Das 85 instituições que nos chegaram provindas do início da idade moderna (séc. XVI) e que mantêm no essencial as suas características, 70 são universidades. O motivo para tal está relacionado com o respeito dos vários poderes pela tarefa das universidades na preservação e capacidade de produzir conhecimento e qualificação. Acresce a relativa imutabilidade dos seus produtos base de formação. Porém, nas décadas recentes, com a sua democratização, parece ter chegado o tempo das mudanças e alterações. Desde 2006 o ensino superior passou a funcionar (também em Portugal) enquadrado num acordo de cariz europeu conhecido por processo de Bolonha.
O mesmo teve como principais alterações que para se obter uma licenciatura bastariam três anos, correspondendo a 180 créditos. O ensino devia ser de banda larga tendo em atenção a volatilidade do conhecimento. Aos mestrados (cuja frequência devia expandir-se), caberia a função de especialização (tenderiam a repor o antigo 4º ano da licenciatura). O ensino devia passar de magistral e expositivo para interativo, em que o processo de aprendizagem era colocado no aluno, desenvolvendo-se as capacidades de investigação, de trabalho autónomo. Acrescia a promoção da mobilidade.
Passados estes anos, podemos fazer um breve balanço da forma como estes pressupostos funcionaram/vão funcionando.
Desde logo há uma linha divisória fundamental: as faculdades/instituições que captam uma maioria de alunos com notas acima de 15 valores têm mais facilidade em aplicar o processo de Bolonha, pois estes trazem um nível de preparação que potenciam o ensino baseado na aprendizagem autónoma (sabem andar pelo seu próprio pé). Dos restantes, a maioria necessitam que lhes peguem na mão, que os guiem, de maior trabalho e apoio do docente, pois as suas competências estão aquém do desejável para enveredarem pelo trabalho autónomo. Este aspeto interage com outras alterações. Vejamos.
O encolhimento dos cursos de quatro para três anos levou a que muitos programas fossem compactados para suportarem matérias tidas como fundamentais, o que resulta numa sobrecarga de trabalho em pouco espaço de tempo; à retirada de muitas Unidades Curriculares tidas como não fundamentais mas que forneciam o enquadramento das matérias, ajudando o estudante a amadurecer e aumentar os seus conhecimentos. Os cursos focalizaram-se nas matérias tidas como úteis ou indispensáveis. Como resultado, o diplomado até pode ter melhores competências de saber-fazer, mas, sabe pensar? Sabe o enquadramento de missão? A história da coisa? Não é isto a negação da apregoada banda larga?
Os mestrados passaram a ter uma abordagem mais ligeira. Todavia, as exigências de corpo docente qualificado e de produção científica adequada limitam a sua criação. Acresceu os sucessivos cortes de financiamento que empurraram as instituições para obterem receitas através de propinas elevadas. O resultado é que, enquanto no passado o 4º ano era o natural último ano da licenciatura, muitas vezes focalizado na especialização do aluno, agora a maioria não acede ao mestrado pois não tem dinheiro para suportar a propina. E para muitas famílias, uma vez atingida a meta da licenciatura, é tempo do novel diplomado ir trabalhar. Neste seguimento, há um desinvestimento do Estado no ensino superior e uma transferência de custos para as famílias. O maior problema está todavia na perda de competências pois os diplomados com três anos estão aquém dos anteriores com quatro anos. Perdem os próprios, perde o país.
Há hoje muitos estudantes que terminam os cursos com 21 anos; são imaturos; as famílias tendem a proteger mais que no passado e têm menos experiências acumuladas em termos de resiliência. Leem menos jornais e sabem menos de atualidade pois estão muito focados em circuitos fechados, como as redes sociais. As licenciaturas de três anos vem agravar a situação pois reduzem o tempo de contacto com a instituição, com colegas, com o movimento associativo, com os professores, com a academia. Perde-se em parte o sentido de corpo, de pertença, a fase de amadurecimento pós adolescência. Por outro lado, dá-se um bom impulso ao desemprego pois com o ciclo de formação curto, mais facilmente se engrossa a estatística conexa. Desvaloriza-se ainda socialmente o diploma de licenciatura.
Quanto à mobilidade, é fácil encontrar à chegada ao ensino superior valores de 50% de estudantes que declaram ter intenção de efetuar mobilidade. Porém, quando terminam o curso apenas 2% o concretizou. Questionados sobre o motivo, o principal argumento é a falta de capacidade financeira.
Sabemos hoje de forma clara que os estudantes provindos de famílias com mais capital humano acumulado e/ou poder económico, chegam melhor preparados ao ensino superior. Podem pois rentabilizar o modelo Bolonha, sendo mais autónomos, frequentando mestrados no seguimento da licenciatura e usufruindo da mobilidade. Os restantes tendem a ser prejudicados pois o modelo anterior de licenciatura de quatro anos fornecia-lhes uma formação mais robusta e preparava-os melhor, quer do ponto de vista das competências adquiridas quer da maturação para enfrentar o mercado de trabalho.
É fácil encontrar loas ao processo de Bolonha em muitos relatórios de avaliação entretanto produzidos. Para as grandes instituições e países que disputam o mercado internacional de formação, admito que o mesmo é interessante. Para Portugal e nomeadamente para os filhos da classe média baixa e baixa, tenho sérias dúvidas que o resultado final seja positivo. Neste seguimento, é muito provável que o atual modelo seja portador da capacidade de redução da mobilidade social ascendente. Naturalmente que este artigo é apenas uma opinião pessoal enquanto docente do ensino superior.
Hélder Carrasqueira
Docente do ensino superior
Fonte: Público
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