Autismo, esta sexta-feira [dia 2 de abril] assinalamos o dia para a sua consciencialização. Ideal seria que este dia não precisasse de existir, mas ainda estamos muito longe dessa realidade. Ainda estamos numa realidade em que, para a maioria, esta palavra é tão vulgar quanto confusa.
Tive em tempos uma discussão sobre o porquê de usarmos a palavra autista para nos referirmos a uma pessoa com autismo de nível 1, vulgo autismo de alto funcionamento, daquelas mentes brilhantes com direito a documentários e filmes a relatar a sua espectacular história de vida, enquanto usamos a mesmíssima palavra quando nos referimos às pessoas com autismo de nível 3, que não comunicam, não interagem e parecem não ter qualquer interesse e/ou competência.
Para quem está “de fora” é difícil compreender o que têm em comum alguém que pode ser um génio da matemática, ainda que com dificuldades na interacção social e particularidades, que no seu caso serão “manias de génio”, e uma pessoa que não tem linguagem verbal expressiva, não parece compreender o que lhe é dito na maioria dos casos e passa o dia a abanar-se (na melhor das hipóteses) ou a bater com a cabeça nas paredes.
Pergunto-me o quão embrenhada estou neste mundo do autismo, onde trabalho há mais de 11 anos, para conseguir identificar as mesmas características de base nestes dois casos que descrevi. Lembro-me de, nessa discussão, me ter socorrido de uma apresentação em PowerPoint, pejada de referências bibliográficas, para validar que não era invenção minha isto de dar o mesmo diagnóstico a pessoas aparentemente tão diferentes. Lembro-me também de ter sentido que me faziam falta mais braços, ao estilo Ganesha – deus indiano com vários pares de braços – porque senti que necessitava do meu tronco para sinalizar os comportamentos centrais do autismo e de mil braços que pudessem explicar as diversas trajectórias que podem existir para além deles.
Depois de uma longa conversa, acho que consegui arrumar as ideias do meu interlocutor, fazendo-lhe ver que o facto de uma das pessoas não falar e mal compreender a linguagem verbal era quase um “acaso” e não era isso que a fazia ser mais ou menos autista do que o autista genial do filme, porque ambos partilhavam os traços principais do autismo – défice na comunicação e interacção social e interesses restritos e repetitivos – e ainda critérios que ajudam a validar o diagnóstico, como é o caso das alterações sensoriais. No final, depois de convencido de que havia, de facto, características comuns entre ambos, obtive o seguinte comentário: “As pessoas que fazem os diagnósticos de autismo, não percebem nada de marketing. Se percebessem saberiam que nunca deveriam atribuir a uma palavra um significado tão abrangente, porque assim ela perde significado e não se associa verdadeiramente a nenhuma das realidades, nem consegue ser sinónimo de tantas e tão diferentes.”
Isto levou-me a pensar, uma vez mais: qual é a importância deste nome e deste diagnóstico em termos práticos? Qual o efeito que terá para um pai/mãe que ouve este diagnóstico pela primeira vez? Será que conseguimos realmente explicar a diversidade que daí pode surgir? Será que nos focamos efectivamente nas dificuldades e competências que aquela criança/pessoa apresenta e não só nas características que fazem dela “autista”? Sem querer dar a entender que tenho medo da palavra, porque não tenho e sou até bastante a favor de que esta seja usada, acho que urge explicar e desmistificar que uma pessoa não é autista porque não fala, porque tem défice cognitivo, porque tem um QI superior ou porque também tem epilepsia ou hiperactividade. Isso são outras características que aquela pessoa também tem. Todos os que trabalhamos e interagimos com pessoas com autismo somos responsáveis por esta (des)informação e temos um caminho a fazer neste sentido todos os dias.
Gostaria de acrescentar que acho que cada vez mais me convenço de que esta diversidade, que traz tanta dificuldade na comunicação daquilo que é o autismo e do que este diagnóstico pode representar, é a mesma que me prende a este universo. Sinto que eu própria me encontro numa busca incessante por padrões e características comuns em pessoas diferentes. E normalmente consigo encontrar! Daí que, para mim, seja claro o porquê de se chamar autista a pessoas em pontos tão distantes deste “espectro”. E assim embarco neste desafio de fazer ver a cada vez mais pessoas estas semelhanças, porque provam que um diagnóstico não é apenas o fechar dramático de portas, mas pode ser o abrir de oportunidades... Se conseguirmos perceber que o que faz de alguém um autista genial, pode fazer de uma outra pessoa, aparentemente sem competências, o melhor em alguma coisa que, se calhar, ainda está por inventar.
Maria João Morgado
Fonte: Público
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