“Desconfinar as crianças de casa e confiná-las na sala de aula, estando quietas, sentadas e caladas é um disparate completo”, considera o investigador Carlos Neto. Em declarações (...), o professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana (FMH) da Universidade de Lisboa (e um dos maiores especialistas mundiais na área da brincadeira e do jogo e da sua importância para as crianças) sustenta que as primeiras duas ou três semanas deste regresso à escola “deveriam ser exclusivamente destinadas a atividades de brincar livre, e no espaço exterior”. Ou seja, “por a sala de aula lá fora”, permitindo a socialização das crianças e jovens “com os seus amigos, estar em contacto físico com eles, fazer brincadeiras, de fuga, de perseguição, de lutas”.
O autor de vários estudos sobre a importância do brincar desenvolve toda a teoria que já tornou pública através do livro Libertem as Crianças, publicado no ano passado, e lembra que a pandemia veio apenas agravar de forma substancial um cenário que há anos toma conta da sociedade: a secundarização do brincar. Carlos Neto fala da sua experiência com crianças dos 3 aos 12 anos e também com base nalguns estudos que ele e a equipa têm feito na FMH. “No primeiro e segundo confinamento o quer observamos é um agravamento do sedentarismo infantil e da iliteracia motora, aumentando nalguns casos de forma muito preocupante o excesso de peso e a obesidade, assim como energias vitais desorganizadas, descontroladas. Para além disso uma regressão em muitas competências motoras das crianças”, que o leva a falar num quadro de “analfabetismo torpe gente”, ou seja, “as crianças passaram a ter dificuldade em fazer coisas simples como correr, saltar, suspender o corpo, equilibrar-se”.
A solidão do confinamento
Carlos Neto é um crítico assumido da forma como foi feito o combate à pandemia no que respeita aos mais novos, e por isso não hesita em apelidar o confinamento como “um big brother gigantesco, isto de estar fechado em casa, com o aparecimento da solidão, de falta de autoestima”, que considera estar a afetar os mais novos. “As crianças têm neste momento uma grande ausência de socialização, de estar com os seus pares, de abraçar e ter contacto físico com eles. Porque estas regras sanitárias são demasiadamente penalizadoras para as crianças, não só matam o brincar espontâneo e livre, como estão a criar um conjunto de doenças que ainda não sabemos caraterizar, mas que vivem debaixo da pele e estão ocultas”, enfatiza o investigador. De resto, acredita que teria sido possível fazer o confinamento de outra maneira, sem colocar em causa as questões sanitárias: “o número de horas que passamos em frente aos ecrãs triplicou. Devíamos ter condições em casa, ao pé de casa e na rua de ter as crianças mais ativas, com mais capacidade de poderem mexer o corpo e brincar livremente. Porque o corpo passou a ser algo desconhecido, que não é uma prioridade, nem no brincar livre nem nas atividades que poderiam restaurar e recuperar estas energias que ficaram demasiadamente aprisionadas e que nós necessitamos agora de por cá fora”.
Apesar de todo o retrato negro que a pandemia deixou pintado na sociedade, Carlos Neto acredita que ainda vamos a tempo de corrigir alguns cenários. “A primeira medida é espantar os medos. Acabar com a pandemia do medo, que é pior que o vírus. Criou-se aqui um clima de ansiedade, de angústia, uma pandemia de inquietação emocional. Deveria ter-se feito um mapa de atividades informais quotidianas em família, desde fazer a cama a levantar a mesa, e depois melhorar a qualidade de vida no exterior, treinar o equilíbrio, andar de bicicleta, caminhar no exterior”, afirma, enquanto insiste no apelo aos decisores para que criem “políticas públicas para as crianças e jovens”, ao invés de fechar os parques, por exemplo.
A desvalorização do brincar há muito que tem preocupado este especialista. Na verdade, “é uma questão que se vem agravando há décadas”, considera. Talvez por ser considerado “um comportamento de segunda escolha, de pouca importância no desenvolvimento humano e principalmente no desenvolvimento da criança”. Carlos Neto encontra a explicação na forma como a sociedade está organizada, “para uma dimensão demasiadamente estruturada”, em que frequentemente “nos esquecemos que somos animais, e o brincar é um comportamento absolutamente fundamental; uma ferramenta poderosa, principalmente na primeira década de vida, porque traz imensas vantagens em termos de capacidade de adaptação e criatividade. Brincar é um comportamento que treina para o incerto e para o inesperado. As crianças brincam sem objetivos imediatos. Têm dentro de si uma motivação intrínseca que lhes permite o desenvolvimento de uma regulação emocional, cultura de sobrevivência e confronto com a adversidade. Porque todos os animais brincam na infância”.
Recreios geridos na perspetiva do adulto
Também Francisco Lontro, promotor do programa Brincar de Rua, com sede em Leiria, cidade natal de Carlos Neto, subscreve muito do que defende o professor. E lembra que “a escola não percebe muito bem quando é que uma criança entra na dinâmica da brincadeira. Os intervalos são concebidos na perspetiva do adulto: 30 minutos em que a criança tem que ir à casa de banho, tem que comer, e quando é tempo de voltar para a sala é quando estava a começar a engajar na brincadeira”. De resto, sublinha que os intervalos como são atualmente concebidos “têm muito pouco que ver com as necessidades das crianças”.
“As escolas têm o pavor dos materiais, não só da higienização como do manuseamento. Os recreios são muito geridos na perspetiva de não acontecer nada, para que os miúdos não corram riscos”, acrescenta Francisco Lontro.
O sinal mais evidente desse olhar enviesado para a brincadeira terá sido a substituição da terra batida nos recreios por outros tipos de piso. Mas há outros, como (falta de) preparação das pessoas que são vigilantes nos recreios. “É por isso que no Brincar de Rua é tão importante formar os guardiões do brincar”, adianta Francisco Lontro.
Numa altura em que o programa se prepara para voltar aos bairros e às 26 cidades em que está presente, o que deverá acontecer a partir de 19 de abril, frisa a necessidade de devolver a rua e o ar livre às crianças, para que possam brincar. Num primeiro embate com a realidade pós-confinamento, a equipa do programa confrontou-se já com alguns efeitos, nomeadamente junto das 400 crianças que participam nas AEC: “é muito flagrante e assustador. Em poucos meses notamos corpos entorpecidos. Quando um menino com 6 ou 7 anos sai da sala de aula, o que se espera é que venha a correr, desejoso de brincar. Notamos que lhes falta essa genica de ser criança”. E que solução poderá combater esse problema? “A rua. É a única forma de restaurar o nosso horizonte”.
Fonte: Educare
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