As máscaras ocultam as expressões faciais, mas os olhos arregalados deixam transparecer o fascínio pelo bronze olímpico. “Irra, esta é pesada”, sussurra uma das atletas da secção de atletismo do Clube Futebol Oliveira do Douro, enquanto segura a medalha conquistada por Lenine Cunha nos Paralímpicos de Londres, em 2012. Esta é a primeira vez que o grupo contempla ao vivo e a cores a medalha mais importante da carreira do atleta. Se precisasse de exibir todas, ocuparia uma faixa considerável do relvado do Estádio Municipal de Gaia, local habitual de treino. Com 218 medalhas conquistadas, Lenine é, afinal de contas, o atleta mais medalhado do mundo.
A primeira década de vida é uma incógnita. Com apenas quatro anos, Lenine sofre um ataque de meningite que o obriga a ficar durante um mês no hospital de Vila Nova de Gaia. A violência da complicação foi tal que locomoção, fala e competências sociais desaparecem. Mais de três décadas depois, mantém sequelas desse fatídico dia.
“Nem vendo fotografias da época tenho qualquer recordação. Antes dos oito ou nove anos de idade não me consigo lembrar de nada. A meningite afectou-me o lado esquerdo da face, só vejo 10% da vista esquerda – soube isso há menos de um ano e meio. Tinha feito uma avaliação há 20 anos e já só via 30%, a minha visão foi regredindo com o passar dos anos”, afirma (...). Conduzir, por exemplo, está fora de questão – o exame de código é uma barreira intransponível.
Regressemos à infância de Lenine no Canidelo: com as capacidades sociais arrasadas, a mãe leva-o para o desporto, com a esperança de que o filho conheça e trave amizade com outras crianças. De imediato, a vida atlética torna-se uma distracção das dificuldades do dia-a-dia, que o jovem sentia tanto em casa como na escola.
“Atravessámos muitas dificuldades quando era mais novo. Não vou dizer que passámos fome, mas foram momentos difíceis. Tivemos de recorrer à família, nomeadamente a tias, para ter comida na mesa. Tanto é que desisto da escola em 1998. Tinha chumbado duas vezes no sétimo [ano] e três no oitavo. Disse aos meus pais que ‘não dava’ para estudar e fui para ajudante de electricista aos 15 anos.”
A decisão de abandonar os estudos não é difícil, até porque o percurso para a escola é muitas vezes feito em lágrimas e com medo. “Sofria muito de bullying por ser burro. É mesmo esta a palavra. Havia dias em que não queria ir. Já praticava desporto e não via a hora de chegar as 18h30 para ir ao treino. No treino tratavam-me bem, não sentia qualquer tipo de discriminação por sofrer de deficiência, era o meu mundo”.
Os 12 anos de injustiça
A paixão pelo atletismo cresce e as conquistas nas primeiras provas nacionais chegam ainda fora do universo do desporto adaptado. A expressão “deficiência mental” – usada nos tempos em que a actual categoria da “deficiência intelectual” era ainda inexistente – assustava-o. Lenine considerava essa categoria reservada apenas para os portadores das deficiências mais graves e incapacitantes. Até que, com 16 anos, conhece José Costa Pereira, treinador que o acompanha há quase 22 anos e o motiva a inscrever-se nas competições.
“Estive presente nas 218 medalhas do Lenine. Ainda o ‘apanhei’ com 16 anos, praticamente nos 17. Começo a ser treinador dele curiosamente no dia de aniversário dele, 4 de Dezembro de 1999”, recorda com o treinador com nostalgia.
Em Março de 2000 Lenine conquista as primeiras medalhas internacionais, estabelecendo um recorde mundial do triplo salto, no Campeonato da Europa realizado na Suécia. Meses depois — e ainda menor de idade —, assegura uma vaga na equipa portuguesa que viajou até Sidney para os Jogos Paralímpicos. O quarto lugar arrecadado na Austrália é um indicador positivo para as provas seguintes: com um pouco mais de maturidade, Lenine poderá subir ao pódio no futuro e, quem sabe, conquistar o ouro olímpico. Mas essa premonição não viria a concretizar-se, por factores que fugiram ao controlo do atleta.
Mais de 20 anos depois, os Jogos Paralímpicos de Sidney continuam a ser recordados pelo escândalo que envolveu a selecção espanhola de basquetebol: uma investigação do jornalista Carlos Ribagorda revelou que a formação convocou jogadores sem deficiência para a prova, com o objectivo de conquistar a medalha de ouro. Como consequência, a categoria de deficiência intelectual — em que Lenine Cunha se insere — esteve banida durante 12 anos dos Jogos Paralímpicos.
“Lamento que por causa da fraude de alguém que não deficiente intelectual tenha pagado toda uma estrutura organizativa mundial. Eu sei que o Lenine, apesar das 218 medalhas e do bronze conquistado em Londres, poderia ter chegado mais alto. Ele fala de Atenas [2004], mas eu falo mais em Pequim [2008], teria mais maturidade do que na Grécia. Se tivesse competido em Atenas teria só 21 anos, com 25 seria muito mais maduro. E relembro que entre 2005 e 2007, o Lenine fez competições muito fortes”, explica José Costa Pereira. Estes anos em que Lenine não conseguiu mostrar o seu valor nos Jogos Paralímpicos foram a “maior mágoa” enquanto treinador.
As maiores conquistas a seguir às maiores derrotas
Apesar de estar afastado do maior palco, o português soma e segue nas restantes competições. As medalhas chegam nas mais variadas provas – muitas vezes às três e quatro por evento –, frustrando os adversários. Até ao momento de publicação desta reportagem, Lenine soma 218 subidas ao pódio, mas duas vitórias concentram especial carinho. A primeira é a conquista do bronze em Londres, corria o ano de 2012. A marca de 6,95 metros garantiu o terceiro lugar no salto em comprimento, mas ao simbolismo da prova juntou-se uma perda pessoal. Enquanto espera para ouvir o hino, o pensamento de Lenine volta-se para a irmã, falecida dois anos antes.
Lenine esteve perto de não se sagrar campeão do mundo em Outubro de 2015, três anos após a conquista nos Jogos Paralímpicos. Cerca de meio antes, em Março, a mãe de Lenine morre com cancro. O atleta tinha-a acompanhado a cada passo na dura e longa luta contra a doença oncológica, que se prolongava há quase dois anos. As últimas palavras, proferidas um dia antes da morte, foram de incentivo para as provas futuras. Lenine saiu do hospital com uma premonição negativa: nessa madrugada o telefone tocava com as más notícias. “Estivemos com ela nesse dia e por volta das 5h disseram-nos que ela tinha tido um ataque. Fomos para o hospital e vi mesmo a minha mãe a falecer...a parar de respirar. Quando cheguei a casa virei-me para o meu colega e disse-lhe que não me sentia bem. Ligavam para mim e eu não acordava.”
Nenhuma lesão tinha sido tão incapacitante quanto a morte da mãe: tentava correr, mas às primeiras passadas as lágrimas corriam-lhe da face: “Estive três semanas parado. Depois comecei aos poucos – esses ‘poucos’ foi quando vinha para aqui e chorava. O clique deu-se em Abril, mais ou menos. Disse para mim mesmo: ‘Vamos lá arrebitar, vamos lá treinar’. Treinei bem, até demais, dediquei-me a 110%.”
Em Doha, desta vez no triplo salto, chegou aos 14,16 metros, a melhor marca pessoal. A entrega da medalha abriu os noticiários. Por mais que relembre o momento, Lenine ainda não consegue arranjar uma explicação lógica para a torrente emocional que se desencadeou – mas acredita piamente que foi a forma escolhida pela mãe para uma despedida final.
“A minha mãe era a minha maior fã e melhor amiga. Posso dizer-te que naquele momento senti a minha mãe comigo. Não te sei explicar. É como se ela me estivesse a dizer adeus, esteve comigo até àquele momento e depois largou-me.”
“Antigamente, o nível três eram 150 euros mensais”
Lenine Cunha ainda não conseguiu os mínimos para assegurar uma presença em Tóquio: neste momento, não aufere qualquer rendimento do Comité Paralímpico de Portugal. O atleta, contudo, diz não ter motivos de queixa: 2021 marca o ano em que a bolsa atribuída a atletas paralímpicos atinge o mesmo valor dos congéneres olímpicos. Depois de anos de denúncia e revindicação — em 2016, Lenine vivia com 386 euros mensais —, a remuneração já pode ser considerada uma ajuda eficaz na prossecução do sucesso.
“Não quero cair em erro, saiu agora o novo valor, mas estamos equiparados aos atletas olímpicos, foi uma subida gradual. Em 2017, ganhávamos 50% do que os olímpicos, depois passámos para os 70%. Em 2019, subimos para os 85% e em Janeiro deste ano para os 100%. Não digo que fui um factor [importante para a equiparação], mas andei a lutar por isto durante duas décadas — porra, sou mesmo velho — com alguns colegas que acabaram por abandonar a carreira. Posso ter ajudado de alguma maneira, é uma honra e um orgulho que a geração mais jovem possa usufruir do que não consegui”, prossegue o atleta.
Neste tema em particular, o treinador José Costa Pereira não reserva tanta modéstia quanto Lenine: “Foi uma conquista. O Lenine foi um dos que lutou por isso e não foi um dos grandes beneficiários dessa luta”, refere.
Quando fizer mínimos para os Jogos Paralímpicos, Lenine Cunha volta a entrar no nível III da bolsa para os atletas paralímpicos. Trocado por miúdos, recebe cerca de 600 euros mensais. A verba não é suficiente para cobrir todas as despesas inerentes à alta competição, mas podia ser pior: “Se não fossem os patrocinadores não chegava para continuar, mas já foram 150 euros por mês. Eu faço disto vida, tenho de comer e viver”.
Os olhos estão agora colocados em Tóquio, naqueles que “provavelmente” serão os últimos Jogos Paralímpicos do atleta de 38 anos: “Primeiro, a minha expectativa é lá estar e depois tudo poderá acontecer. Volto a dizer isto, mas sei que desta vez é verdade... provavelmente estes são os meus últimos Jogos como atleta.” Ainda não pensa muito em acabar a carreira, mas sabe que esse dia terá inevitavelmente de chegar. Quando isso acontecer deverá transitar para treinador, estando já a tirar os cursos que lhe permitem dar o salto.
Conselhos para a juventude
Às 18h30, o frio começa a fazer-se sentir junto ao Monte da Virgem, em Vila Nova de Gaia, e convida ao regresso a casa. Um pouco abaixo, no Estádio Municipal, 40 jovens equipam-se para cumprir o treino diário. Lenine é inevitavelmente o centro das atenções, procurado por todos para conselhos nos saltos, barreiras e corrida. Esta experiência foi, em parte, o que chamou a atenção da secção de atletismo do Clube Futebol Oliveira do Douro, formação que o atleta integra.
“O Lenine está connosco há duas épocas. A vantagem de o ter no clube é enorme, o currículo fala por si, a postura também. Simplificando a resposta: é um exemplo para todos”, diz Ana Carneiro, directora técnica da secção de atletismo do clube. A exposição que Lenine trouxe — bem como a captação de novas patrocinadores — é um factor preponderante para a sobrevivência da formação, admite, mas “Lenny”, como é carinhosamente tratado, é uma peça fundamental da estrutura que incorpora 120 atletas.
Essa influência é perceptível durante o treino. Junto à caixa de areia, observa os saltos dos mais novos e oferece algumas correcções. “Olha, da próxima vez faz assim”, exemplifica Lenine, esticando os braços. Afastada da azáfama, Fabiana Lucarter treina o salto à vara no canto esquerdo do recinto. No fim-de-semana, nas provas nacionais, o objetivo são os dois metros, fasquia que Fabiana tem obrigatoriamente de ultrapassar. A vigiar atentamente a atleta de 16 anos está o treinador André Assunção, que procura polir alguns detalhes técnicos. A adolescente, contudo, não escondia algum receio quanto aos saltos.
“Para saltar à vara não é preciso grande esforço, a vara faz tudo. Tenho medo é de largar a mão direita [de apoio]”, explicou Fabiana. André Assunção não censura as hesitações da atleta. “Quanto mais alto vamos, de maior altura caímos. [O que apara a queda] Pode chamar-se colchão, mas não é nada como os que temos nas camas”, explica o treinador, depois de um salto completado com sucesso por Fabiana que deixou a jovem com queixas no pescoço.
Do lado oposto, Taís treina o salto em altura, modalidade que no início de Março valeu o ouro a Lenine Cunha nos Europeus de pista coberta. Desta vez, era Ana Carneiro a distribuir as correcções. Mesmo sendo o melhor da Europa, “Lenny” também não se livra das críticas construtivas. “Ao ver as fotos do Lenine percebemos que ele tem de fazer algumas correcções. Tende a olhar para a fasquia e deve alterar isso”, explica a coordenadora técnica.
O treino chega ao fim por volta das 20h30. Os holofotes já estão desligados e Lenine arruma o equipamento e as medalhas que trouxe para mostrar à equipa. Quando terminar a mudança de casa voltará a ter uma parede destinada à exibição dos galardões. Até lá, pode ser que junte mais algumas medalhas à colecção.
Fonte: Público
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