sábado, 23 de junho de 2012

Cegueira. Aprender a viver sem uma luz ao fundo do túnel

O sotaque acentuado denuncia a proveniência alentejana de Ana Gil mal pronuncia as primeiras palavras. Chegou há menos de dois meses ao centro, depois de sofrer um derrame cerebral que lhe afetou os nervos óticos. Aos 42 anos, a funcionária da Câmara Municipal de Sousel perdeu por completo a visão, mas os 25 dias em que esteve internada no Hospital de São José, em Lisboa, em dezembro de 2011, deram-lhe tempo para reajustar prioridades. “Nos primeiros dias eu nem sabia se ia sobreviver. Mas a minha vontade era tanta que perder a visão foi o menos importante”, confessa.

Soube da existência do Centro Nossa Senhora dos Anjos através dos serviços sociais do hospital e candidatou-se à mesma entrevista inicial por que passam todos os utentes. A conversa serve para avaliar o estado psicológico de cada candidato e determinar se pode ser acompanhado durante alguns meses no espaço. “Para nós, o mais complicado é lidar com a depressão e o desalento das pessoas, porque isso perturba-as tanto que dificulta a aprendizagem”, confessa o psicólogo António Feliciano.

Ao cimo da Travessa do Recolhimento de Lázaro Leitão, em Lisboa, o centro dedica-se a dar uma nova esperança a pessoas que, como Ana Gil, perderam aquele que será o mais importante dos cinco sentidos: a visão. O espaço é o único em Portugal a trabalhar na reabilitação de pessoas com cegueira recém-adquirida ou com baixa visão. Abriu portas há exatamente 50 anos e em 2011 a gestão foi transferida da Segurança Social para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Acolhe utentes de todo o país em regime de internato, com períodos que variam entre os seis meses e um ano. Ao longo desse tempo, os 12 técnicos do centro dão apoio a quem passou por uma perda súbita e irreparável. Uma perda que exige um luto, mas que não é sinónimo do fim. Ao fundo do túnel pode não haver luz, mas há uma nova oportunidade para viver.

“A tua realidade agora é outra”, disse Ana Gil a si mesma, ainda no hospital, “e o que ficou para trás ficou. Agora vais ter de encontrar soluções para enfrentar as coisas.” Nas primeiras semanas, o estado de espírito não se manteve sempre tão positivo, porque reaprender a viver quando se está a meio da vida é duro e a angústia acaba por ocupar o seu lugar. Mas para a utente mais recente do centro a adaptação à nova realidade foi rápida e em poucos dias ela passou a conhecer os cantos à casa. Porque é “uma pessoa despachada”, agarrou-se à aprendizagem das tarefas que são para si mais importantes: a informática – porque quer “voltar à actividade profissional que tinha” – e a mobilidade.

PRIMEIROS PASSOS 
Ana Gil é acompanhadas nessas áreas por técnicos especializados, como Ana Henriques, professora de Iniciação às Técnicas de Informação e Comunicação (TIC 1). Em voz alta, a professora dita, palavra a palavra, aquilo que deve ser escrito pelos dois utentes que naquela aula têm a primeira aproximação ao computador. Sentados em duas secretárias lado a lado, guiam os dedos pelo teclado com a ajuda de duas marcas que assinalam as letras E e J e que servem de referência para todas as outras. No ar, com a voz de Ana Henriques ressoa uma outra, metálica, que sai das colunas. O software de reconhecimento do ecrã serve de guia para os alunos e é a única forma de saberem os passos a dar quando estão frente ao ecrã. O computador representa a maior janela para um mundo fora da realidade rotineira. “Para uma pessoa cega, ter um computador com acesso à internet é estar acompanhada estando sozinha”, explica Arménio Nunes, professor de TIC 2. Ali os utentes “aprendem tudo o que precisam de saber fazer no correio eletrónico, utilizam o Skype e o Messenger e navegam na internet”.

Para quem não esteja no centro, e não frequente ações de formação profissional, Arménio Nunes desenvolveu, há dez anos, o Programa de Apoio em Autonomias de Tecnologias de Informação e Comunicação. Um projeto que funciona como sistema de ensino à distância. A partir do gabinete, onde também dá aulas, responde atualmente a dúvidas de 17 alunos, uns do Porto outros dos Açores, e há até quem lhe escreva dos Estados Unidos. Garante que o prazer que tem nesta atividade vem de quando sente “as pessoas ficar mais contentes, a comunicar e com o amor-próprio a subir”.

AUTONOMIA 
A disposição dos alimentos no prato é guiada pelos ponteiros do relógio. A carne vai para as três horas, a salada ou os legumes para as 12 e o arroz ou as massas ficam entre as oito e as nove. Uma ação simples, como pôr a mesa, exige o mesmo método e rigor que todas as tarefas do quotidiano para quem, como Tânia, não tem o recurso da visão. Hoje tem 19 anos e chegou a Portugal em novembro, ao abrigo de um protocolo para a área da saúde entre o Estado português e as antigas colónias. Os primeiros sinais de que algo não estava bem com os seus olhos apareceram quando era ainda uma criança de sete anos. Entretanto perdeu a quase totalidade da visão e tenta reaprender a naturalidade das atividades que antes realizava com simples recurso aos olhos. “Encaramos isto como uma escola, mas onde tem de haver tempo para a interiorização e para a reflexão, porque aceitar que se vai ficar cego para a vida é complicado”, diz Ana Magalhães, diretora do centro desde março. A reabilitação de cada utente é encarada de forma personalizada, com as suas necessidades e os momentos próprios de evolução, porque “é preciso tempo para pensar, é preciso dar espaço às pessoas para interiorizar as aprendizagens, algumas delas muito duras”.

Uma das maiores barreiras é a da falta de mobilidade. Alguns utentes chegam ao centro depois de meses limitados aos ambientes mais familiares, deslocando-se entre o quarto, a sala e a cozinha das suas casas. Readquirir o sentido de orientação, as noções de espaço e o equilíbrio são alguns dos principais momentos de aprendizagem após a perda da visão. Judite Martins esteve dois anos “presa à casa”, depois de um deslocamento da retina ter encerrado um processo de vários anos, entre perdas e recuperações da visão. A ex-utente interrompe por momentos a leitura em braille de um conto infantil – técnica que aprendeu no centro – para recordar os 12 meses que passou em reabilitação: “Fui à luta e aprendi tudo. Se no fim de semana tiver dez pessoas em casa”, diz com orgulho, “cozinho para todos sem precisar da ajuda de ninguém.”

“Há uma reaprendizagem para a vida”, sublinha Sónia Grilo, a mais recente técnica do centro, que faz o acompanhamento das aulas de atividade motora, piscina e mobilidade. Numa antecâmara da capela transformada em ginásio, a professora utiliza a recriação de um jogo de bowling para treinar a orientação com os utentes. Colocados numa ponta da sala, lançam pelo chão uma bola especial, com pequenos guizos no interior, tentando acertar com a direção de onde veio o comando de voz de Sónia Grilo. Aplicados à vida quotidiana, exercícios como este vão permitir distinguir a proveniência de sons e ajudar a que as pessoas voltem a orientar-se no espaço.

“Os utentes que passam pelo centro podem sair daqui com um grau de autonomia satisfatório”, assegura o psicólogo António Feliciano. No entanto, há limitações que nunca serão ultrapassadas, “porque em termos de mobilidade as pessoas podem aprender a movimentar-se e a utilizar os transportes públicos, mas, exceto em casos excepcionais, ficam limitadas aos mesmos percursos”. O acompanhamento psicológico é, por isso, essencial para lidar com as frustrações que surgem com o processo de reabilitação, como o momento em que se começa a usar a bengala. Porque representa para o próprio uma limitação que não existia e porque se perde o anonimato perante a sociedade, apresentando quem não vê como alguém diferente.

“Para nós o mais complicado é lidar com a depressão e o desalento das pessoas, porque isso perturba-as tanto que dificulta a aprendizagem”, mas “como estão ocupadas e em contacto com outras, rapidamente surge uma esperança”, explica António Feliciano. Conseguir movimentar-se é um passo fundamental na conquista de autonomia, mas há outras tarefas do dia-a-dia que têm de ser trabalhadas. Na aula de Actividades da Vida Quotidiana – Competências Sociais, a aprendizagem de Tânia vai muito além de pôr a mesa. Ao passar os dedos por uma moeda de dois cêntimos apercebe-se de que há um veio a meio – “parecem duas moedas coladas” – que a distingue das outras. O truque para as notas é dobrá-las ao meio, enrolá-las em volta do indicador e unir as pontas por cima do dedo. A quantidade de papel que sobra, em função do tamanho de cada nota, permite perceber o que tem nas mãos. Um processo simples, embora demorado.

FUTURO LÁ FORA 
Foram precisos alguns anos de “reclusão” para que Paulo Almeida se “ambientasse à ideia” e aceitasse a nova fase da vida em que se encontra. Hoje garante que “quer fazer tudo o que fazia antes de perder a visão”. Prova disso é a exposição de fotografias que apresentou na cerimónia do cinquentenário do centro dos Anjos e que agora preenche as paredes do refeitório. Imagens captadas nos últimos dois meses, já como utente da instituição.

O prazer da fotografia é uma forma de preparar novos projetos, porque a vida fora do centro vai continuar quando estiver concluída a reabilitação: “Gostava de fotografar Lisboa da minha perspetiva, a perspetiva de alguém que não vê.” Outro objetivo que gostaria de alcançar seria tirar um curso de massagista, que lhe permitisse ter uma atividade regular mais tarde, porque “não existem muitas saídas para quem não vê”. “Daquilo que tenho verificado em experiências anteriores, é muito difícil recolocar as pessoas no mercado de trabalho”, lamenta Ana Magalhães, que tem sentido as dificuldades acentuarem-se nos últimos meses, com o agravamento da situação económica do país. “Neste momento há um grande vazio no mercado de trabalho”, aponta Sónia Grilo, o que dificulta a motivação dos utentes, pela falta de perspetivas. “Se nós temos de dar 100% no trabalho, eles têm de dar 5000% para mostrar que nunca falham”, defende a professora. “Depois de se conseguir renascer é voltar a matar a pessoa”, conclui a professora. “Por outro lado”, lamenta Paulo Almeida, “existem algumas leis no nosso país que não são cumpridas pelas empresas”, o que torna impossível o acesso a determinados postos de trabalho. “A sociedade trata-nos como uns coitadinhos, mas não me revejo nesse estatuto” porque “tenho tanto valor como uma pessoa que tenha todas as suas capacidades”, diz.

A par da marginalização profissional, ressalta dos testemunhos a sensação de alguma insensibilidade e incompreensão por parte da sociedade. Depois de se movimentar pela cozinha do centro, enquanto preparava o almoço para aquele dia – uma das atividades que ali se desenvolvem –, Teresa Rascão observou: “As pessoas querem ajudar e a primeira coisa que fazem é agarrar-nos no braço. Isso é errado, porque acabam por deixar-nos num espaço que para nós é vazio. Ficamos sem referências.” A experiência leva-a a defender que “toda a gente devia aprender como se agarra uma pessoa cega e como se deve caminhar em simultâneo com ela”, para evitar alguns acidentes que acabam por acontecer. Outro problema, destaca Paulo Almeida, são os passeios, que “não estão preparados para pessoas cegas”. Caixas de electricidade, carros nos locais errados e postes baixos no rebordo dos passeios são outros exemplos daquilo que, para quem não vê, representa um perigo eminente.

Actualmente há 14 pessoas em lista de espera para integrar o Centro Nossa Senhora dos Anjos e Ana Magalhães sublinha a disponibilidade da instituição para trabalhar com músicos ou estudantes da área que promovam atividades no local, pelo “papel lúdico-terapêutico” que a atividade representa. Para mais tarde está a ser pensada a abertura de apartamentos para residências individuais, que permitam trabalhar a autonomia dos utentes da instituição.
Pedro Rainho

Nota: Texto atualizado para português segundo o acordo ortográfico

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