cada vez mais frequente que os problemas com que somos confrontados no mundo atual, enquanto indivíduos e enquanto sociedade, sejam demasiado complexos, imbricados e globais – o terrorismo, a poluição… –, o facto é que não existe um método simples para os resolver. Exigem criatividade.
Como é que os leitores podem estimular a sua perspicácia, a sua criatividade?
A perspicácia é como os gatos. Não é possível mandar nela. Podemos incentivá-la, mas não a podemos controlar. A criatividade e a perspicácia derivam de um estado cerebral particular. Portanto, se conseguirmos colocar-nos nesse estado mental, aumentamos as nossas hipóteses de ter revelações criativas.
E com base em estudos científicos, sabemos que o facto de alterar alguns aspetos do nosso ambiente pode ajudar.
1) Ser positivo(a): Tem havido muita investigação, nos últimos 20 a 30 anos, que mostra que ser positivo (a) aumenta a criatividade. Quando a nossa disposição é algo negativa, ansiosa, isso melhora, pelo contrário, o pensamento analítico.
A criatividade provém de um sentimento de segurança. Quando nos sentimos em segurança, somos capazes de arriscar. E a criatividade é intelectualmente arriscada. As ideias novas podem estar erradas. Pôr essas ideias em prática pode suscitar resistências.
Quando sentimos ameaças subtis, inconscientes, temos a impressão de que não nos é permitido errar. Precisamos de ficar focados no tema em causa, não nos podemos afastar do problema em si ou daquilo que temos de fazer.
Nós também observámos que a existência de prazos, que subentende uma ameaça implícita ou consequências negativas se não forem respeitados, pode gerar ansiedade e deslocar a nossa estratégia cognitiva para uma forma mais analítica de raciocínio. Os prazos podem conduzir a um aumento da produtividade analítica, mas se um empregador quer mesmo qualquer coisa “fora da caixa”, inovador e original, talvez um prazo menos rígido possa suscitar mais criatividade.
Num outro estudo, descobrimos que as pessoas que resolviam os problemas de forma analítica apresentavam maior atividade no seu córtex visual – ou seja, estavam focadas no exterior. Mas antes de as pessoas resolverem um problema num instante de revelação, a sua atividade cerebral no córtex visual diminuía: estavam a focar a sua atenção para dentro.
Também antes desse instante de revelação, verificava-se uma maior atividade no cingulado anterior das pessoas, uma região do cérebro situado no meio da cabeça. O cingulado anterior tem como função monitorizar o resto de cérebro para detetar conflitos – e também deteta diferentes estratégias de resolução de problemas. E como não é possível utilizar duas estratégias ao mesmo tempo, são as mais óbvias que costumam ser fortemente ativadas. As outras – as intuições, os palpites, que tendem a ser mais criativas, até bizarras ou excêntricas – são menos ativadas, mais fracas, mais distantes.
Porém, quando a nossa disposição é positiva, ficamos mais sensíveis a “apanhar” essas ideias inconscientes menos activadas. E quando as detectamos, a nossa atenção pode virar-se para elas e elas podem surgir na nossa cabeça como uma revelação. Pelo contrário, se estivermos de mau humor e o cingulado anterior não for activado, seguimos o caminho mais forte, que costuma ser o mais fácil. Portanto, a boa disposição expande literalmente o nosso pensamento.
2) Grandes espaços: a atenção percetual – a maneira como focamos a nossa visão – parece estar relacionada com a chamada “atenção conceptual”. Se estivermos num espaço exíguo, por exemplo a trabalhar num cubículo, não é possível dar largas à nossa atenção visual. Ela permanece focada nesse espaço estreito. E quando a atenção visual se encontra restringida, o mesmo acontece com a atenção conceptual, que se torna estreita e focada, promovendo o pensamento analítico.
Mas se nos encontrarmos num espaço amplo – num grande gabinete com um pé direito alto ou fora de portas –, a nossa atenção visual alarga-se para encher esse espaço e a nossa atenção conceptual expande-se.
É por isso que muitas personalidades criativas gostam de estar lá fora, de fazer longas caminhadas na natureza e que vão à procura de inspiração nos espaços abertos e amplos. Quando conseguimos ver ao longe, podemos pensar de forma mais lata.
3) Evitar objetos cortantes: nós descobrimos que quando as pessoas estão rodeadas de objetos pontiagudos e de arestas marcadas, tais como um sofá anguloso ou um corta-papel que parece um punhal, isso pode causar aquele sentimento subtil e inconsciente da existência de uma ameaça. E quando isso acontece, a atenção estreita-se.
Portanto, o ambiente ideal para fomentar a revelação súbita é um grande espaço, bem arejado, “mobilado” com objectos fofos e arredondados.
4) As cores da natureza: como pensamos na cor vermelha como numa cor da urgência, associada ao sangue, aos carros de bombeiros e aos sinais de Stop, ela capta e estreita a atenção. Mas as cores do meio exterior, como o azul do céu ou o verde das árvores, têm sido associadas à relaxação, à expansão, à geração de um sentimento de segurança que ajuda a atenção a expandir-se e aumenta a criatividade.
Isto não vale para todos. Se o nosso passatempo favorito for cultivar rosas, poderemos associar o vermelho às rosas que amamos.
5) Fazer pausas: quando estamos bloqueados e marcamos um intervalo para fazer algo completamente diferente, esquecemos a má ideia em que estávamos fixados. Isso permite que outras ideias, melhores ideias, cheguem à superfície da nossa consciência como bolhas. E se estivermos a trabalhar num problema sem o conseguir resolver, a pausa torna o nosso cérebro mais sensível as coisas à nossa volta relacionadas com o problema. Ficamos mais observadores e conseguimos estabelecer uma associação, que a seguir se torna consciente sob a forma de uma súbita revelação.
6) Dormir: uma das ferramentas mais poderosas para promover a perspicácia é o sono. Se estiver bloqueado(a), durma uma sesta, vá para a cama. Conseguirá expurgar melhor a ideia inútil em que se fixou e ficará mais sensível a pistas suscetíveis de resolver os problemas.
Uma das descobertas mais interessantes das neurociências dos últimos 20 anos é que quando adquirimos memórias, elas são armazenadas sob uma forma temporária e frágil, semelhante ao cimento fresco. O cimento começa por ser mole e só endurece quando seca – tornando-se então forte e durável. As memórias também. Endurecem graças a um processo de consolidação, que decorre principalmente durante o sono.
De facto, a consolidação da memória também transforma a memória. Faz ressaltar os pormenores, as relações ocultas e pode ser a base da criatividade e da revelação.
É por isso que existem tantas histórias de pessoas que acordam a meio da noite com uma ideia nova ou a solução de um problema. Tal como Paul McCartney, que acordou uma manhã com uma melodia na cabeça. Era a da canção Yesterday. Simplesmente, apareceu. O sono é um supercarregador da criatividade.
7) Não fazer nada: não fazer nada é um trabalho criativo, porque quando estamos conscientemente a não fazer nada, a parte consciente ocupa apenas uma minúscula parte do nosso cérebro – e que o resto, a parte inconsciente, esse não pára. Há um processo que os psicólogos cognitivos chamam “incubação” – que é o cérebro a remoer associações. Essas associações podem depois surgir na consciência como revelações súbitas. O sono e o não fazer nada são dois supercarregadores do processo de incubação, por que deixam vaguear a nossa mente sem haver nenhuma tarefa especial para cumprir.
Quando as pessoas têm constantemente a mente cheia de tarefas, isso inibe o processo de incubação. Não quero dizer com isso que as pessoas devam tornar-se eremitas ou livrar-se de todos os gadgets, que também incentivam a incubação. Mas precisamos de um equilíbrio entre não fazer nada e fazer coisas. Precisamos de ambos para alimentar a criatividade e a perspicácia.
8) Tomar duche: o duche é um sítio fantástico para deixar vaguear a mente, para incubar pensamentos e preparar o terreno da revelação. Debaixo do chuveiro, a água é cálida, não sentimos fronteiras entre a nossa pele e o exterior do nosso corpo. Sentimo-nos expansivos. Há um ruído branco em pano de fundo e o que vemos está um pouco desfocado, levando-nos a virar o nosso pensamento para dentro, como se estivéssemos em condições de privação sensorial. Permite que a nossa mente vagueie e que a nossa atenção se expanda. É por isso que as pessoas tendem a ter grandes ideias no duche.
Fonte: Exclusivo PÚBLICO/Bloomberg/The Washington Post
Sem comentários:
Enviar um comentário