sábado, 28 de janeiro de 2023

Dislexia. As falhas incompreendidas

"Que horas são? Não consigo perceber este relógio.” “Isto é um ‘b’ ou um ‘p’?” “Percebi 6 e não 9.” “Tinha de virar à direita e não à esquerda.” As memórias de trocas, confusões e enganos são tão antigas quanto as lembranças conseguem recuar. Diana Silva andava ainda na Primária quando se começou a aperceber de falhas que cometia que mais ninguém na sua turma parecia ter. “A dislexia sempre existiu, embora antes do diagnóstico não tivesse esse nome, toda a gente se apercebia que havia algo de errado comigo.” Hoje, com 29 anos, e à distância que o tempo dá, percebe que não tem nada de “errado”, só precisava de compreensão e um entendimento especializado.

As trocas e confusões ganharam nome quando andava já no 6.º ano de escolaridade. A diretora de turma da altura chamou a atenção dos pais para “algo estranho”. Eram os ‘p’ que apareciam sempre na vez de ‘b’, tanto na escrita como na leitura. As contas de matemática que envolviam os números 6 e 9 vinham sempre trocadas. E, o que, segundo Diana Silva, foi “a gota de água”: a clave de sol. “Estávamos no ano de aprender música e todos os meus colegas desenhavam na perfeição aquele símbolo musical, menos eu.” Os pais decidiram então levá-la a uma psicóloga. E lá chegou o tal nome: dislexia.

Dislexia é uma disfunção neurológica, de base neurobiológica ou genética, ou seja, “não é algo que se desenvolva”, é orgânico. Está integrada na lista de perturbações de aprendizagem, sendo notada, principalmente, durante os anos de escolaridade. Escrita, cálculo, leitura e raciocínio são algumas das áreas afetadas, já que há uma disfunção na estrutura e funcionamento dos neurónios. Quem explica tudo isto é Marta Calado, psicóloga clínica e da saúde da Clínica da Mente, que avança um mito comum: “Esta perturbação pode ser associada a baixos níveis cognitivos, mas isso é totalmente falso”.

Intervenção precoce

A dislexia está presente em indivíduos com inteligência normal ou até acima da média e é diagnosticada quando existe “um desfasamento entre a capacidade cognitiva e a de aprendizagem” – quando o problema não está em reter conhecimento, mas em conseguir adquiri-lo.

Por não haver uma cura que erradique estas dificuldades, a dislexia deve ser acompanhada por um tratamento terapêutico, que irá facultar ferramentas para que se aprenda a lidar com as falhas cometidas pelo cérebro. Não são medicamentos, mas antes educação e ensino. “É um problema que se mantém ao longo da vida mas que necessita de uma intervenção precoce”, esclarece a especialista Marta Calado.

Ainda que o acompanhamento acertado só tenha chegado a Diana Silva, natural de Santo Tirso, mais tarde, enquanto criança, adolescente e jovem foi “aprendendo a lidar com esta questão”. “Sempre encontrei formas de contornar, se não sabia ver as horas num determinado relógio, procurava outro; se não conseguia dizer determinada palavra, avançava; se não conseguia seguir direções, procurava não o fazer.” Com as estratégias que foi “desenvolvendo” fez todo o percurso escolar sem reprovar.

Há um diagnóstico. E depois?

As maiores dificuldades na escola surgiram, aliás, quando houve o tal diagnóstico no 6.º ano de escolaridade. “Agora tinha um nome para a minha dificuldade, mas do que valia? Os professores não sabiam lidar com isso e os outros alunos olhavam-me como se tivesse uma doença.” O nome deu realidade ao problema, o que, para Diana Silva, significou um choque com o desconhecimento e desinformação da população. A situação melhorou já no Secundário quando, no 10.º ano, se inscreveu no ensino público.

“Até ao Ensino Secundário, andava numa escola privada e numa psicóloga paga pelos meus pais, que, percebo agora, não me ajudou em nada. Mal entrei na rede pública, a situação alterou-se radicalmente.” Tal como é indicado por lei no caso de diagnóstico de uma perturbação de aprendizagem, Diana Silva teve acesso a uma professora de Ensino Especial dedicada ao seu processo de aprendizagem e a uma psicóloga. A tal professora que lhe foi atribuída, recorda, “foi excecional”. “Foi com ela que percebi que não precisava de ter vergonha desta minha característica e que ter dislexia não é um problema.” Trata-se apenas de uma dificuldade na aprendizagem, que consegue ser trabalhada e contornada.

Investir na educação

Helena Serra, presidente da Dislex – Associação Portuguesa de Dislexia, não se mostra satisfeita com a atenção dada aos estudantes com esta perturbação de aprendizagem. Primeiro, denuncia um subdiagnóstico. “Os sinais não são notados e andam ano após ano sem ser identificados e sem ter qualquer apoio.” Os erros, prossegue a dirigente, são frequentemente (e erradamente) atribuídos a “preguiça, falta de atenção ou incapacidade intelectual”. Tudo mitos que a Dislex procura desfazer e que têm vindo a prejudicar uma comunidade que, aponta a associação, ronda 10% da população escolar.

Outra denúncia avançada por Helena Serra é a falta de investimento do Governo na educação dos jovens a quem é diagnosticada dislexia. Há testes adaptados, em tempo e conteúdo, são colocados junto do quadro e do professor, procura-se ter uma atitude de apoio. Tudo isto são medidas que acontecem atualmente na rede escolar face a um aluno com dislexia, mas a presidente da Dislex defende que é necessário “ir mais além” e não ficar por “meras medidas de envolvimento na sala de aula”.

É necessário ir à raiz do problema: a aprendizagem. E suportar a aprendizagem de forma individualizada e consoante as necessidades de cada um, indica Helena Serra. O que, diz, não acontece. “Há um professor especial que tem de ser destacado para uma determinada turma mais pequena, para que esse aluno tenha mais apoio, mas grande parte das vezes esse professor selecionado não tem qualquer formação na área e não tem como fornecer as melhores ferramentas terapêuticas ao jovem em questão.”

As comorbilidades

Mas a dislexia não deve preocupar apenas durante a idade escolar ou no início de vida. Conviver com dificuldades de aprendizagem ao longo da vida pode levar a que outras perturbações se desenvolvam, como alterações no comportamento, ansiedade, baixa autoestima, baixas expectativas, entre outras, enumera Marta Calado. Procurar ajuda profissional é sempre o mais acertado, para que, através da terapia, se garanta que há “uma reeducação e reequilíbrio emocional, redução do stresse e ansiedade e promoção da atenção e motivação”.

As comorbilidades associadas à dislexia, nota a psicóloga da Clínica da Mente, acontecem, por norma, face aos comportamentos do meio envolvente – amigos, família, colegas, professores. “Ainda há um grande desconhecimento e desinformação sobre a dislexia e isso faz com que, muitas vezes, se tenha comportamentos errados para com a pessoa que sofre desta perturbação, como culpabilizá-la pelo erro ou esperar pouco da sua carreira escolar ou profissional.” Um diagnóstico de dislexia não é sentença para o insucesso escolar ou para estar fadado a um emprego de menor esforço intelectual – o que, denuncia Marta Calado, acontece diversas vezes, já que, perante um diagnóstico de dislexia, a primeira recomendação da escola e da família é seguir um curso profissional. “Com o acompanhamento certo é possível fazer o que qualquer outra pessoa faz.”

Hoje, Diana Silva trabalha como técnica administrativa. Conseguiu superar as comorbilidades de falta de autoestima e ansiedade, derivadas do erro de falhar. O seu dia a dia envolve documentos, letras, números. Está constantemente à prova. Com o apoio terapêutico que teve (e tem, já que ainda hoje é acompanhada em psicologia) ao longo dos anos, arranjou ferramentas para lidar com as falhas que já conhece. “Se sei que dou determinado erro, a melhor técnica que tenho e que uso ainda hoje diariamente é a recapitulação. Vou atrás no documento e revejo o que escrevi.” Em vez de ler uma vez antes de sair do trabalho, lê duas ou três. E a dislexia raramente vence o seu cuidado redobrado.

Sinais a considerar em idade pré-escolar:
  • Pobreza de linguagem;
  • Não conseguir construir frases com sentido;
  • Não decorar letras de canções;
  • Mostrar dificuldade em jogos de rimas;
  • Troca de cores e direção;
  • Desorientação no espaço (perde ideia de onde está ou onde tem de ir);
  • Falta de noção temporal (não cumpre o tempo estipulado para as tarefas).

Sem comentários: