No primeiro ano da primária, as diferenças entre Raquel e os seus colegas cimentaram-se: aborrecia-se facilmente com as brincadeiras do recreio, e procurava sempre “desafios maiores”, explica a jovem, que aos três anos já sabia ler. Não tardou até os pais descobrirem que era uma criança sobredotada. “Foi o diagnóstico inicial, mas o que se passava comigo ia muito além disso”, explica Raquel Moreiras, agora com 21 anos.
Embora fosse uma criança “extrovertida” e num frenesim de actividades — tocava clarinete, fazia teatro, participava em projectos como o Parlamento Jovem —, os ataques de pânico e de ansiedade foram-se tornando constantes. Sem perceber como nem porquê, aos 12 anos vivia uma depressão profunda que a impedia de sair da cama ou ir às aulas, e que desencadeava episódios de automutilação — e uma tentativa de suicídio. “A adolescência foi passada num sítio escuro. Como era muito nova, não percebia o que estava a acontecer”, diz Raquel.
Quando terminou o secundário, deixou os Açores para estudar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Na altura, o psiquiatra que a acompanhou durante a adolescência redigiu uma carta que Raquel deveria fazer chegar ao profissional de saúde que a fosse seguir em Lisboa. “Num momento de impulsividade, decidi abrir a carta. Estava à espera de ler que sempre tive depressão ou ansiedade, mas dizia que eu sofria de perturbação de personalidade borderline”, recorda a jovem. “Fiquei em pânico. Eu sabia que, ao contrário da depressão, que pode ser tratável, teria de viver com borderline para sempre.”
Na sombra
Numa altura em que a pandemia coloca novos desafios à saúde mental, há tendencialmente um maior entendimento sobre problemas como a depressão ou a ansiedade. Ainda assim, há outras doenças mentais que continuam na sombra, como acontece com o transtorno de personalidade borderline.
Este transtorno afecta entre 2% e 6% da população mundial e é marcada pela desregulação de emoções. “É como se as emoções estivessem completamente livres, e fazem o que querem do corpo”, afirma Diogo Carreiras, investigador na Universidade de Coimbra e autor do primeiro estudo no país focado na perturbação borderline na adolescência. A nível comportamental, caracteriza-se por oscilações de humor, impulsividade, autocrítica, crises de identidade, “sentimento de vazio” ou “receio de abandono”, explica o investigador.
Outra característica comum são os comportamentos autolesivos — segundo este estudo focado na detecção de borderline na adolescência, as raparigas fazem mais cortes superficiais em determinadas áreas do corpo enquanto os rapazes tendem a bater neles próprios — e a ideação suicida. Há investigações que mostram que cerca de 75% de pessoas com esta perturbação cometem, pelo menos, uma tentativa de suicídio.
“Chuva de defeitos”
Como se trata de uma doença desenvolvimental (ou seja, não é causada por um acontecimento), pode surgir da combinação de factores biológicos e ambientais, marcados na infância ou adolescência. No caso de Nélia Catarina Neves, apesar de a sua mãe também ter uma psicopatologia, para compreender a perturbação de personalidade é necessário recuar até 2002, quando tinha 14 anos e foi vítima de abusos sexuais. Passados dois anos, a sua melhor amiga foi vítima de abuso sexual do mesmo agressor e acabou por se suicidar.
Desde essa altura que é acompanhada por psicólogos e psiquiatras, mas o diagnóstico de borderline só foi feito dez anos depois, em 2012. Até então, nunca tinha ouvido falar desta doença. “Sempre pensei que era deprimida ou simplesmente estranha”, explica Nélia, agora com 32 anos. Insatisfeita com a parca informação que lhe foi dada na consulta, decidiu pesquisar sobre a doença na Internet. “Tudo o que lia parecia uma chuva de defeitos que ia ter para o resto da vida. Como estava tão assustada com aquela descrição, procurava encaixar o meu perfil noutro diagnóstico mais leve”, explica.
Em negação com a doença, interrompeu as consultas de psiquiatria e dedicou-se “totalmente” ao curso de Direito, que iniciava por aquela altura. Mas rapidamente o seu estado clínico piorou: a ansiedade aumentou, tinha períodos “de constante raiva”, outros em que não conseguia sair da cama, e as oscilações de humor agravaram-se. “Passava da maior das felicidades para choros constantes, vontade de morrer e episódios de automutilação”, afirma.
Uma história semelhante é partilhada por Raquel. Como o diagnóstico coincidiu com o início da licenciatura, parou com as consultas e a medicação. “Ia começar o curso que eu queria e ia fazer a minha vida. Pensava que não havia nada para correr mal”, recorda Raquel, que, neste período, também começou a ter crises de impulsividade e até episódios dissociativos — ou seja, em que existe uma intrusão espontânea na consciência. A jovem destaca, em particular, uma noite em que estava a estudar em casa e quando deu conta estava “no meio do cruzamento” do Campo Grande, em Lisboa, “sem saber como tinha ido lá parar”, diz. “Separei-me da realidade durante algum tempo, é como se deixasses de estar presente”, clarifica.
Muitas vezes, a automutilação era a resposta. “Com borderline temos uma ideia de dissociação, de não te sentires real, e a dor física ajudava-me a sentir alguma coisa”, afirma. Sem conseguir fazer os exames da faculdade — saía das salas a chorar nos primeiros minutos —, acabou por chumbar no primeiro ano de licenciatura.
“Faz parte de mim”, mas “não é quem eu sou”
Passar de “uma situação de aluna de mérito para não ser capaz de terminar um exame” pôs a nu o descontrolo das emoções de Raquel — e serviu de rastilho para procurar ajuda. Há três anos, retomou a psicoterapia, e o primeiro desafio foi construir uma identidade além da doença. “Foi importante perceber que tenho uma patologia que não posso ignorar, mas que não é um rótulo. Faz parte de mim agora e para sempre, mas não é quem eu sou.”
A terapia (aliada a psicofármacos) tem ajudado Raquel a compreender os seus padrões de raciocínio e comportamento e a desenhar ferramentas para os conseguir alterar. “Eu sinto as coisas intensamente à mesma. A patologia está lá, mas o trabalho de a controlar é meu”, acrescenta. Aos poucos, os “truques” aprendidos na terapia foram ajudando a melhorar a relação com os outros e até a descobrir novos gostos, como a política, juntando-se a colectivos como a Greve Climática Estudantil. “De todas as emoções, a esperança para mim era a mais assustadora. Mas a terapia deu-me a esperança de que podia ter uma vida diferente. Isso é uma vitória”, conclui.
Para Nélia, a psicoterapia foi fundamental para perceber como “coisas simples” podiam ajudar a controlar as suas emoções — os dias são mais leves quando escreve, faz longas caminhadas ou está com os amigos. Por outro lado, não cair em episódios de automutilação continua a ser uma batalha. E, independentemente da psicoterapia, garante que a doença tem sempre impacto nas suas decisões — como, por exemplo, a de não ser mãe.
Nélia recorda os comentários do seu ex-namorado, que a criticava nos seus períodos de crise dizendo-lhe que, se “continuasse assim”, seria “uma mãe de merda”. No entanto, explica que esta decisão não é contagiada por estes episódios, mas resulta de uma reflexão que se estende há anos. “Tenho noção das minhas limitações, e sei que mesmo estando num bom momento não há nada que me impeça de ter um relato de automutilação, em que estou com os olhos inchados e a dizer que quero morrer, como se fosse um disco quebrado. Uma criança não deve passar por isso”, diz.
Do dicionário à escola
Há estudos que indicam que são as mulheres quem apresenta traços de borderline mais elevados — por exemplo, na investigação da Universidade de Coimbra focada na perturbação borderline na adolescência, verifica-se uma proporção de três raparigas para um rapaz.
Na opinião de Raquel, esta prevalência contribui para a “fetichização” que existe sobre a doença e a imagem “da rapariga com comportamentos tóxicos” — cenário que piora com a “falta de exemplos realistas” em filmes ou séries, acrescenta Nélia, que não se sentiu representada em filmes como o Girl, Interrupted, que decorre num hospício nos anos 1960. Mas esta caracterização inadequada trespassa dos ecrãs: numa das aulas do mestrado de Psiquiatria Social e Cultural, um professor de Nélia disse à turma que as pessoas com borderline “deviam ser chamadas pelo nome do que são: ‘psicopatas femininas’”, relembra Nélia as palavras do professor.
Desmistificar a borderline é um exercício de várias frentes, e Nélia encontrou o seu espaço no online: além de se incluir em associações que fazem um trabalho esclarecedor sobre várias doenças mentais (como a The Pineapple Mind), tem um blogue onde escreve sobre borderline — bem como uma página de Facebook e Instagram, chamada Psychiatry Noob. “Comecei por fazer isto porque era uma forma de partilhar o que sentia sem ser julgada. Depois houve pessoas que vieram falar comigo porque se sentiam representadas”, afirma. “As redes sociais são importantes para chegar a outras pessoas borderline, porque achamos sempre que ninguém nos entende”, acrescenta.
Com a pandemia a alertar para a importância da saúde mental, as jovens consideram que esta é uma oportunidade para um melhor entendimento (e discussão) da borderline. E os avanços já se sentem: este mês, à boleia das novas palavras associadas à covid-19, o dicionário Priberam da Língua Portuguesa integrou finalmente a palavra bordeline — mas há também progressos nas escolas.
Este é o primeiro ano lectivo em que os psicólogos escolares de todo o país podem usar os questionários desenvolvidos pela equipa da Universidade de Coimbra para avaliar e sinalizar traços borderline nos alunos. É uma das conquistas do primeiro estudo dedicado a esta perturbação na fase da adolescência e, apesar de ser recente para a comunidade escolar, o investigador Diogo Carreira está optimista. “Desde o início do ano que os pedidos para usar estes questionários estão sempre a chegar.”
Fonte: Público
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