No meu primeiro dia de aulas fui para a escola a pé, de mão dada com a minha mãe, e profundamente orgulhosa da mochila que levava às costas e que tinha quase metade do meu tamanho. A minha mãe nunca se queixou, mas imagino que os seus ouvidos devam ter sangrado com a força da minha tagarelice que, durante o percurso, esteve para lá de incontrolável. Tudo o que eu queria era chegar ao edifício antigo e de tectos muito altos onde, diziam-me em casa, iria aprender a ler, a escrever e a perceber o mundo.
A escola cheirava a madeira. E uma senhora muito baixinha, toda vestida de preto e dona de uns olhos tão azuis como o céu, veio receber-nos. Era a menina Marcelina, que, mal sabia eu, se tornaria uma das grandes referências da minha infância. A menina Marcelina, que estava bem mais próxima da velhice do que da infância, tinha a importante missão de tocar o sino que indicava o início e o fim do recreio, ajudava-nos a abrir os pacotes de leite que bebíamos ao intervalo, mediava todos os conflitos entre alunos e, mais importante do que tudo isso, era a única pessoa no mundo que estava autorizada a arrancar-me os dentes que abanavam.
Lá em casa, bem tentavam convencer-me de que também sabiam arrancar dentes sem fazer doer, mas eu sabia que ninguém se podia equiparar à menina Marcelina, que, com a ajuda de papel higiénico, arrancava dezenas de dentes por ano. Lembro-me até de um dia em que eu e um colega chamado Fernando, com dentes já mais soltos do que presos, fomos pedir à menina Marcelina para nos libertar daquela moléstia, mas não nos conseguimos entender sobre qual dos dois seria o primeiro. E foi então que a menina Marcelina mostrou todo o seu talento e, com uma mão em cada boca, resolveu a questão com um profundo equilíbrio. Um, dois, três e a dupla de dentes cá para fora ao mesmo tempo.
Há uns anos, trabalhava eu na cardiologia, e os olhos muito azuis que tão bem conhecia da escola primária olharam-me do interior de uma maca. Era a primeira vez que a via sem ser de preto, uma vez que já lhe tinham vestido um pijama do hospital. Mas percebi o momento exacto em que ela me reconheceu porque sorriu. E eu soube que ia ficar tudo bem porque, e escusam de me tentar convencer do contrário, a menina Marcelina da minha meninice é imortal.
Mas voltando à escola, lembro-me de repetir a sensação de orgulho, a ansiedade e a tagarelice quando passei para o quinto ano. Uma escola nova, enorme e já sem o ar salazarista da anterior. Um horário cheio de disciplinas, salas que mudavam a cada hora e muitos professores diferentes. Parecia que tinha entrado noutro mundo e, confesso, senti muitas vezes saudades do toque do sino porque, na escola nova, a campainha era mais estridente e muito menos amigável. Não foi fácil habituar-me às novas rotinas, confesso. Mas hoje guardo com carinho tudo o que ali vivi durante cinco anos.
O professor Mourato, de História e Geografia de Portugal, uma espécie de sumidade na escola e na comunidade, fazia-nos levantar e dizer “bom dia, senhor professor” de cada vez que entrava na sala. Nas aulas dele o silêncio era sepulcral, mas não pensem que o fazíamos por medo. A verdade é que não existia um único aluno que não gostasse daquele homem enorme, que ensinava como ninguém. A professora Leonor, de Matemática, grávida de um menino que, disse-nos um dia, se ia chamar Tomás Maria. E o bilhete que a Antónia me mandou a dizer “coitadinho do bebé”. A professora Fátima Rainho que tinha uma caneta vermelha onde encaixava o giz e que fazia um barulho delicioso a escrever no quadro. Um dia, em que a minha mãe me obrigou a vestir um vestido que eu não queria, a professora Fátima chamou-me ao quadro e disse “hoje estás muito bonita”. E de repente eu já não queria despir aquele vestido nunca mais.
Os anos foram passando e eu conseguia dizer-vos o nome de todos os professores que passaram pelas minhas turmas. Do professor Dario, meu primeiro professor de Português, até à professora Adélia, a última. E o nome das auxiliares também. Da dona Ludovina do bar à dona Fernanda da biblioteca. Aquelas pessoas que a escola me deu, todas elas, fizeram parte da minha vida e ajudaram-me a estar aqui hoje.
Há uns meses reencontrei uma professora que me dizia que quando tinha visto um texto meu no manual dos actuais alunos dela tinha ficado cheia de vaidade. Acrescentou com um sorriso que era como se, no fundo, aquele texto também fosse um bocadinho dela. E a verdade é essa mesma. Não há uma palavra que eu escreva que não pertença a quem me ensinou as primeiras letras, os primeiros ditongos, os primeiros verbos. Não há uma palavra que eu escreva que não pertença aos professores que me acompanharam ao longo do caminho.
A escola é muito mais do que um edifício ou do que um lugar onde as crianças aprendem a ler e a escrever. A escola são pessoas que ajudam a construir outras pessoas. E poucas missões são tão nobres como essa. Sempre tive a sensação de que foi a escola que, devagarinho e com cuidado, pousou o mundo nas minhas mãos.
É assustador pensar num mundo sem educação. Uma sociedade não educada transforma-se num bando de mosquitos suicidas que, sem questionar, segue apenas a luz mais brilhante. Uma sociedade sem educação é pouco mais do que um rebanho que precisa de um pastor para a guiar. Sem educação deixamos de questionar, perdemos a capacidade de interpretar, aceitamos tudo o que nos dão, despidos do sentido crítico que nos permite evoluir.
Nos últimos tempos, os professores saíram à rua. Na minha antiga escola há dezenas de T-shirts penduradas nos muros frontais, cada uma delas pertencente a um professor do agrupamento. E quando paramos uns minutos para falar com eles percebemos o cansaço, o desânimo e a burocracia que os esmaga. E eles são as escolas.
Não quero analisar aqui a forma como foi organizada a greve, não me interessa tecer juízos sobre sindicatos e muito menos tenho vontade de me imiscuir em lutas políticas. Mas não consigo deixar de escrever estas palavras que, espero, todos os professores sintam como uma carta de amor.
Não acredito num país que não respeita os que preparam as futuras gerações. Não acredito num país que destrata os que tomaram o ensino como missão. Não acredito num país que não percebe que quando desacredita um professor está a desacreditar a escola inteira.
Os meus professores e as minhas auxiliares foram a minha escola. Muito mais do que os edifícios. Foram eles que me trouxeram até aqui. E hoje sinto que devo, pela primeira vez, inverter os papéis. Agora é a minha vez de lhes estender a mão, de lhes agradecer e de dizer que não os esqueço.
Na luta por manter viva a escola, eu estarei sempre do lado dos que, todos os dias, trabalham para a manter de pé. Que ninguém se iluda: os professores são os pedreiros do mundo.
Carmen Garcia
Fonte: Público
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