Filhos sobredotados, trabalhos dobrados. O proverbio não existe. O seu significado, no entanto, é bem conhecido para alguns encarregados de educação. São alunos com uma “extrema necessidade de aprender”, explica Helena Serra, autora do livro Será o meu filho sobredotado? (2015).
A fundadora da Associação Portuguesa de Crianças Sobredotadas, que também dirige um gabinete especializado na realização de testes de avaliação nesta área, tem encontrado muitos casos de crianças mal compreendidas. “Os métodos de ensino-aprendizagem não são concebidos para atender à criança sobredotada.”
No entanto, através dos Despachos Normativos n.º 50/2005, n.º 24-A/2012 e n.º 13/2014, a legislação portuguesa prevê algumas medidas para ir ao encontro das “capacidades excecionais” destes alunos, como a realização de planos de desenvolvimento, com atividades de enriquecimento curricular, a possibilidade de a escolar formar grupos temporários de alunos que aprendam de forma mais rápida e, se for caso disso, até avançar de ano - os ingredientes legais quase perfeitos para promover o sucesso dos sobredotados, com a cereja da chamada “diferenciação pedagógica” servida no último despacho.
Ainda assim, a escola falha com eles por não conseguir ensinar com igual voracidade. Envolvem-se profundamente em determinadas tarefas, mas ficam aborrecidos na sala de aula, muitas vezes com o dedo no ar sem que o professor lhes dê a vez para responder, porque sabem sempre quase tudo. O EDUCARE.PT testemunhou os problemas que um QI acima da média coloca ao sistema educativo português.
Marta só queria a companhia dos adultos
Durante a gravidez descobriu que não poderia levar a gestação até ao fim. O cordão umbilical dava duas voltas ao pescoço da filha, que corria risco de asfixia. Ana Freitas já tinha perdido quatro bebés. Marta, hoje com 9 anos, nasceu bem, mas a mãe nunca deixou de temer que “pudesse vir a ter problemas.” Por isso, quando aos 6 anos a menina “deu alguns sinais de ser diferente”, a mãe julgou que teria problemas de saúde mental.
Marta lia e escrevia ainda estava no pré-escolar. A mãe, professora de karaté, “notava que ela memorizava tudo e não lhe passava nada em branco”. Quando entrou para a escola, Marta estava radiante por estar a trabalhar numa sala de aula, como dizia à mãe. Mas a felicidade durou dois meses, recorda Ana Freitas. Depois começou paulatinamente a perder a motivação. “Os colegas gozavam-na por ela ter as melhores notas.”
Marta sofria por ser apontada nas aulas. Apesar das suas “capacidades cognitivas fabulosas”, conta a mãe, a professora começou a queixar-se de que a caligrafia de Marta era “péssima”. Não dava erros ortográficos. Tinha pouca apetência para o desenho das letras. A mãe correu com ela para o oftalmologista. Não precisava de óculos. “Havia um problema, mas eu não sabia qual era. Pensei que fosse alguma deficiência, relacionada com a gravidez de risco, a manifestar-se.”
Ana Freitas estava longe de pensar que Marta seria sobredotada. “As minhas primeiras pesquisas levaram-me a pensar numa depressão. Ela tinha uma tristeza profunda. Não queria brincar com os colegas da sua idade. Só queria a companhia dos adultos.”
Quando teve nas suas mãos a avaliação psicológica da filha, a mãe nem queria acreditar no nível elevado do seu QI. Ficou assustada, mas ao mesmo tempo aliviada. Tinha encontrado o problema. Parte da solução implicava avançar a Marta de ano. A descoberta da sobredotação entre as crianças na escola e o “burburinho” dos pais dificultaram a vida da aluna. Marta fez o 2.º e o 3.º ano num ápice. Marcou presença em todos os quadros de honra e terminou em julho o 4.º ano.
Ainda assim, o último ano do 1.º ciclo não correu como seria de esperar. “Em outubro, a Marta já estava outra vez a entrar em depressão, porque o ritmo das aulas era muito lento para ela.” Em abril, a mãe era forçada a falar de novo com a professora, mas nada havia a fazer, constatou Ana Freitas: “O sistema não permite alunos com negativa, então, como a Marta já sabe tudo, a professora deixa-a “sossegada” e vai dar atenção aos outros.” De janeiro a maio, a aluna foi mantida na sala de aula nesse estado de sossego que só a ela incomoda. Voltaram os problemas.
Sistema barra respostas mais criativas
É na Matemática que Marta gosta de encontrar formas cheias de esquemas para resolver os problemas mais simples. Recebe elogios da professora em privado. Só não pode mostrar aos colegas, para não os baralhar. “Não digas a ninguém”, pede-lhe a professora. Num secretismo que tanto a protege do gozo como a deixa desmotivada. A Português, as composições da Marta estão sempre bem. Por isso, nas correções, a professora deixa-a para último. “Ser sempre a melhor tem destas coisas”, confidencia a mãe, lamentando: “Há falta de diversificação e de respostas para potenciar as capacidades da Marta.”
“O próprio sistema de ensino coloca barreiras aos professores que queiram dar respostas mais criativas na sala de aula”, explica Ana Freitas, dando uma série de exemplos: “O facto de o ensino obedecer a metas curriculares, ser tudo limitado com prazos ridículos, como a realização de exames em maio quando as aulas acabam em junho.” Mais? “As escolas terem de avaliar um mês depois de começar o 3.º período, os quadros de honra, os pontos para isto e para aquilo”, ou seja, “é tudo à base de valores”, resume.
O 5.º ano trará um novo desafio para Marta. A mãe fez tudo para a matricular numa escola que considera “exigente”, com um ensino especializado na área da música, porque a filha estuda piano de cauda e violino. Adivinha-se a sua participação em espetáculos e recitais, promovidos pela escola, com reputação de concorrer a prémios na área da literatura e da poesia.
Manter a Marta ocupada com atividades todos os dias, “exceto ao domingo, quando não tem os escuteiros”, foi a forma que Ana Freitas encontrou de a motivar. Depois da escola, faz os trabalhos das 17h00 às 18h00 na sala de estudo; logo a seguir tem música ou desporto, e nunca se cansa. “Nas férias, às vezes, caio no erro de não a levar às atividades e arrependo-me porque ela fica mais agitada.”
De resto, Marta “é uma miúda fácil”, orgulha-se a mãe. “Gosta muito de cumprir, tem o quarto num caos, a pasta da escola também, mas é muito exigente com ela própria”, e perspicaz. Quando se viu numa sala de aula com amigas mais velhas, e depois de muitos conflitos, Marta arranjou um sistema para fazer amizades: levar os brinquedos na mochila, a começar pelas Barbies. “Ao levar alguma coisa para a escola, ela percebeu que conseguia atrair sempre o interesse de alguém e nunca ficava a brincar sozinha.”
André nunca teve a oportunidade de fazer amigos
Suspeitou muito cedo que o filho seria sobredotado. As dúvidas foram totalmente dissipadas quando o miúdo se submetia a uma série de testes de avaliação na Associação Portuguesa das Crianças Sobredotadas. Mas a história de André (nome fictício), 11 anos, é feita de reveses que a mãe, sob anonimato, conta com a voz embargada e uma grande revolta. “Como é possível que o Estado Português dê apoios aos alunos com dificuldades de aprendizagem, mas nada faça pelos que têm capacidades acima da média?”
Os problemas começaram no ano letivo de 2013/2014. André frequentava o 5.º ano no ensino articulado de música. A mãe submetia toda a documentação que provava a sua sobredotação. Ainda assim, via rejeitado o pedido para o filho avançar de ano. “A escola duvidou dos elementos que constavam nos relatórios, não conheciam a legislação para estes casos, fui eu que tive de a entregar ao diretor de turma”, recorda a mãe. O processo arrastou-se. “Fui olhada como se quisesse pôr o meu filho num pedestal.” Causou danos emocionais ao miúdo: “Foi discriminado pelos professores. Faziam-lhe testes mais difíceis e de surpresa!”
Até hoje, a mãe não entende o que se passou. Sabe que os professores da escola de música, testemunhas da capacidade do filho, não foram chamados ao Conselho de Turma, que vetou a progressão de ano. Sabe que “até a professora do ensino especial, que nunca tinha feito nenhum teste ao André, disse não”.
Finalmente, o ano passou. André mudou de escola. Todavia viu-se forçado a frequentar o 6.º ano. “Porque lhe tinham cortado as pernas no ano passado”, insurge-se a mãe. Com o problema por resolver, em outubro é feita outra tentativa para permitir ao aluno avançar de ano. Os meses passaram sem que até maio os pais tivessem obtido retorno da parte da direção. Ainda assim, desta vez, tudo corria de forma diferente: mais recetividade da parte dos professores.
A própria escola andou à procura de respostas. Sem êxito, porque a legislação não é clara relativamente ao avanço em anos de fim de ciclo e sujeitos a exames nacionais. “Daí toda a ambiguidade e também receios por parte da escola de estar a fazer algo errado”, constata a mãe que diz compreender a situação.
Não compreende é o ziguezague percorrido a tentar desbloquear a vida escolar de André. Através de cartas, emails e telefonemas para as várias secções, secretarias e direções-gerais do Ministério da Educação e Ciência. Um labirinto de “ora ligue para ali”, “faça uma exposição a este”, “envie uma carta àquele”. Os destinatários - ministro da Educação, secretário de Estado do Ensino Básico - várias vezes repetidos.
E, no entanto, o óbvio: André tira notas muito boas a quase todas as disciplinas. Como acontece com muitos sobredotados, não é excelente em todas as áreas. A Educação Física e a Educação Visual são os seus pontos fracos. Nada que merecesse o “castigo” de ter ficado preso no 6.º ano, um grande contratempo gerador de uma maior frustração. “Este ano letivo já devia estar no 7.º ano”, insiste a mãe. O final do ano letivo assim o ditou, finalmente. Mas a mãe não se conforma com o travão imposto ao filho e assume que, por sua vontade, André frequentaria já o 8.º ano.
Desde que entrou para o 1.º ciclo, André foi um nómada na escola, com périplo por quatro estabelecimentos de ensino. Por essa razão, lamenta a mãe, “nunca teve oportunidade de criar um núcleo de amigos, como muitos dos outros seus colegas”. A vida escolar não tem sido fácil e a mãe não está otimista quanto ao futuro. Vê o filho quase sem amizades, cabisbaixo. “Ele tenta integrar-se, mas com tudo o que passou vai ter sempre tendência para se isolar.”
Fonte: Educare
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