A plataforma EDUSTAT - Observatório da Educação, que a Fundação Belmiro de Azevedo apresenta hoje, vai permitir ter informação detalhada sobre o sistema de ensino nacional. Para Alberto Amaral, porta-voz global do EDULOG e antigo reitor da Universidade do Porto, a falta de equidade no ensino é preocupante e a pandemia serviu para acentuar as desigualdades. Desigualdades que, no caso do superior, existem entre cursos ou entre universidades e politécnicos.
O EDULOG, o think tank de Educação da Fundação Belmiro de Azevedo, apresenta esta quarta-feira (14 de abril) a plataforma EDUSTAT - Observatório da Educação. Em que consiste este projeto?
O Observatório tem, neste momento, perto de 200 indicadores, e espera-se que até meados deste ano suba para 300, e irá ter informação sobre as coisas mais diversas, percentagem de alunos do ensino superior, origem dos alunos, origem geográfica, origem de acordo com a formação dos pais, frequência do secundário, até percentagens de reprovação, e aí por diante. Vai ter informação sobre todo o sistema de ensino de forma detalhada. E aqui nós tivemos um problema de organização do EDUSTAT, porque queremos que ele tenha dois fins: um fim para o público em geral e, por outro lado, informação para pessoas que são investigadoras e trabalham nestas matérias. O que tornou a implementação do EDUSTAT relativamente complexa. Mas faz-se.
Qual é o estado do ensino em Portugal?
A qualidade do nosso ensino é razoável. Nunca me esqueço de um colega holandês me dizerque pelo preço de um Fiat não se compra um Mercedes. E isto significa que há determinadas áreas onde nós conseguimos competir, mas partindo de uma situação de desvantagem, nomeadamente de natureza financeira. Se olhar, por exemplo, para a questão da investigação, uma universidade como Oxford ou Cambridge tem um orçamento de investigação que, se calhar, é igual ao de Portugal. É difícil. Essas grandes universidades têm recursos que nós não temos. E, portanto, é inevitável que isso aconteça. No entanto, os produtos que saem, por exemplo, do ensino superior são altamente apreciados por todo o mundo. Por exemplo, na área da saúde, as enfermagens, as tecnologias da saúde, as medicinas, etc., qualquer indivíduo com uma licenciatura portuguesa arranja facilmente colocação no estrangeiro.
No âmbito do EDULOG, teve acesso a dados que o tivessem surpreendido?
Quando se estuda este tipo de matérias, há sempre surpresas, tanto a nível nacional, como internacional. Por exemplo, está agora a ser discutida a criação de quotas de acordo com a etnicidade, sendo que isto já é feito nos Estados Unidos e no Brasil, mas as pessoas esquecem-se que nos Estados Unidos o Supremo declarou inconstitucional a atribuição de quotas com base na etnicidade e no Brasil os resultados também não têm sido aquilo que se esperava. O que aconteceu no Brasil foi que a expansão do sistema saiu essencialmente do lado do privado e, pior do que o privado, a distância. Hoje, a percentagem de alunos em ensino à distância no privado é superior àqueles que têm aulas reais. E, portanto, o que acontece é que, embora o sistema se tenha expandido e permitido a entrada de muitos alunos de classes que normalmente não entrariam no ensino superior, eles vão sempre para segundas e terceiras escolhas. Se olharmos para o caso português, temos também uma situação de equidade muito complexa. Houve um ano em que fizemos um estudo em que comparámos a Medicina com a Enfermagem e, enquanto na Medicina 75% dos alunos têm pais com cursos superiores, na Enfermagem 75% dos alunos têm pais sem curso superior. Nas Ciências Farmacêuticas, que são universitárias, com a Farmácia, que é politécnica, verá o mesmo tipo de situações. E se havia tradicionalmente casos em que a percentagem de alunos das classes favorecidas era muito alta, como é o caso de Medicina, isso hoje já se está a espalhar a outras áreas, até nas engenharias. Se comparar, por exemplo, o universitário com o politécnico, verá que a percentagem de alunos com bolsas no universitário é bastante mais baixa do que no politécnico. O que se traduz em que as classes desfavorecidas muitas vezes acabam por ir parar a cursos de menor valor. Outro exemplo, há três ou quatro cursos no Instituto Superior Técnico e na Universidade Nova de Lisboa, e aqui no Porto, em que a percentagem de bolseiros é na ordem dos 10%. Se for ver os mesmos cursos em Trás-os-Montes, a percentagem de bolseiros é de 50%. Durante o período em que o ensino era elitista - na altura do 25 de Abril havia 45 mil alunos no superior e hoje há 10 vezes mais -, essa distinção de classe fazia-se entre o entrar e o não entrar. A percentagem de alunos que entrava e vinha das classes mais favorecidas era muitíssimo superior à das classes desfavorecidas. Quando o ensino se expandiu, passou a haver muito mais lugares para toda a gente e passou-se a olhar não propriamente para a entrada ou não entrada, mas sim para o curso e para a instituição. Aquilo que antigamente era a coisa do "senhor doutor" entrou, agora passou-se a ver em que sítio entrou, se entrou no Técnico ou numa privada, ou se fez um curso de Medicina ou um curso de Enfermagem ou de Tecnologias da Saúde. Há sempre uma forma de falta de equidade que é preocupante. E que é um problema que não está resolvido em sítio nenhum do mundo. Há quem diga que só poderão ser corrigidas a médio prazo. E porquê? Porque, à medida que vamos avançando no tempo, a percentagem de indivíduos com licenciatura aumenta e, portanto, os filhos de pais com licenciatura também aumentam, e isso, eventualmente, permitirá criar alguma correção.
Como estamos em Portugal em termos de equidade?
Estou a olhar para uma situação em que estou a avaliar o capital das famílias com base nas bolsas. Se eu comparar em Enfermagem, a percentagem de bolsas é na ordem dos 40,4%, e em Medicina é de 15%. Se comparar a Solicitadoria com o Direito, a Solicitadoria tem 50% de bolsas de estudo e o Direito tem 28,3%. Se comparar Farmácia com Ciências Farmacêuticas, Farmácia, que é um curso politécnico, tem 44% de bolsas de estudo e as Ciências Farmacêuticas têm 21%. Olhando-se simplesmente para a percentagem de alunos com bolsas de estudo, verifica-se que há uma discrepância muito grande entre cursos. E o politécnico tem, de facto, uma maior percentagem de bolsas de estudo do que o universitário. Ou seja, a composição do corpo dos alunos no politécnico é muito mais próxima da composição da população nacional. Basicamente, na universidade há claramente um favorecimento de alunos que ou não têm bolsas de estudo ou cujos pais têm uma licenciatura. Não esperava que fosse tão nítida esta situação.
Qual será o impacto da pandemia no ensino em Portugal?
Vai haver uma diminuição da qualidade do ensino. A nível do ensino não-superior, foram feitos exames que demonstraram que os alunos perderam significativamente pelo facto de terem ensino à distância e não ensino presencial. Portanto, é óbvio que aquilo que aprenderam tem menos valia do que teria em ensino presencial. Depois, como é óbvio, o mudar para este tipo de ensino vai aumentar de novo as desigualdades. Os meus netos desde os dois anos que tinham computadores, tablets, consolas de jogos e telemóveis e mais não sei o quê. E é uma diferença muito grande entre quem está nesse ambiente e quem tem dificuldades até de acesso à rede. Por outro lado, também o facto de os alunos serem filhos de pessoas com uma licenciatura faz uma enorme diferença, porque o apoio dos pais é completamente diferente daqueles que não têm esse tipo de situação. Claramente, esse tipo de ensino vai aumentar as diferenças de classe.
Que medidas se podem tomar para minorar ou anular estas desigualdades?
Aquilo que se tem verificado em qualquer país é que corrigir as desigualdades é extremamente difícil. O ensino, nomeadamente o ensino superior, é classificado como um bem posicional, ou seja, é um bem que permite atingir uma determinada posição. Se eu tiver uma licenciatura em Matemática ou em Medicina ou se tiver uma licenciatura em Harvard ou em Oxford, tenho uma posição dentro da sociedade e, portanto, os bens posicionais tendem a ser captados pelas famílias de mais recursos, quer culturais, quer financeiros. Há, no entanto, um conjunto de medidas que podem ser tomadas. A OCDE mostra que muito do que se passa no acesso ao ensino superior tem a ver com a formação anterior e, se reparar, há situações de alunos que são colocados em colégios para fazerem subir as notas e, portanto, concorrer em melhores condições. Há que corrigir as diferenças pré-ensino superior. Depois, a forma de acesso pode condicionar muito as igualdades. Se eu tiver um determinado curso, Medicina, por exemplo, com numerus clausus, isso aumenta as desigualdades. Uma área em que o governo deveria atuar forte e feio é no caso de instituições que, nomeadamente nas disciplinas que não têm exame nacional, dão notas extremamente elevadas - como Educação Física ou Filosofia, onde são todos corridos a 19 e 20 -, e isso traduz-se depois em facilitar o acesso. Deveríamos atuar de forma a corrigir tudo o que está antes, na medida do possível diminuir as desigualdades nessa área. Não percebo porque é que não se atua mais naqueles casos em que há uma grande diferença entre a nota interna e a nota do exame. E, infelizmente, também em algumas instituições públicas já há essa situação dos alunos corridos a 19 e 20. Na medida do possível, eliminar ou aumentar os numerus clausus, porque sabemos que quanto mais restritos forem os numerus clausus maiores serão as dificuldades em entrar e maiores os problemas em termos de equidade, melhorar tudo o que é ensino até ao superior, uma vez que a carreira anterior do aluno se irá refletir na facilidade ou dificuldade com que ele ingressa no ensino superior... O que vai acontecer, de geração para geração, é que a percentagem de pais com licenciatura vai aumentar, o que significa que cada vez mais os alunos que vão concorrer ao ensino superior têm pais com formação superior, e isso terá influência. A questão das quotas é muito discutível, pois repare que nos próprios Estados Unidos foram declaradas inconstitucionais, isto porque criam situações de revolta.
Como é que o impacto que a pandemia teve no ensino se irá refletir no estado do país?
É evidente que de forma negativa. Hoje vivemos numa sociedade onde o conhecimento e a inovação têm cada vez maior importância. Hoje vivemos numa situação em que muitas pessoas, para exercerem a sua profissão, precisam de conhecimento, precisam, nomeadamente, muitas vezes de uma licenciatura, e isso significa que se essa componente se degradou por força de ensino que não é feito nas melhores condições, isso depois vai refletir-se na qualidade do trabalho e na competitividade do país em termos internacionais.
No que ao ensino diz respeito, como define as medidas do governo durante esta pandemia?
Acho que se fez o possível. O país estava relativamente mal preparado, nomeadamente porque as metodologias de ensino à distância ainda eram muito incipientes, porque há uma percentagem significativa de alunos que não tinha computadores nem estava habituada a utilizá-los. E, portanto, eu acho que, dentro do possível, foi um comportamento relativamente correto. Vamos ver agora o que é que acontece com o desconfinamento. Vamos ver se não há de repente uma subida do número de pessoas infetadas como resultado desta reabertura. E é fundamental fazermos uma coisa, que já devíamos ter feito há mais tempo, e que é uma testagem muito mais numerosa do que a que temos hoje.
Além da testagem, já se devia ter feito mais alguma coisa?
Acho que já devíamos ter avançado mais rapidamente na correção da falta de computadores e internet, quando nós sabemos hoje que há zonas do país onde é quase impossível ter acesso à internet porque também não existem disponibilidades de ligação. E isso tem de ser corrigido rapidamente.
Para que ensino caminhamos em Portugal?
O que tenho estado a verificar é que, de uma maneira geral, a qualidade do nosso ensino superior é perfeitamente aceitável e razoável e, como se sabe, os licenciados das nossas instituições não têm dificuldade nenhuma em encontrar emprego em qualquer país europeu. Sabemos perfeitamente que países como a Alemanha e a Inglaterra recrutam no setor na saúde, recrutam no setor da engenharia ou noutras áreas, nomeadamente a informática, que muitas vezes há dificuldade em encontrar pessoas em Portugal porque foram contratadas por outros países. A Alemanha é um exemplo típico de recrutamento na área da engenharia. França e Inglaterra são conhecidas, por exemplo, pelos recrutamentos na área da saúde. Acho é que tem havido um progresso muito significativo. Hoje há uma grande diferença, até no setor da investigação. Hoje, Portugal tem algo a dizer na área da investigação, apesar de, em termos totais de financiamento, o país ainda ter dificuldades.
Fonte: DN
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