Chamam-lhe “segundo cérebro” e compreende-se porquê: na última década, a comunidade científica tem vindo a reconhecer que os três mil milhões de bactérias que habitam no trato intestinal – o microbioma – influenciam o desenvolvimento do sistema imunitário e produzem neuroquímicos essenciais ao funcionamento cerebral. A cabeça e o intestino comunicam entre si através de uma rede complexa de neurónios e neurotransmissores – sistema nervoso entérico – e, embora pouco se saiba sobre estes mecanismos, os cientistas têm vindo a notar uma associação entre processos inflamatórios do intestino taxas mais elevadas de problemas neuropsiquiátricos (doença bipolar, autismo e esquizofrenia, por exemplo). Estudos realizados pela equipa do fisiologista americano Christopher Lowry, divulgados no tema de capa da edição da revista Monitor on Psychology, demonstraram que injetar bactérias benéficas (anti-inflamatórias) no intestino de ratos sujeitos a condições de stresse não só reduzia os níveis de medo e ansiedade na exploração do ambiente como prevenia colites induzidas pelo stresse.
Extrapolar estas conclusões para os humanos, admitindo que as alterações do foro mental podem ser resolvidas com terapias à base de “bactérias boas” e dietas específicas é excessivo e prematuro, mas o interesse pelo tema está a conquistar a comunidade científica e os profissionais de saúde, cada vez mais confrontados com a crescente oferta de suplementos e programas alimentares (caso da Gut And Psychology Syndrome ou GAPS) como resposta a problemas alérgicos e perturbações do desenvolvimento infantil, incluindo as dificuldades de aprendizagem e a perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA), sem consenso científico quanto à sua eficácia.
PHDA: Uma condição pouco compreendida
Joana Santos tem dois filhos, com 11 e sete anos, mas apenas a mais nova tem o diagnóstico de PHDA. “Tinha cinco anos quando a educadora do pré-escolar reparou que alguma coisa não estava bem com a nossa filha, era pouco atenta, caía da cadeira, tinha dificuldades no desenho e na caligrafia”, conta. “Em casa, era muito impulsiva e reagia de forma descontrolada, algo que se confundia com mau comportamento mas era, como se confirmou depois, uma doença.” Saber isso tranquilizou a família e possibilitou um rumo diferente, que implicou a prescrição de fármacos (estimulantes do sistema nervoso central da família das anfetaminas) e acompanhamento específico. “A medicação fez toda a diferença, sobretudo durante o tempo em que as aulas foram dadas à distância”, reconhece a mãe. A criança voltou ao sistema presencial e tem terapia semanal com uma psicopedagoga para as dificuldades de aprendizagem e é uma das participantes do Projeto M2Child a decorrer na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP).
Joana Santos tomou conhecimento deste estudo através das redes sociais e achou que valia a pena fazer parte das famílias que estão a aderir ao estudo, que foi distinguido com uma bolsa da Sociedade de Pediatria do Neurodesenvolvimento. “Acredito que, deste modo, estou a contribuir para que estas crianças sejam melhor compreendidas”, conclui.
Os segredos do microbioma
No estudo está prevista uma amostra de 110 crianças, com idades entre os cinco e os dez anos, e dois grupos (crianças com PHDA e sem perturbações no neurodesenvolvimento), que tanto podem chegar através das consultas dos serviços de saúde como da comunidade. “Trata-se de um projeto inovador, que envolve avaliação funcional e neuropsicológica e da realização de análises gerais e específicas do microbioma”, esclarece a pediatra Micaela Guardiano, coordenadora do departamento de Neurodesenvolvimento do Hospital de São João, no Porto.
Consciente de que “não existem meta-análises com respostas claras sobre a eficácia, ou a vantagem, de abordagens que implicam dietas ou suplementos específicos”, a clínica vê neste estudo uma oportunidade para “apurar se existe uma correlação entre o perfil neuropsicológico das crianças e aquilo que se passa no seu intestino”, ou seja, com as biomoléculas envolvidas na inflamação e na regulação do sistema nervoso, tendo em mente novas abordagens de modulação do microbioma.
Com uma prevalência estimada de cinco a sete por cento nas crianças e nos adolescentes (até aos 18 anos), esta perturbação do neurodesenvolvimento nem sempre requer medicação. Ela só faz sentido nos casos em que há sintomas moderados ou severos e que não respondem a outras terapias. “Nos casos ligeiros, passam pela intervenção psicológica para o treino de comportamentos, que inclui apoio parental, rotinas de sono, exercício físico e estratégias psicopedagógicas na escola”, observa Micaela Guardiano, referindo como exemplo “colocar a criança mais próxima do professor ou dar-lhe tarefas para que não esteja tanto tempo sentada”.
Encontrar respostas
Joana Gomes começou por estudar microbiologia e doenças infecciosas, esteve profissionalmente ligada à área da dor e acabou por dedicar-se às neurociências. Um desvio que teve na base um acontecimento de vida: “Tenho um filho com nove anos, diagnosticado com esta patologia e queria perceber melhor o que havia nessa área.” Hoje, a neurocientista e professora no departamento de Biomedicina da FMUP é coordenadora do Projeto M2Child, que está a ser feito em colaboração com o i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde. “As famílias que têm chegado a nós esbarram com preconceitos e falta de respostas; aqui encontram alguém que se interessa pelas suas angústias e tenta ver o problema com outros olhos”, faz saber.
A avaliação dos dados recolhidos está prevista para setembro, mas independentemente dos resultados do estudo, a investigadora sublinha o facto de ele se alinhar com o que se faz lá fora e que assenta nesta hipótese: “A desregulação do microbioma pode traduzir-se na libertação de moléculas que interferem com o funcionamento do sistema imunitário que, por sua vez, altera os neurotransmissores responsáveis pela comunicação entre os neurónios.”
No plano internacional existem trabalhos com resultados promissores (caso da terapia fágica, em que se introduzem vírus que infetam e modulam as populações de bactérias no organismo) na regulação do microbioma e a possível associação a problemas de saúde mental, mas no caso da PHDA “ainda há muito pouca coisa descrita”. Nesse sentido, a pesquisa visa “estudar os metabolitos libertados pelos microorganismos do intestino e cruzar essa informação com a avaliação clínica das crianças” e explorar os mecanismos de uma perturbação “mais prevalente nos rapazes e subdiagnosticada nas meninas, por não terem tanta impulsividade, sendo mais visível o défice de atenção”.
Quanto às mudanças alimentares, cientistas e clínicos carecem de estudos seguros para dar luz verde, por exemplo, a dietas isentas de glúten e caseína (das bebidas lácteas) ou ao consumo de prebióticos (moléculas que estimulam o crescimento de bactérias boas), probióticos (bactérias vivas que facilitam a digestão e se encontram nos alimentos fermentados) e afins. “É complicado, porque apenas se pode dizer que mal não fazem.” Talvez num futuro próximo se venha a saber mais sobre os mecanismos do “segundo cérebro” e novas combinações, comprovadamente eficazes, que o tornem um aliado na promoção da saúde mental.
Fonte: Visão
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