João tem 12 anos e é autista. E para ele uma palavra faz toda a diferença.
Manda a bola, João.
E João não fazia nada.
Lança a bola, João.
E João continuava sem fazer nada.
João, 12 anos, pouco ou nada participava nas aulas de Educação Física. Não mandava ou lançava a bola por mais vezes que lhe pedissem. Um dia, a mãe de João, Helena Sabino, foi alertada pela professora de ensino especial para as dificuldades do filho. Helena conseguiu falar com a professora de Educação Física e rapidamente percebeu o problema: a linguagem. “Ele não sabe o que significa ‘mandar’ ou ’lançar’ mas sabe o que é ‘atirar’. Nesta dinâmica de jogar com a bola, aprendeu sempre a atirar a bola e bastava uma palavra para afetar o circuito de comunicação.”
Atira a bola, João.
E João atirou a bola. Desde então, não houve mais problemas nas aulas Educação Física. João está no 6.º ano e tem autismo.
“Isto é um exemplo concreto de que a participação estreita entre escola e família é fundamental para adequar o currículo às competências e dificuldades das crianças. Passar a informação permitiu ao professor moldar a forma como dava a aula ao João e melhorar a participação dele”, conta a mãe.
João não fala. Também não lê nem escreve. Não está totalmente integrado numa turma, vai apenas às aulas de educação física, às de música e às de educação visual e tecnológica. As restantes disciplinas e competências são desenvolvidas no centro de apoio à aprendizagem, acompanhado da professora de ensino especial e das terapeutas.
A intervenção dos pais na educação dos filhos com deficiência já estava prevista no decreto-lei 54/2018, que “estabelece os princípios e as normas que garantem a inclusão” de todos e de cada um dos alunos. Um ano após a sua entrada em vigor, o texto foi revisto e, entre outras alterações, o papel dos pais foi reforçado. “Acrescenta direitos como participar na elaboração do relatório pedagógico, participar nas equipas multidisciplinares, solicitar a revisão do apoio pedagógico”, sublinha Júlia Serpa Pimentel, presidente da Pais em Rede, associação de pais de filhos com deficiência, e professora do ISPA - Instituto Universitário. E isso é positivo, garante.
Até conversar com Helena Sabino, a professora de Educação Física não deixava João saltar no trampolim. Tinha medo que ele se magoasse. Mas João mexe-se bem, tem equilíbrio e adora saltar no trampolim e esticar-se no espaldar. Agora, João já faz isso tudo nas aulas.
“Isto da educação inclusiva é um grande desafio e exige uma construção conjunta entre a escola, a família e a comunidade”, diz Helena. E isto da educação inclusiva foi um conceito que só há cerca de um ano apareceu na legislação. “A antiga lei já tinha cristalizado, estava um pouco obsoleta para os miúdos que temos hoje. A escola inclusiva não são apenas crianças com deficiências, são uma série de coisas que necessitam de um olhar diferente (crianças com diabetes ou hiperatividade, por exemplo). A inclusão é a todos os níveis: multicultural, saúde…”
CAMINHO CERTO MAS SEM “AS MULETAS NECESSÁRIAS”
João é um das centenas de alunos que estavam integrados no ensino especial e que reaprenderam a viver a escola: neste último ano letivo, o sistema de ensino passou a considerar-se uma forma de educação inclusiva, em que as medidas de apoio são universais e podem ser introduzidas no vida escolar de qualquer menino ou menina. O critério deixa de ser simplesmente médico, há muito mais a ser considerado (dificuldades económicas ou até o historial familiar). Conceitos como educação especial ou necessidades educativas especiais desapareceram.
“Ao fim de um ano, ainda há muito caminho a fazer para que a escola seja inclusiva.” Júlia Serpa Pimentel, presidente da Pais em Rede e professora do ISPA - Instituto Universitário, acredita que “mudou o papel e mudou a legislação mas a cabeça das escolas não mudou”. “O problema está na aplicação da lei, nas condições reais das escolas para aplicarem a lei, na habilitação dos professores do ensino regular para perceberem que aquela lei também lhes diz respeito.”
O caso de João é um dos que “não sendo tudo perfeito, vai correndo bem”, assim diz a mãe. Mas nem todos são como o dele. A Pais em Rede assegura que desde o arranque das aulas recebeu entre dez a 15 queixas de pais. “Dizem-nos sobretudo que não têm apoio, não têm auxiliares, que a escola não quer a criança e que estão a fazer tudo para o tirarem de lá”, aponta Júlia Serpa Pimentel.
Até outubro chegaram nove queixas à Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE) - tal como o Expresso noticiou. Sem adiantar se foram apresentadas mais reclamações, o Ministério da Educação diz que todas queixas recebidas foram resolvidas e que entretanto chegaram “comunicações não relacionadas com a nova legislação mas, na sua maioria, com a necessidade de reforço de pessoal não docente que estava de baixa.”
Para a Pais em Rede, o Ministério tem “feito o que lhe competia”. No entanto, a mentalidade de mais de dez anos de uma legislação segregatória não muda em poucos meses, sobretudo quando a comunidade de professores está envelhecida. “A maior parte destas pessoas foi formada num tempo em que estes meninos nem iam à escola. Portanto, é muito difícil dizerem que têm de estar, a cabeça dos professores não muda pelo decreto. Todos apontam sempre a falta de recursos, diria antes que falta formação para responder adequadamente a esta lei”, considera Júlia Serpa Pimentel. “O caminho é certo mas ainda não há as muletas necessárias.”
ALUNOS COM NECESSIDADES ESPECIAIS NÃO DESAPARECERAM
À Pais em Rede chegaram relatos de professores que “ignoram por completo” nova legislação, casos de alunos que nunca haviam estado numa turma e que, devido ao desaparecimento das unidades de ensino estruturado e as unidades de apoio à multideficiência, foram incluídos nos grupos de alunos.
“Obviamente, as crianças que frequentavam essas unidades não desapareceram”, diz Júlia Serpa Pimentel, que felicita a iniciativa de acabar com a separação - o problema está na falta de uma resposta alternativa. “De repende, estes alunos estão numa turma. Como não havia resposta foram para as salas de aula, sem apoio, sem pessoal, sem professor de educação especial.”
O Ministério tutelado por Tiago Brandão Rodrigues destaca o “o envolvimento das escolas e professores num movimento de inclusão dos alunos”, embora admite em alguns casos a implementação da lei “necessitou de mais tempo”. “Portugal é um exemplo na integração de crianças e jovens com deficiência, mas tem ainda caminho a percorrer para que fatores como a pobreza deixem de ser um preditor de exclusão em contexto escolar.”
O próximo ano vai ser de “continuidade do trabalho iniciado”, sendo que os processos vão ser alvo de avaliação externa internacional.
Marta Gonçalves
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