As escolas não podem fechar. É tão simples como isto. E não é apenas porque, se elas fecharem, lá teremos nós de aturar os miúdos em casa, a marinar num tédio digital que os embrutece a eles e nos culpabiliza a nós. As escolas não podem fechar porque o acto de aprender não pode depender de uma epidemia ou de uma catástrofe qualquer. A escola tem de saber responder digitalmente a estas intempéries.
Se há coisas que aprendemos durante a pandemia é que, com ela, a escola renovou-se. Fez um reset. Que remédio. Podia ter corrido tudo muito mal. Num contexto de emergência, todo o sistema educativo se atirou à crise com um brio inesquecível e soube retirar dela proventos que vieram para ficar. Nenhum professor ficou incólume à tempestade.
A carteira de soluções que hoje ele encara como viável e simples para o seu desempenho didáctico é extensa. Muito mais do que antes da crise. A quantidade de ofertas informáticas educativas é substancial e bastante lucrativa. A escola pública deu um salto digital, cujo momentum não pode ser agora interrompido.
PRATICAMENTE NÃO HÁ HOJE INFOEXCLUÍDOS ENTRE OS PROFESSORES PORTUGUESES
E não foram apenas as didácticas que se renovaram. Hoje não existe uma única escola que não disponha de um sistema informático a suprir as mesmas diligências que antes eram feitas fastidiosamente à mão. Toda a escola tem uma cloud repleta de informação. Listagens, horários, planificações, avaliações, classificações, comunicações, exames, provas, testes, tudo é hoje feito com recurso à informática. Já nenhuma tem os cartapácios caligráficos que protagonizaram os pesadelos do funcionalismo público durante décadas.
O sistema de ensino é composto por uma constelação de soluções digitais que cada escola foi adquirindo ou construindo a pulso, de forma a adaptar-se às exigências comunicacionais do seu século. As organizações educativas compreendem hoje a economia que resulta de uma fluência informacional sustentada pelas novas tecnologias. E é justo recordar que esta vontade de modernização não nasceu com a pandemia. A escola foi das primeiras instâncias da administração pública, senão mesmo a primeira, a adaptar-se à nova realidade digital. Desde os anos oitenta que os computadores invadiram e transformaram decididamente o trabalho dos professores e alunos. Contudo, é patente que a pandemia avolumou essa determinação. O digital faz hoje parte indistinta do acto educativo, seja na vertente pedagógica, seja na vertente organizacional das escolas portuguesas. Praticamente não há hoje infoexcluídos entre os professores portugueses.
QUEM CUIDA DOS SISTEMAS INFORMÁTICOS EDUCATIVOS?
Mas é aqui, justamente, que começa um problema que teimamos em ignorar de forma insuportavelmente olímpica. Quem cuida dos sistemas informáticos educativos? Quem está por detrás do funcionamento regular dos fluxos e das redes de informação desse universo tão plural que é o das escolas públicas portuguesas? Já lá vamos.
Saiamos por um momento das escolas. Um hospital. Um tribunal. Uma câmara municipal. Uma repartição de finanças. Uma conservatória. Uma agência executiva. Um quartel. Uma embaixada. Um banco. Uma esquadra. Um laboratório. Um jornal. Um canal de televisão. Uma rádio. Uma empresa. Quem cuida da arquitectura informática destas entidades? Quem se chama quando algo corre mal? Quando “O sistema foi abaixo”, a quem se recorre?
Nada mais simples. É um trabalho para… os IT guys. Os tipos da tecnologia informática. Os informáticos, pois claro.
Em cada instituição pública ou privada com alguma dimensão ninguém concebe, nem por um segundo, que se dispense a existência de uma equipa de técnicos informáticos que saiba responder a todas as solicitações que o pessoal lhes coloque. “É para isso que cá estamos”, respondem com a amabilidade de quem conhece a sua relevância. Todos sabemos que existe em cada empresa um ou dois tipos que, se um dia se constipam, todo o sistema tem um ataque de pânico.
Os gestores aturam-lhes manias e excentricidades porque sabem da dependência que têm deles. Informáticos competentes são um recurso tão precioso como o cozinheiro daquele restaurante que tem dezenas de automóveis no estacionamento; são os Avillez e os Sá Pessoa do sucesso da empresa.
QUERIAM SER PROFESSORES. E AINDA QUEREM
Voltemos às escolas. Ninguém. Não se vê vivalma (som de grilo). Cada escola tem um sistema informático carregado às costas da beatice tech de dois ou três professores que nunca escolheram ser técnicos de informática e que hoje nada mais são do que isso. Que remédio. Escolheram ser professores de Artes visuais, Educação Física, Fisico-Química, Português, Matemática mas, quando se descobriu que “gostavam de computadores e assim” logo ficaram incumbidos de planificar, construir e gerir extensas redes informáticas que incluem várias centenas de computadores, que todos os anos têm de ser limpos de lixo e de vírus, reparados e renovados; produzir e manter websites institucionais, gerir backups, num trabalho solitário de milhões de horas que ninguém paga.
Nenhuma destas pessoas pensou um dia “Quando for grande, quero reparar computadores e redes”. Queriam ser professores. E ainda querem. Um professor de Alcobaça, confessou-me que o pai, pescador da Nazaré, um dia disse-lhe que gostaria muito de o ver no alto mar a trabalhar nas redes. “Ele é que tinha razão, só que não são de pesca”. Pois não só vive enredado em redes, como também é director de turma e dá aulas a cem alunos. Evidentemente, enquanto estiver com eles, o sistema está proibido de “ir abaixo”. Oremos, Senhor.
Compreenda-se: as solicitações para resolver problemas digitais numa escola são às centenas por mês. Dezenas por dia. E vão desde aquele professor que não percebe por que razão estúpida o seu monitor não liga, apesar de não estar ligado à tomada eléctrica, até à ocorrência de um bug numa programação. Pergunta óbvia de quem não sabe nada: “Por que é que não atribuem essas tarefas aos professores com habilitação em informática?” Por duas razões. Por um lado, porque não há professores de informática em número suficiente para ensinar informática, quanto mais para o resto. Por outro, porque quem escolhe ser professor de informática é porque gosta de fazer com que os miúdos aprendam informática. Ou seja: querem ser professores. Se quisessem ser técnicos de manutenção e reparação de computadores, tinham-no sido. Mas não são.
AS BIBLIOTECAS ESCOLARES PORTUGUESAS ERAM AS PEQUENAS BIBLIOTECAS MAIS CARAS DO PLANETA
As escolas não têm no seu organograma nenhuma equipa de assistência técnica educativa. E isso é incomportável. Se, ao menos, não soubéssemos como resolver o assunto. Mas sabemos. Há uns anos, salvo meritórias e pontuais excepções, as bibliotecas eram ociosamente ocupadas por professores que tinham entrado em curto-circuito nervoso ou arranjaram uma cunha valente na direcção da escola. Havia bibliotecas com 10 ou 12 professores em fim de carreira que custavam ao Estado 15 ou 20 mil euros por mês, apenas em salários. As bibliotecas escolares portuguesas eram, por desventura, as pequenas bibliotecas mais caras do planeta. Actualmente, nada disso acontece. A rede de bibliotecas escolares portuguesa é hoje uma referência de qualidade educativa. Poucos saberão disto, mas Portugal constitui, mesmo, um caso de estudo a nível mundial.
Como mudámos nós tanto, de um dia para o outro? Como de costume, com bom senso e sentido de realidade. Perguntámos aos professores quem, entre eles, gostaria de ter formação específica em biblioteconomia e ciências documentais. Muitos aderiram com entusiasmo. A conversão e formação deste docentes permitiu criar uma figura adequadamente especializada e conhecedora da sua realidade. Nascera o professor bibliotecário. Não faz mais nada. Tem um enquadramento laboral específico. Um horário integral para atender às solicitações bibliotecárias da comunidade que serve. Quem estava a mais, e era muita gente, saiu de cena. Aconteceu o mesmo com a educação especial. Hoje temos equipas certificadas, com a devida formação no acompanhamento de crianças com necessidades educativas específicas. O método foi o mesmo. E resulta.
Creio que já passa da hora para que a escola portuguesa faça algo de idêntico com a informática educativa. Não é aceitável que as direcções escolares tenham de retirar da sua exígua bolsa de horas apoios a alunos ou a projectos educativos, só para completar horários de professores que dão aulas, ao mesmo tempo que asseguram o quotidiano digital de uma escola; que tenham de nomear como seus assessores, os sempiternos professores que “saibam de informática”. Que gastem bastante do seu parco orçamento em outsourcings.
Este estado de permanente improviso é intolerável. As escolas colocam cada dia terabytes de informação crítica, íntima, sobre pais e alunos em hosts comerciais como a Google ou a Microsoft, esperando que ninguém esteja verdadeiramente interessado em saber que o Meireles tem asma, diabetes ou espinha bífida. Não existe nenhuma política consistente em matéria de protecção de dados educacionais.
OS CAMUFLADOS SOLDADINHOS DE CHUMBO QUE ENCONTRAMOS NAS ESCOLAS ATÉ ÀS 4 E 5 DA MANHÃ
Convenhamos que, num país com o tamanho de Portugal, achar-se que é impossível criar um sistema adaptativo, versátil, que acolha as necessidades informacionais do sistema escolar público é, no mínimo, discutível. Também é verdade que a centralização de dados proporciona benefícios e uma economia de escala irrefutáveis. Da mesma maneira que é verdade que, sempre que se tentou criar uma solução de âmbito central, tudo ruiu com estrondo vulcânico ou desvaneceu-se em neblinas de oratória.
Entretanto, enquanto nada disso se ergue, façamos aqui uma homenagem a esses camuflados soldadinhos de chumbo que encontramos nas escolas até às 4 e 5 da manhã a configurar esta aplicação, a reparar aqueles discos, a mudar lâmpadas de videoprojectores, a ressuscitar um activeboard, a instalar um cabo que vai daqui até ali, a escolher um hub que ligue também aquela sala, a reconfigurar este servidor que custou os olhos da cara.
Cumpre-nos um reconhecimento a esta tropa que, por todo o país, mantém as escolas em funcionamento e a quem literalmente todo o sistema deve uma gigante parte do seu trabalho. E fazem-no com aquela nobreza e aquele primor, quase éticos, de quem sabe que está ali porque não podia dizer que não. Os alunos merecem. Os colegas também. Náufragos da net, vivem confinados nos porões negreiros do soft e do hardware educativo. Fazem o que nunca escolheram fazer porque, simplesmente, as escolas não podem fechar. São os servidores dos servidores.
Por que razão não hão-de as escolas, como o resto do sector público, ter os seus IT guys?
Rui Correia
Fonte: SIC Notícias por indicação de Livresco
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