domingo, 4 de junho de 2017

“Os alunos precisam de ir muito para lá do conhecimento enciclopédico"



O que é que a flexibilização dos currículos quer dizer, que vão deixar de existir disciplinas, Português, Matemática, História…?
Não. Quer dizer que, para atingirmos o perfil de competências do aluno que vive no século XXI, temos de dar às escolas um instrumento de autonomia que lhes permitirá gerir o currículo de acordo com as suas necessidades específicas. Isto significa não estarmos a fazer tudo igual, à mesma hora, em todos os recantos do País, mas sim permitir que as escolas construam os seus projetos próprios.

Já há escolas a desenvolver projetos desses?
Sim, já temos algumas escolas a trabalhar neste sentido. Exemplificando: posso olhar de forma horizontal para todas as disciplinas e ver aspetos dos programas que casam bem como é o caso da Revolução Industrial, que é estudada no Inglês, na Geografia, na História e também no Português. A partir de agora, será possível ter um momento na semana, ou até uma semana inteira, em que a escola pára para estudar a Revolução Industrial e, com o contributo de todas as disciplinas, desenvolver um projeto em torno do tema. Ou ainda: é possível organizar um projeto sobre nutrição, que até agora era trabalhada a propósito da Biologia, Educação para a Cidadania, Química, Geografia e Educação Física.

E em que é que uma escola é beneficiada por adotar esse modelo?
Ao trabalhar temas das diferentes disciplinas, estou a trabalhar de uma forma integrada, interdisciplinar, relacionando as disciplinas umas com as outras. E, do ponto de vista dos alunos, estou a desenvolver competências de projeto, pesquisa, análise, comunicação e de trabalho em equipa, que hoje são consideradas fundamentais e que são aquilo que as empresas procuram.

Como é que isso funciona em termos de organização?
É possível ter um bloco semanal em que as escolas trabalham assim, é possível ter alternâncias ao longo de um período, por exemplo, ter um funcionamento clássico, por disciplinas, durante um determinado tempo e, depois, parar e trabalhar só por temas interdisciplinares, anulando as disciplinas durante algum tempo. Os professores de Português e de História, por exemplo, podem decidir trabalhar em conjunto ao longo de todo o ano.

Nesse modelo, como é que os alunos são avaliados?
Tudo isto permite-nos ter instrumentos de avaliação partilhados, por exemplo, por três professores diferentes. Um só projeto pode substituir um teste e servir de avaliação para a parte da escrita em Português, para a parte da pesquisa na História, para a parte da apresentação gráfica na Educação Visual.

Isto implica uma grande responsabilização dos professores?
Neste momento, o que nos interessa é que, pela primeira vez, estamos a dar significado à palavra autonomia. Porque não há autonomia numa escola se não houver autonomia no currículo. Tudo isto dá conteúdo a algo que temos dito desde que cá estamos, e que o ministro Tiago Brandão Rodrigues não se tem cansado de repetir: que confiamos nos professores.

Como garante que não vai ser uma enorme confusão?
Já estamos a trabalhar com as escolas que manifestaram vontade em aderir a esta fase de implementação do projeto, já em setembro. Haverá uma equipa nacional de coordenação a trabalhar com equipas regionais e estas equipas regionais vão fazer workshops de preparação e acompanhamento de proximidade, com visitas a escolas e contactos regulares.

Do ponto de vista dos alunos, qual é a vantagem de passar a estudar em função dos projetos e não das disciplinas?
Sabemos – e isto é relativamente consensual – que, hoje, os alunos precisam de desenvolver competências que vão muito para lá do conhecimento enciclopédico, sem o dispensar. Estamos a falar de conseguirem pesquisar, gerir informação, relacionar conhecimentos de diferentes áreas, trabalhar em equipa, gerir ansiedade e stresse… Tudo isto se consegue com este tipo de trabalho, integrado. Nas escolas, os alunos estão a viver rotinas de “memorizo informação, despejo no dia do teste e, a seguir, esqueço”. E isto significa que há aprendizagens que não se estão a consolidar.

Trata-se, a seu ver, de um ensino demasiado orientado para o teste, para o exame?
Sim. E o que precisamos é de um ensino orientado para a vida.

E a avaliação, não serve para nada?
A avaliação é um instrumento ao serviço das aprendizagens, serve para aprendermos melhor. Não a descuramos, pelo contrário, ela tem um papel fundamental no processo de aprendizagem, mas temos de diversificar os instrumentos de avaliação. E se reconheço que um aluno bem sucedido é um aluno que sabe fazer uma apresentação oral, que sabe escrever um ensaio, que sabe ler títulos de jornal, então, tenho de fazer incidir a avaliação sobre todas essas áreas.

Porquê introduzir estas alterações, depois de os resultados do PISA (Programme for International Student Assessment) terem confirmado a aposta no Português e na Matemática?
Estas alterações aprofundam os resultados do PISA na medida em que não têm implicações ao nível da matriz, ou seja, do conjunto de horas letivas, mas sim ao nível da maneira como essa matriz é organizada. Em relação ao PISA, há duas coisas que importa salientar. Em primeiro lugar, o PISA dá-nos dados apenas sobre a Língua, a Matemática e, agora também, sobre as Ciências, não temos informação sobre a História ou a Geografia. Em segundo lugar, precisamos é de olhar para a série longa e verificar que existem resultados consistentes e continuados nos últimos 15 anos. Portanto, os dados do PISA serão sempre o resultado de muitas políticas. Por exemplo: também são produto do facto de termos uma geração de portugueses mais educada (pais educados querem que os seus filhos tenham melhor educação).

Esta mudança torna os manuais escolares dispensáveis?
O manual é um recurso, é um bom ponto de referência para o aluno, mas não é um livro único. Numa sala de aula, também entra a internet, as enciclopédias, a biblioteca escolar, todos os recursos próprios desta era da informação. Fazer de conta que, hoje, não andamos com a informação toda dentro do bolso é como dizer aos alunos: “Não podemos escrever com caneta porque houve uma época em que se escrevia com pena.”

A flexibilização curricular pode contribuir para resolver o problema do abandono escolar?
Tudo o que estamos a fazer são instrumentos que se inscrevem no Plano Nacional de Promoção do Sucesso Escolar. Ainda temos dados preocupantes nas taxas de abandono e de retenção, sobretudo no 2º ano e, depois, dos anos de transição, 5º, 7º e 10º. Não me canso de dizê-lo: não são os números que nos preocupam, o que nos preocupa é o facto de haver alunos que não estão a aprender. Se um professor está a desenvolver um currículo num contexto em que tem uma forte comunidade migrante, não pode estar obrigado a desenvolver o currículo da mesma maneira, sob pena de agravar de assimetrias.

Acha que estas alterações vão ser bem acolhidas nas escolas e, em particular, pelos professores?
Este trabalho já leva um ano e tal de muito debate com escolas, de auscultação de muitos professores, alunos e encarregados de educação. Há uma frase que ouvi a uma professora e que tenho citado muitas vezes: “Eu quero que os meus alunos aprendam, mas não consigo porque tenho de lhes dar o programa.” Isto parece uma contradição, mas qualquer professor entende o que ela quer dizer. Os professores têm de ter na mão os instrumentos para serem eles próprios os agentes dos currículos, para os adequarem às suas turmas. Deixe-me dar um exemplo: temos de garantir que todos os alunos, no final do 2º ano, estão a ler com fluência, sem hesitação, sem soletrar. Se o professor chega lá pelo método A, B ou C, lendo o livro A, B ou C, isso tem de ser gerido em função das necessidades específicas dos alunos que tem à frente – e não a partir de uma metodologia que é prescrita centralmente pelo Ministério da Educação.

Estamos a seguir os bons exemplos dos países mais bem sucedidos em termos de Educação?
Não estamos a olhar para nenhum país. Como também não queremos que se olhe para Portugal, temos bons projetos, mas não somos referência para ninguém. Se ainda temos uma taxa de retenção elevadíssima, é porque alguma coisa está a falhar.

A procura da política pública ideal é um dos maiores mitos da educação?
Em matéria de educação, não existem receitas, o que funciona num determinado contexto pode ser completamente ineficaz no contexto ao lado. E sobretudo sabemos que, por aquelas razões de que falávamos há pouco, os mais pobres têm ficado de fora.

Fonte: Visão

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