Raul Guerreiro dedica-se à divulgação desta pedagogia e da sua estrutura social escolar, através de palestras audiovisuais para pais, educadores e estudantes. Nesta entrevista, o responsável faz questão de expor factos e afastar preconceitos. "As escolas Waldorf não são estabelecimentos de ensino privado, nem iniciativas de prestação de serviços educativos em estilo doméstico ou cooperativista", esclarece. "Como conceito de educação integral com 12 anos de duração, a Pedagogia Waldorf (PW) reconhece sobretudo as dinâmicas inatas dos alunos para um processo de auto-educação e de descoberta gradual do mundo".
E: Na pedagogia Waldorf não há avaliação de desempenho com notação numérica. De que forma são avaliados e apreciados os progressos dos alunos? Raul Guerreiro: No final do ano os alunos recebem um "Boletim Waldorf", que é uma colecção de descrições redigidas por todos os professores, expondo de maneira objectiva a metamorfose vivenciada pelas crianças. Não há avaliações "boas ou más" e a ênfase vai para o elogio e para o reconhecimento dos esforços empreendidos pelos alunos. Nos primeiros anos esses documentos são um precioso auxiliar para os pais e mais tarde tornam-se, para os próprios alunos, um espelho promotor da autoconfiança.
E: Nas escolas Waldorf não existe a repetição de anos. Defende-se que os chumbos contrariam a própria condição humana. Não há diferenças entre os bons e os maus alunos? RG: Precisamente, a existência de diferentes estágios de amadurecimento é considerada na PW como uma coisa salutar, pois expressa a diversidade da condição humana, dando ainda oportunidade a uma solidariedade entre camaradas de classe, o que seria interrompido por qualquer processo selectivo de "chumbos".
E: Privilegia-se o campo sensorial. Qual a importância da componente cognitiva? RG: O campo sensorial é mais realçado apenas nos anos do jardim-de-infância e primeiras classes. Evita-se aí estimular um esforço intelectualista precoce, que resultaria danoso para a formação harmónica da personalidade. A PW lida com uma trilogia de forças anímicas presentes em estado latente em cada ser humano desde o nascimento: pensamento-sentimento-vontade. A esfera do pensamento vai sendo reforçada paulatinamente, mas sempre em equilíbrio com as demais forças, e acompanhada por um estímulo da imaginação.
E: Quais as principais diferenças entre esta metodologia e a utilizada no ensino regular? RG: Este é um tema gigante, mas vou tentar um resumo: (a) cada escola é totalmente independente, suportada por uma associação de fim não-lucrativo. A associação possui uma directoria, mas ela é responsável apenas pelos actos financeiros e jurídicos; (b) a escola propriamente não tem nenhum director, pois são os professores que exercem em conjunto a função directiva, com absoluta autonomia para o domínio pedagógico. Tudo o que não diz respeito à pedagogia está entregue a órgãos escolares onde pais e professores actuam em parceria; (c) os anos de jardim-de-infância são uma delicada fase de alimentação moral-espiritual que irá marcar as personalidades para o resto da vida. Cultiva-se aí uma harmonização das almas infantis, sem se aplicarem medidas correctivas ou tentar preparar as crianças para a fase escolar; (d) todos os alunos aprendem duas línguas estrangeiras desde o primeiro ano. O chamado "professor de classe", que acompanha cada classe durante os primeiros oito anos, tem a seu cargo o currículo Waldorf inicial (Matemática, Português, História, Geografia, Ciências Naturais, etc). Outros professores encarregam-se das disciplinas individuais; (e) não se utilizam computadores e não há livros escolares durante os primeiros anos, pois são os próprios alunos que elaboram tudo em cadernos próprios criados com arte, imaginação e individualidade; (f) no secundário são introduzidos temas mais complexos, mas preserva-se um equilíbrio entre a crescente liberdade de actuação e a criatividade social; (g) muitas escolas preparam para a admissão ao ensino superior. (h) nas escolas Waldorf não se ensina Antroposofia, e não há "cruzamentos" com outras práticas, yogas, meditações ou quaisquer inspirações orientais; (i) o ensino de religião é parte integral do currículo e para tal há sempre professores contratados de acordo com as crenças de cada família. Quando aparecem pais que estão convencidos dos benefícios da PW, mas declaram "não ter religião", eles não são dogmaticamente rejeitados, mas devem aceitar que os seus filhos sejam incluídos nas aulas de Religião Livre do currículo Waldorf, as quais estão baseadas nos princípios morais dos evangelhos cristãos.
E: Estimular a criatividade, promover a independência através da arte e do contacto com a natureza, ajudar os alunos a expressar competências inatas e únicas. Como é feito este trabalho? RG: O tema é de enormes proporções, mas para fornecer uma resposta abreviada posso esboçar alguns aspectos capitais. A essência da PW pode ser expressa como uma arte de facilitar o desabrochar de competências inatas únicas. Para tal, o principal é saber reconhecer e afastar os empecilhos que se apresentam. Cultiva-se uma permanente reverência pedagógica por cada criança, como autêntica representante da humanidade e do princípio superior presente na sua constituição tríplice: material-anímica-espiritual. Os docentes dedicam-se eles próprios a uma permanente auto-educação.
E: Acredita que a criança é capaz de se educar a si mesma, desde que criadas as condições para que isso aconteça? RG: A PW não se dedica a fornecer conhecimentos, como se as crianças fossem inicialmente inocentes arcas vazias. O essencial é reconhecer nos alunos a presença de todas as dinâmicas inatas necessárias para um processo de auto-educação e gradual descoberta de si próprios e do mundo. É aqui que professores e pais intervêm colaborativamente, oferecendo ambientes propícios para uma expansão biográfica autónoma, segundo o destino interior de cada criança. A totalidade do ensino Waldorf é de carácter imaginativo e artístico-criativo, cultivando-se competências para uma aprendizagem contínua durante toda a vida.
E: Depois de 12 anos numa escola Waldorf, os alunos estão preparados para enfrentar o ensino superior, onde há avaliações e chumbos? RG: O chamado "sucesso académico" ou "sucesso profissional" exige hoje sobretudo qualidades de criatividade, autoconsciência, flexibilidade cognitiva, adaptabilidade a transformações críticas, e capacidade para manter intacta a própria identidade. Tudo isto é cultivado logo desde os primeiros dias no jardim-de-infância Waldorf. Recentes estudos na Europa e na América comprovaram inclusive que os ex-alunos Waldorf alcançam um sucesso fora do comum e um máximo de competências para as ocupações assumidas na vida adulta.
E: Os professores têm uma preparação especializada para ensinar numa escola Waldorf? RG: Os docentes são formados em escolas superiores ou centros de formação de Pedagogia Waldorf. Não se exige qualquer pré-formação específica, e o treinamento pode durar dois ou três anos em regime integral, havendo outras alternativas para estudos parcelados. Há muitos centros de formação em todo o mundo (o mais próximo está em Madrid) e em Lisboa existe um curso introdutório.
E: Uma direcção colectiva, um parlamento escolar. É fácil gerir um estabelecimento de ensino sem um patamar hierárquico, em que todos estão ao mesmo nível? RG: Nas escolas Waldorf não existe qualquer utopia do tipo "todos iguais a todos". Mas a ausência de uma pirâmide hierárquica constitui, precisamente no mundo da educação, um princípio democrático direccionado à paz e ao futuro, não significando menos eficácia no trabalho. A direcção colectiva dos professores Waldorf, junto com os demais órgãos da escola, promove uma total transparência entre professores, pais, familiares e amigos. Isto resulta mais criativo e recompensador para todos e, em última análise, mais efectivo para a educação pretendida.
E: Qual deve ser o papel dos pais no processo educativo? RG: Os pais que optam pela PW fazem-no por autêntica convicção e conscientes dos direitos humanos das crianças. Eles são cooperadores imprescindíveis em todo o projecto, assumindo um compromisso com essa pedagogia e o seu modelo comunitário-escolar. Durante muitos encontros regulares entre pais e professores, os acontecimentos a nível familiar ficam transparentes para a escola e vice-versa. Além disso, as numerosas festas e apresentações ao longo do ano reforçam o espírito de comparticipação.
E: Tem falado num "fantasma opressor do moderno mundo escolar". Na sua opinião, o sistema de ensino está demasiado formatado? RG: O último século, cada vez mais dominado por uma compreensão materialista-cientifista do ser humano, veio condicionar a tal "demasiada formatação". Sem dúvida já há hoje, inclusive na nova pasta da educação, corajosos impulsos de renovação humanística, mas surgiu por último a crença tecnomisticista (aliás já cientificamente desmascarada e rejeitada na América e na Europa) dos meios electrónicos aplicados à educação básica. Essa absurda medida só pode ser classificada como um acto de pobreza espiritual, pois está esvaziada dos impulsos morais necessários para promover os princípios de liberdade, paz e comunhão na nova sociedade emergente. Alunos vitimados desde cedo por essa deformação robótica sofrem de uma crescente insensibilização moral e um dramático desencontro consigo próprios. O pavoroso quadro de brutalidades psíquicas e físicas surgidas nas escolas, mais os fenómenos de bullying, desistências e depressões (inclusive entre professores), está aí visível para todos. A última resposta oficial a tudo isto foi a criação de uma nova lei de crime público, com penas de um a cinco anos de prisão, para violência nas escolas.
E: Os professores portugueses estão a ser avaliados. Uma medida sensata para promover a excelência da classe docente? RG: A essência dramática da questão é que semelhantes avaliações são insufladas precisamente por aquele doentio modelo dos chumbos. Pretende-se passar por um crivo os trabalhadores imediatos do ensino, enquanto que a respectiva estrutura estatal arcaica e autoritária permanece intocada. A classe docente portuguesa necessitava sobretudo da oportunidade para uma profunda reflexão sobre reformas pedagógicas (algo como um novo pacífico 25 de Abril para as mentalidades).
E: No sistema de ensino português, a avaliação de desempenho, a precariedade dos professores contratados, a falta de psicólogos nas escolas, algumas regras no Estatuto do Aluno têm provocado alguma contestação. Em seu entender, as políticas educativas em Portugal caminham num bom sentido? RG: A educação das novas gerações (algo que equivale ao próprio futuro da humanidade) é por natureza própria incompatível com aspirações políticas, astúcias personalistas, programas partidários ou eleições. Como prolongamento de um conservantismo agora semiafogado na experiência da tecnificação em massa, as nossas políticas educativas estão cada vez mais confrontadas com um incompreensível novo mundo (e isto em simultâneo com o actual abismo da bancarrota financeira do país). Toda uma arquitectura secular feita de orgulhos nacionalistas e raciais, convicções de classe, avanços científicos e jogatinas económicas internacionais está agora a ser sacudida pela base, como que lavada por uma benemérita onda tsunâmica global. A nova ordem social emergente grita muito mais por uma renovação humanista da educação do que por planos de defesa contra armas nucleares ou ataques terroristas.
E: Portugal tem poucas escolas Waldorf. Desinteresse, falta de investimento, pouca abertura para uma metodologia diferente, resistência a um programa diferente do ensino regular? O que se passa? RG: A Pedagogia Waldorf, ou Arte de Educar de Rudolf Steiner, é uma renovação conceptual alargada por uma verdadeira antropologia científico-espiritual do Homem e para o Homem. Ela foi reconhecida pela UNESCO e está hoje presente no mundo como uma realidade colaborante no esforço de humanização e aprofundamento espiritual da educação. Portugal é a última nação da Europa Ocidental sem uma presença socio-cultural da Pedagogia Waldorf. Para além da dificuldade típica de impulsos pioneiros, existe a referida política oficial conservativa e asfixiante, que bloqueia uma reforma legislativa que permita a existência de escolas livres, e sobretudo emancipadas da mórbida prática dos exames de "equivalência" impostos a crianças cujos pais optaram legalmente por outra linha educacional.
No Algarve, no município da Vila do Bispo, um corajoso grupo de mães, pais e professores mantém hoje a "Escola Livre do Algarve - A Oliveira" como primeira escola primária Waldorf regular em Portugal. Sara R. Oliveira |
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