O autismo não é uma doença única – são muitas doenças. E pode surgir devido a uma panóplia de mutações raras, que não são herdadas do pai ou da mãe, surgem espontaneamente, num mínimo de 250 a 300 pontos do genoma, e afectam o desenvolvimento do sistema nervoso da criança, adiantam três artigos científicos publicados hoje na revista Neuron. Estes tentam avançar também com uma explicação para a desigualdade da doença relativamente aos sexos, ao afectar quatro vezes mais rapazes do que raparigas.
Foram estudadas mil famílias que têm um filho saudável e outro com uma das desordens do espectro do autismo – designação onde cabem muitas doenças diferentes. Esta base de dados foi uma das novidades metodológicas, sublinha um comunicado da Fundação Simons, a instituição americana que a coligiu: a maioria dos estudos feitos até agora concentrou-se em famílias onde mais do que um filho é autista, o que implica uma forte componente hereditária. Se só um dos filhos é autista, a explicação genética é, provavelmente, diferente.
Os cientistas concentraram-se assim na busca das mutações genéticas que surgem espontaneamente nas crianças afectadas. Michael Wigler, do Laboratório de Cold Spring Harbor, em Nova Iorque, um dos líderes da equipa de investigadores, tinha desenvolvido a hipótese de que estas mutações podiam estar na origem de pelo menos metade dos casos de desordens do espectro autista. Algo de semelhante acontece com outra doença mental, a esquizofrenia.
Estas mutações de novo, ou espontâneas duplicam, ou então apagam, segmentos de ADN do genoma (pense num romance em que são apagadas aleatoriamente algumas linhas de texto, ou então repetidas outras linhas, um certo número de vezes). Toda a gente tem alguns fragmentos de ADN apagados ou repetidos; mas na maioria dos casos não afecta genes essenciais, nem causa doenças.
Elas e as sinapses
Nestes estudos publicados na Neuron, os cientistas descobriram muitas destas mutações em oito por cento dos irmãos com autismo. Isto quer dizer que as mutações são quatro vezes mais frequentes nos irmãos afectados do que nos saudáveis. Pelo menos 75 das mutações descobertas pareciam prometedoras para a investigação e em seis delas é provável que se façam descobertas interessantes.
Um dos estudos concentrou-se em tentar perceber se estas zonas do genoma sugeriam alguma espécie de coerência, uma rede funcional ou molecular. E, curiosamente, os resultados foram positivos, diz o trabalho coordenado por Dennis Vitkup, da Universidade Columbia, em Nova Iorque. “Esta análise dá uma boa base de sustentação à hipótese de que na origem do autismo esteja a perturbação da formação de sinapses”, escreve a equipa na Neuron.
As sinapses são os pontos de junção que permitem aos neurónios comunicar entre si, trocando sinais químicos ou eléctricos, transmitidos através das suas extensões, axónios e dendrites.
Será que as raparigas são mais resistentes às desordens do espectro do autismo porque “atingem um certo número de marcos de desenvolvimento cognitivo” mais cedo do que os rapazes?, lança a equipa de Wigler na Neuron como hipótese. “Por exemplo, em geral, as meninas dizem as suas primeiras palavras numa idade mais precoce. Um ritmo de desenvolvimento mais rápido poderia reflectir uma robustez que protegesse o sexo feminino”, escrevem.
O autismo é diagnosticado a partir dos três anos de idade e o estudo revelou que, para que as meninas sejam afectadas pelas mutações genéticas espontâneas, estas têm que ser muito maiores e têm que atingir muito mais genes do que no caso dos rapazes (15 genes por mutação em média para elas, dois para eles).
Além disso, quando as mulheres são autistas, é mais provável que tenham uma forma severa da doença. Entre os homens, há mais casos de pessoas que conseguem funcionar relativamente bem em sociedade, apesar de sofrerem de uma desordem que afecta, precisamente, as suas capacidades de relacionamento social.
Williams, no ponto oposto
Uma outra descoberta tem implicações curiosas para o estudo da base genética do nosso cérebro social: algures no braço mais curto do nosso cromossoma 7 fica uma região denominada “7q11.23″ que está associada a uma doença chamada síndrome de Williams, que é o oposto do autismo: faz com que as pessoas se tornem altamente empáticas e sociáveis, extremamente sensíveis ao estado emocional dos outros. Isto, porque naquela região surgiram mutações que fizeram surgir cópias extra do genoma.No caso das mutações detectadas agora, associadas ao síndrome do espectro autista – em que há dificuldade em comunicar com os outros e manter relações sociais, em termos gerais -, faltam segmentos de ADN.
“Esta região do genoma pode tornar-se a Pedra de Roseta para estudar o desenvolvimento do cérebro social”, tal como a célebre pedra serviu para decifrar os hieróglifos egípcios, comentou Matthew State, da Universidade de Yale, outro membro da equipa, citado num comunicado da Fundação Simons.
Mas não é de esperar que deste estudo saia uma “bala mágica”, um medicamento contra o autismo – porque não existe uma doença única, ou um gene único que cause a cause. “A diversidade é tal que um único tratamento visando uma forma específica do autismo pode não ter efeito sobre a maioria dos casos”, explica Michael Wigler, citado pela agência AFP.
“Mas quando os genes com mutações relacionadas com o autismo forem identificados”, disse ainda, pensando numa próxima geração de tecnologia, “poderemos começar a pensar nos problemas específicos de cada criança, e não em tratar vários problemas em conjunto.”
O autismo, que parece estar em crescimento – ou é cada vez mais detectado, provavelmente -, afectando pelo menos um por cento da população, está a assemelhar-se a outra doença da modernidade. “Uma complexidade genética semelhante é aparente em muitos cancros”, sublinha a equipa de Vitkup, que verificou se as mutações ligadas ao autismo teriam alguma coerência funcional.
Por Clara Barata
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