Constança, 21 anos, sempre foi muito introvertida até entrar no 10.º ano. Por ser disléxica, eram raras as vezes em que falava com os colegas com medo de ser julgada e gozada. Bastava dizer uma coisa menos correta ou trocar uma palavra para ser imediatamente alvo de chacota. Tudo mudou quando, num trabalho da escola, Constança escreveu sobre um tema que lhe era próximo — a dislexia —, e no final mostrou um texto escrito por ela, pedindo aos colegas que lessem. Não conseguiram. “É assim que eu me sinto quando me metem um texto de português à frente”, recorda Mafalda Justino Alves, também disléxica e mãe de Constança.
“Foi a partir desse momento que deixou de ser vítima de bullying na escola, mas até isso acontecer diziam-lhe de tudo. Que era burra, que não percebia nada da matéria e que era por isso que precisava de ter sempre um professor a ler-lhe os textos nas aulas”, e lamenta que os professores não tenham sido capazes de explicar a situação de Constança aos colegas. “No que toca à divulgação e sensibilização da dislexia há ainda muito por fazer”, continua.
A história de Constança, que atualmente está a estudar biologia para tentar entrar no curso de veterinária na faculdade, não é rara no País. São muitos os casos de miúdos que ao longo do seu percurso escolar são consideradas menos inteligentes que os colegas por serem disléxicos. Mas esta é uma ideia que não corresponde à verdade, até porque grande parte destes jovens têm uma inteligência normal ou até mesmo acima da média.
Segundo a Associação Internacional de Dislexia, esta é uma perturbação que afeta uma em cada dez pessoas a nível mundial, atingindo 48% dos alunos com necessidades educativas especiais.
O que é a dislexia?
“A dislexia é uma disfunção neurológica que se manifesta ao nível de aprendizagem”, diz Helena Serra, presidente da Dislex, a Associação Portuguesa da Dislexia — que estará presente na 88.ª edição da Feira do Livro em ações de sensibilização para pais, miúdos e professores, e despiste desta disfunção.
Um jovem disléxico é aquele que ao longo de todo o seu processo de aprendizagem, desde o infantário, aparenta ter o desenvolvimento cognitivo esperado para a sua idade. Mas que, ao chegar ao momento de aprendizagem de tudo o que envolva a sinalética, como as letras do alfabeto ou a numeração, em matemática, começa a demonstrar dificuldades em reter e usar corretamente esses sinais.
“Trata-se de uma criança inteligente que teria toda a capacidade para singrar na escola mas que, a certo ponto, começa a confundir conceitos geométricos, noções de espaço ou de direção, e a trocar letras. Ora porque são de sons equivalentes ou têm formas próximas”, continua Helena Serra.
“Na palavra ‘bode’ a criança pode ser ‘vode’. Da mesma maneira que pode olhar para a palavra ‘faca’ e ler ‘vaca’, quando o ‘f’ nada tem a ver com o ‘v’. Isto acontece porque não houve um processamento dessa competência fonológica e simultaneamente associativa de juntar as formas aos respetivos sons.”
Como consequência direta desta dificuldade, o aluno começa a trocar palavras e a dar erros grosseiros, originando um turbilhão de insucesso escolar que acaba por atingir a sua autoestima. Helena Serra reforça a necessidade de proteger estes miúdos que não podem ser penalizados ou castigados por uma dificuldade da qual eles não são responsáveis — precisamente porque se trata de uma falha no desenvolvimento de todas as competências que o ato de ler e escrever não prescinde.
Mais, a dislexia é, em 80% dos casos, transmitida geneticamente de pais para filhos. “Com base nos vários estudos científicos que têm sido realizados acerca do tema, só em 20% dos casos estudados é que se verificou uma dislexia adquirida.” Isto significa que qualquer pessoa se pode tornar num indivíduo disléxico através de um acidente que afete a capacidade do cérebro em processar a componente auditiva, visual e espacial, esclarece a diretora da associação.
Como é viver com dislexia?
Mafalda Justino Alves, 50 anos, é licenciada em Antropologia e descobriu que era disléxica aos 40. “Sempre dei imensos erros gramaticais ao longo de todo o meu percurso escolar, mas no meu tempo não se falava sobre dislexia e ninguém sabia o que isso era.” Além dos erros, Mafalda sempre teve dificuldades em distinguir a esquerda da direita e ainda hoje apresenta algumas dificuldades ao nível cognitivo, como a falta de noção de espaço — em que, por vezes, em vez de pousar um objeto na mesa, o pousa no chão.
“Só o facto de estarmos aqui a fazer esta entrevista na Feira do Livro, onde há tanto barulho, dificulta e muito aquilo que lhe quero dizer já que não me consigo concentrar a 100%”, revela.
Mafalda é mãe de Constança e ambas foram diagnosticadas com dislexia depois de Mafalda se aperceber que algo de errado se passava com a filha. Além dos erros gramaticais e de uma discalculia severa (a incapacidade de reter e aplicar conceitos aritméticos e matemáticos), Constança tinha ainda uma total falta de memória recente o que fazia com que se lembrasse de tudo o que tinha acontecido há cinco dias, mas fosse incapaz de recordar momentos muito recentes.
A Constança chegou a casa com a avaliação do teste de História, uma das disciplinas mais difíceis, e disse-me qualquer coisa como ‘o primeiro estalo está dado, venham os próximos’.
“Depois do diagnóstico eu tirei várias formações para trabalhar com ela em casa. Além de ser acompanhada por uma terapeuta, durante três horas semanais, tinha aulas extras de apoio na escola e depois disso ainda tinha uma hora de estudo comigo. A carga horária era brutal e foi um trabalho muito violento para nós”, continua.
Mafalda ficou conhecida quando, em 2012, interpôs um processo ao Ministério da Educação quando foi negada a leitura acompanhada a todas as crianças disléxicas nos exames do 9.º ano, e diz que recorreu da decisão por achar uma medida anticonstitucional que fora decidida um mês antes dos exames e, mais grave ainda, sem aviso prévio.
“Fiz aquilo para defender a minha filha em quem nunca ninguém acreditou e marcou-me muito quando, dois anos depois, a Constança chegou a casa com a avaliação do teste de História, uma das disciplinas mais difíceis e me disse qualquer coisa como ‘o primeiro estalo está dado, venham os próximos’. Tinha tido 86% [numa escala de 0 a 100%] e eu fiquei maravilhada como era fantástico uma miúda de 11 anos ter a perceção da luta que teve de ter para superar as suas dificuldades e conseguir estar em pé de igualdade com os restantes colegas.”
Constança diz que, atualmente, todas as ações de sensibilização ainda são poucas e recorda as alturas em que, na escola, era muitas vezes menosprezada pelos colegas que, por não perceberem que o se passava com ela, lhe faziam imensas perguntas — algumas até incomodativas.
“Todas as dificuldades que tive fizeram com que perdesse o gosto pela escola e a certa altura eu só gostava de ir por educação física ou pelas disciplinas de artes.”
Atualmente, Constança já terminou o 12.º ano num curso intensivo de Moda, e admite que escolheu a área de artes porque sempre se convenceu que o facto de ser disléxica impedia que pudesse vir a ser boa numa outra área diferente. “Aprender a viver sendo disléxica é diferente, e pode ser difícil quando não há apoios suficientes”, diz, referindo-se aos professores que deveriam ter uma formação específica para saber lidar com a disfunção e apoiar jovens que sofram de dislexia.
“Para nós, só o facto de termos apoio e sermos diferente dos nossos colegas é motivo suficiente para nos sentirmos pouco confortáveis”, confessa, lamentando que os métodos de ensino atuais não estejam preparados para lidar com estas dificuldades, o que torna todo o processo mais complicado.
Foi horrível e a professora chegava mesmo a comparar-me com outras pessoas que pudessem ter mais problemas do que eu, como se isso invalidasse as dificuldades por que estava a passar.”
Rita Pereira, 21 anos, que descobriu que era disléxica no 5.º ano de escolaridade, é da mesma opinião e chegou mesmo a ser vítima da falta de capacidade de alguns dos professores em saber lidar com as dificuldades pelas quais estava a passar. “Foi no 12.º ano que a minha diretora de turma não compreendia, nem quis compreender, o que era a dislexia”, revela, e diz que diariamente acordava cedo para ir às aulas de apoio da professora que, mais tarde, viria a dizer que a Rita nunca tinha frequentado.
No final do ano, terá perguntado à aluna qual a avaliação que ela achava merecer a Português e Rita respondeu que merecia apenas um três — numa escala de 0 a 20. “As minhas avaliações eram sempre muito baixas e andavam entre o 2 e o 4. A professora disse-me para não me preocupar que iria ponderar no assunto e eu pensei que, ao menos, me iria dar um 9,5 de avaliação para impedir que me candidatasse ao exame nacional como aluna externa.”
A verdade é que a professora não só não aumentou a avaliação de Rita como ainda se mostrou a favor da reprovação da aluna. “Foi horrível e a professora chegava mesmo a comparar-me com outras pessoas que pudessem ter mais problemas do que eu, como se isso invalidasse as dificuldades por que eu estava a passar.”
Tentei puxar por aí e descansá-la: se as mentes mais brilhantes do universo eram disléxicos e tinham conseguido deixar a sua marca no mundo, a Rita não seria diferente.”
Ainda assim, esse foi talvez o único caso em que Rita alguma vez se sentiu ostracizada. Além do apoio familiar que recebia, tinha um núcleo de amigos muito forte que a protegiam nos momentos mais duros e hoje não tem dúvidas que sem eles tudo seria muito mais difícil.
“Mesmo a nível de professores não me posso queixar porque, apesar da má experiência com a minha diretora de turma, tive muitos outros que se esforçavam realmente para me entender e ajudar”, e dá especial destaque à professora de Inglês que, nas avaliações da disciplina, dava a Rita os mesmos testes que fazia nas sessões de apoio.
“Confesso que não dava pelo facto de os testes serem iguais, mas como eram adaptados a mim e à minha dificuldade, eu conseguia ter notas positivas o suficiente para não chumbar.”
Carlos Pereira, 54 anos, é pai de Rita e trabalha na Câmara Municipal de Almada. À MAGG diz que um jovem com dislexia trabalha quatro vezes mais. A diferença é que o faz para um 10 em vez de um 18 ou 19.
“A vida da Rita tem sido muito isto. A minha filha está agora no 2.º ano da faculdade e há um mês que não sai do quarto. Tem uma força de vontade e uma capacidade de trabalho impressionante e, mesmo no secundário, quando os colegas saíam das aulas depois do almoço, a Rita ficava até às 17h na escola a ter aulas de apoio. Depois disso ainda tinha explicações e quando chegava a casa estudava até às 22h.”
Apesar de Rita estar agora a estudar Psicologia no Instituto Superior de Psicologia Aplicada, admite que não foi fácil quando descobriu que era disléxica e achou que seria muito difícil dar um rumo à vida. “Foi um choque tremendo tanto para nós como para ela”, revela Carlos, que perante a reação da filha teve de encarar a situação de frente e arranjar a melhor forma de lidar com a situação.
Foi assim que, depois de chegarem do médico, Carlos (que se vê como um treinador ou “um Mourinho”) sentou-se ao computador e pesquisou o máximo que conseguiu sobre tudo o que havia a saber acerca da dislexia. Foi nesse momento que terá reparado que grandes mentes como Thomas Edison, Albert Einstein e Leonardo da Vinci também tinham sofrido de dislexia.
“Tentei puxar por aí e descansá-la: se as mentes mais brilhantes do universo eram disléxicos e tinham conseguido deixar a sua marca no mundo, a Rita não seria diferente e também ia conseguir superar as dificuldades que se pusessem no seu caminho”, e não esconde o orgulho na filha que hoje, apesar das dificuldades que sente —maioritariamente ao nível da escrita — está finalmente a seguir o seu percurso com sucesso.
Fonte: MAGG
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