Professores e técnicos especializados nas escolas têm um papel fundamental na educação de crianças com autismo. Estimativas em Portugal apontam para 1% de incidência de autismo nas crianças em idade escolar. Há escolas com as valências necessárias, mas a maioria sofre com falta de recursos humanos.
Joana (nome fictício), 6 anos, aluna do 1.º ano do colégio Efanor, em Matosinhos, não fala, mas consegue comunicar com colegas e professores através da comunicação aumentativa, usando símbolos, que tanto servem para indicar que precisa de algo, como para explicar o que sente ou que quer que se faça num determinado momento da aula. Na sala, para além da professora titular, Joana conta com uma tutora e com o apoio dos outros colegas de turma que não a veem como uma criança diferente. “Somos todos iguais e todos diferentes. Por exemplo, eu tenho óculos e o meu amigo não tem. Eu tenho o cabelo comprido e a minha amiga não tem”, explicou uma das alunas numa aula onde o DN esteve presente.
Nessa mesma aula, o grupo recebeu a visita da psicóloga Patrícia Barros, responsável por implementar estratégias para que a inclusão da pequena Joana seja feita de uma forma tranquila e eficaz. Gwen Vieira, a professora titular, sublinha a importância do papel dos terapeutas e das outras crianças na vida de Joana. “Todos usamos os mesmos símbolos e estamos a desenvolver a comunicação aumentativa. A ideia é que todas as crianças tenham a mesma simbologia para que possam comunicar”, explica. A docente garante que Joana é uma menina feliz, está perfeitamente integrada na turma e que “todos a aceitam bem, brincam juntos nos intervalos e procuram-na muito”. Essa integração, garante, é benéfica não apenas para Joana, mas “para todas as crianças da turma”. “O contacto com as diferenças mais acentuadas também leva os mais pequenos a incentivar a restante comunidade escolar para a aceitação, a empatia e a tolerância”, conclui.
Para além da psicóloga que visita a turma, há toda uma equipa multidisciplinar que acompanha a aluna, composta por uma professora de Educação Especial, uma terapeuta da fala e uma tutora. Essas equipas multidisciplinares fazem parte da maioria das escolas públicas e privadas.
Os dados mais recentes divulgados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) referem que uma em cada 100 crianças em idade escolar tem Perturbação do Espetro do Autismo (PEA). Uma realidade que não é diferente em Portugal, embora o último estudo feito no nosso país date de 2005. Ao DN, Fernando Campilho, presidente da Federação Portuguesa de Autismo (FPA), diz estimar que 1 por cento das crianças em Portugal sofram de PEA. “Em Portugal não há números fiáveis, mas nós estamos a recorrer aos números internacionais. Por exemplo, há um estudo científico americano que concluiu 1 em cada 36 crianças tem espetro do autismo. Nós estimamos que, em Portugal, seja de 1 por cento, ou seja, 1 em cada 100”, sublinha.
Segundo o Governo, no início deste ano letivo estavam matriculadas em Portugal 1,3 milhões de crianças e jovens no ensino básico e secundário, no ensino público e privado – se 1% tiver espetro do autismo, falamos de 13 mil alunos.
Com o último estudo com dados desatualizados, o responsável salienta a necessidade de voltar a analisar a realidade portuguesa. “Um novo estudo deveria ser feito, mas ter um estudo sério não é barato, nem fácil. A verdade é que os casos têm aumentado ao longo dos últimos 30 anos e era necessário conhecermos a nossa realidade para desenvolvermos um trabalho mais eficaz”, lamenta.
E é devido ao aumento de casos de PEA que o papel dos terapeutas e do acompanhamento em ambiente escolar ganha cada vez mais importância.
“É essencial o papel do terapeuta. Não apenas de um profissional, uma vez que nenhuma intervenção que vá abordar uma área isolada do desenvolvimento vai atingir as questões do Autismo. Apesar do Autismo envolver áreas centrais como a interação e a comunicação social, há um conjunto de campos do desenvolvimento implicado primária ou secundariamente, como as questões sensoriais, motoras, atencionais, cognitivas e emocionais”, explica Patrícia Barros. A psicóloga salienta ainda a necessidade de intervenção precoce, envolvendo o trabalho transdisciplinar. “Esse trabalho, que integra numa mesma intervenção diversos olhares que se entrelaçam, favorece o desenvolvimento da criança de forma holística, integrando diversas áreas do desenvolvimento no espaço escolar”, refere.
As crianças com PEA têm necessidades diferentes, pois os graus de autismo podem ir de leve a grave, necessitando de diferentes tipos de intervenção. No caso de Joana, o papel da terapeuta da fala é essencial para o seu desenvolvimento, como explica Mariana Dias, a profissional que a acompanha. “As crianças com Perturbação do Espetro do Autismo apresentam dificuldades persistentes nos pilares da comunicação, especialmente aqueles relacionados com a interação social. Estas dificuldades incluem competências limitadas na integração da comunicação verbal e não-verbal, ao nível do contacto visual, estabelecimento de atenção conjunta, trocas de turnos e funções comunicativas, expressões faciais, gestos como suporte para a comunicação, alterações na prosódia e ainda impasses no planeamento motor para a produção de sons da fala”, revela. A terapeuta salienta que “estas dificuldades comunicativas trazem implicações para a compreensão e expressão da linguagem”. “É importante ressaltar que o nível de competência comunicativa alcançado pelas crianças com PEA é um dos principais preditores para um bom prognóstico a médio e longo prazo”, alerta.
Já Telma Pereira, tutora e assistente terapêutica de Joana, é quem mais tempo passa com a criança em sala de aula, estando presente na quase totalidade das atividades letivas. Questionada pelo DN se esse apoio deveria ser realizado em todas as escolas, a profissional revela poder não ser necessário em todos os casos. “Acredito que seria redutor ter um sistema de apoio universal para todas as crianças autistas. As necessidades e características individuais variam muito dentro do espetro do autismo, por isso, esta intervenção deverá ser fundamentada por uma avaliação profissional rigorosa. Assim, o meu papel enquanto assistente terapêutica é personalizado para a aluna, tendo em conta as suas necessidades específicas. Sou a responsável pela prática das estratégias e adaptações curriculares dentro dos espaços da escola”, adianta.
Contudo, embora a metodologia se deva adaptar caso a caso, Telma Pereira defende o direito de todas as crianças “a um ensino de qualidade e apoios individualizados, que não só os ajudem a alcançar o seu pleno potencial, mas também respeitem as suas singularidades.
Baixos níveis de literacia da comunidade escolar são um entrave
Telma Pereira, tutora e assistente terapêutica, enfrenta muitos desafios no acompanhamento de crianças diagnosticadas com PEA. Um deles é o “baixo nível de literacia da comunidade escolar, em relação ao autismo”. “Isso faz com que sejam colocados desafios a estas crianças, que ultrapassam ou até minimizam as suas capacidades. Por exemplo, não se pediria a alguém que utiliza cadeira de rodas para correr. No entanto, como o autismo apresenta características diversificadas e, em alguns casos, não tão evidenciadas, estas crianças deparam-se com demandas muitas vezes desalinhadas com as suas características”, esclarece. Segundo a terapeuta, quem lida com crianças com PEA, “quando as exigências são desproporcionais, a resposta também é menos consistente e, portanto, pode haver frustração por parte do profissional”. “Por essa razão, é fundamental não apenas ter um profissional individualizado, mas também um professor de classe que seja preparado e formado para identificar com clareza e agir consoante os diversos perfis das crianças autistas”, afirma. Telma Pereira apresenta ainda a realidade das escolas, onde “é cada vez maior a quantidade de crianças autistas em sala de aulas e mais complexo o desafio da inclusão”.
“Acreditamos que só um esforço conjunto e o conhecimento aprofundado das características e técnicas de intervenção podem ampliar o desenvolvimento dessas crianças bem como melhorar a qualidade do trabalho e o bem-estar também dos professores”, diz.
Segundo a terapeuta, outro dos desafios reside “na verdadeira inclusão da criança, indo além da sua presença nas atividades escolares e facilitando a sua real participação nas mesmas”. E para que se possa potenciar uma evolução na qualidade de vida das crianças, frisa, “é fundamental fazer transformações e acomodações para criar um ambiente de plena inclusão”.
“Escola de afetos” é um caso de sucesso
Uma sala livre de estímulos excessivos que possam sobrecarregar os sentidos das crianças com autismo, um espaço com cores suaves e iluminação adequada, um ambiente dividido em zonas específicas para diferentes tipos de atividades, com áreas de jogo sensorial, áreas de relaxamento, áreas de aprendizagem e áreas de comunicação, uma variedade de recursos, como almofadas de texturas diferentes, zonas de autorregulação para acalmar as crianças – com baloiços que simulam ninhos –, brinquedos sensoriais e materiais táteis. Este é o espaço criado de raiz pela Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva (EMAEI), em setembro de 2023, no Agrupamento de Escolas Eugénio de Andrade, no Porto. A valência conta ainda com quadros de rotina, calendários visuais, cartões de comunicação e etiquetas com imagens para facilitar a compreensão e até uma cozinha adaptada. As crianças do agrupamento contam ainda com cinoterapia (uma atividade que utiliza o cão como facilitador no processo terapêutico), musicoterapia e atividades lúdicas adaptadas.
Tudo foi pensado ao pormenor por Sónia Cruzeiro, coordenadora da EMAEI. Um sonho tornado realidade depois de três anos de aumento sucessivo de matrículas de alunos com PEA e uma vontade de fazer mais pelas crianças do agrupamento. “Esta valência era um sonho para mim porque considerava que esta era a resposta necessária e adequada para as crianças”, conta emocionada, ao DN, Sónia Cruzeiro. A luta da coordenadora surtiu efeito, conseguindo a aprovação do Ministério da Educação e o apoio da Câmara Municipal do Porto. O agrupamento que era já uma referência na educação bilíngue para alunos surdos viu assim nascer uma valência onde há todos os recursos para potenciar as capacidades das crianças, embora Sónia Cruzeiro queira mais. “Custa-me dizer que não tenho vagas quando os pais nos procuram e estão emocionalmente frágeis”, confessa.
Nos últimos anos, conta, a escola registou um acréscimo acentuado de crianças com PEA e os pedidos de inscrições e de reuniões com pais fazem antever o mesmo cenário para o próximo ano letivo. “Já fiz quatro reuniões com pais que querem inscrever os filhos na escola, pois sabem que aqui temos as melhores condições para os receber”, revela. Sónia Cruzeiro quer, por isso, fazer crescer a valência para “conseguir dar resposta a todos”. “O nosso sonho é conseguir alargar aos outros ciclos, pois neste momento estamos a trabalhar apenas com crianças do 1.º. Queremos alargar e replicar o que estamos a fazer”, afirma.
A equipa é composta por duas professoras de educação especial, duas terapeutas da fala, uma terapeuta ocupacional, um professor de educação física adaptada e um intérprete de Língua Gestual Portuguesa. Uma equipa alargada de especialistas para apoiar as 22 crianças do agrupamento.
Contudo, o propósito não é manter os alunos confinados no mesmo espaço. “O objetivo não é tirá-los das salas de aula, mas ter este apoio num espaço próprio onde possam potenciar as suas capacidades”, conta. Uma estratégia que tem surtido efeito nos poucos meses de existência da valência. A articulação entre a equipa da EMAEI e os professores titulares das turmas em que as crianças estão inseridas permite dar continuidade ao trabalho da equipa em sala de aula. E as crianças, garante Sónia Cruzeiro, são felizes. “O mais gratificante é ver a alegria com que chegam à escola e a tranquilidade dos pais quando nos entregam os filhos. Há pequenas conquistas a cada semana que passa”, acrescenta Carolina Ribeiro, terapeuta da fala. Conhecida como “uma escola de afetos”, Sónia Cruzeiro defende que a disponibilidade emocional e o trabalho com amor que a equipa realiza na instituição de ensino é o segredo para que as crianças com PEA sejam felizes e para que possam vir a ser cidadãos autónomos.
Faltam recursos para alunos do Ensino Especial
Os casos de sucesso das escolas visitadas pelo DN não refletem a realidade da maior das instituições de ensino em Portugal. A Federação Nacional dos Professores levou a cabo um estudo, no decorrer do 1.º período, num universo que corresponde a 10% dos agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas do continente, questionando os diretores escolares sobre a Educação Inclusiva. O resultado mostrou que 83% dos diretores dos agrupamentos de escolas (AE) e das escolas não agrupadas (ENA) afirmaram não ter os recursos necessários para uma “educação verdadeiramente inclusiva”. Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas, tem alertado sucessivamente para essa problemática, afirmando que “a educação inclusiva é o parente pobre da educação” e pedindo mais investimento em recursos humanos e na formação dos assistentes operacionais.
Como explicar o aumento de casos
Patrícia Barros, especializada em problemas de desenvolvimento de crianças e adolescentes e investigadora na Universidade do Minho, apresenta várias justificações para o aumento da incidência de PEA, mas admite não haver uma resposta unânime sobre o tema. “Existem algumas possíveis hipóteses, como os avanços na expansão da informação e do diagnóstico do autismo, especialmente os níveis mais subtis, questões genéticas e epigenéticas, variáveis ambientais durante a gravidez e parto como o sofrimento fetal, por exemplo. O Autismo é multifatorial, apesar de se saber que há uma grande participação genética”, explica. Já Fernando Campilho, presidente da FPA, acredita que o aumento da incidência de casos passe pela alteração dos critérios de diagnósticos e por “uma maior atenção por parte das famílias”.
Fonte: DN
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