Só uma avaliação especializada pode dar a conhecer o perfil do sobredotado. Até porque, existem seis tipos distintos de sobredotação: académica, mecânica, artística, motora, social, emocional e intelectual. Mas para uma criança ser considerada um prodígio não basta ser excelente numa área, é preciso juntar à inteligência a motivação e a criatividade. Aos pais que suspeitem ter em casa um pequeno génio, Cristina Palhares recomenda atenção a dois sinais: "Ao desenvolvimento [precoce] da linguagem e ao interesse ou curiosidade por alguma área, muito específica." Já que "o desenvolvimento da linguagem está muito associado ao da inteligência e, normalmente, uma criança sobredotada foi precoce em termos linguísticos", explica a presidente da delegação de Braga da Associação Nacional para o Estudo e a Intervenção na Sobredotação (ANEIS).
Ser sobredotado nem sempre é sinónimo de ter sucesso escolar. "Normalmente, na sobredotação intelectual ou o professor consegue entender e captar a atenção do aluno ou ele desacredita da escola", avisa Cristina Palhares. Este é o terreno onde se insere o trabalho realizado pela ANEIS. A funcionar com nove delegações de Norte a Sul, a associação move-se há mais de dez anos para dar resposta às preocupações dos pais e aos interesses das crianças sobredotadas. Através do acompanhamento escolar e da promoção de programas de enriquecimento extra-escolares que permitem ao sobredotado ampliar os conhecimentos nos seus interesses específicos. É precisamente pela criação de medidas educativas específicas para estes alunos que se bate a ANEIS. Desde logo, para que os sobredotados sejam considerados crianças com necessidades educativas especiais, tal como acontece em outros países. Em entrevista ao EDUCARE.PT, Cristina Palhares, também coordenadora da revista "Sobredotação", partilha a sua experiência nesta área, falando de alguns casos sinalizados pelos profissionais da ANEIS.
EDUCARE.PT (E): O que é a sobredotação? Cristina Palhares (CP): A definição internacional pertence ao professor Renzulli e diz que a sobredotação resulta da confluência de três anéis. Tem de haver uma excelência na área das habilidades do ser humano, sejam elas motoras, linguísticas ou matemáticas. À qual se acresce o domínio da criatividade e a motivação, ou seja, o empenho na execução da tarefa. Portanto, estas três características têm de estar presentes no sujeito sobredotado.
| | "Uma criança que hoje é precoce na linguagem, amanhã pode não ser sobredotada." |
E: Como se quantifica essa "excelência"? CP: Através de avaliações especializadas que nos dão um perfil completo do sujeito. Não se avalia apenas a sua área de excelência, mas também os seus pontos fracos.
E: A que sinais devem os pais estar atentos para perceber se os seus filhos são sobredotados? CP: Devem estar atentos a dois sinais: ao desenvolvimento da linguagem e ao interesse ou curiosidade por alguma área, muito específica. O desenvolvimento da linguagem está muito associado ao da inteligência e, normalmente, uma criança sobredotada foi precoce em termos linguísticos, mas o oposto nem sempre é verdade. Uma criança que hoje é precoce na linguagem, amanhã pode não ser sobredotada. O interesse por uma determinada área também nasce muito cedo. Há casos de crianças sobredotadas que adoram tudo o que é bichos, natureza...
E: Um interesse obsessivo? CP: Pode-se dizer que sim. Quase obsessivo. É querer saber mesmo tudo sobre uma área e fazê-lo de forma autónoma. Assim como a aprendizagem da leitura e da escrita, quando acontece por volta dos quatro ou cinco anos de uma forma autónoma, sem ser formalmente ensinada, pode ser já um índice de inteligência. Portanto, é importante que os pais estejam atentos a este tipo de sinais.
E: Uma vez feita esta primeira sinalização, o que devem fazer os pais? CP: Falar com educadores ou professores, e com os pediatras. Mas essencialmente devem procurar apoio especializado na área da psicologia para fazer uma avaliação do desenvolvimento da inteligência da criança e traçar o seu perfil completo, de que falava há pouco.
E: Nesse processo, onde se situa o trabalho desenvolvido pela ANEIS? CP: Na associação temos profissionais na área da psicologia que fazem essa avaliação tendo já em conta todos os factores importantes na caracterização da sobredotação. Uma vez que, tal como os diferentes tipos de inteligência, também existem vários tipos de sobredotação.
E: Pode dar exemplos dessa tipologia? CP: Existem seis tipos de sobredotação: académica, mecânica, artística, motora, sócia, emocional e intelectual. A académica, diz respeito aquele aluno que tira sempre muito boas notas, tem um pensamento convergente, pelo que, normalmente, a escola integra melhor. A mecânica insere-se no manuseamento de equipamentos, electrónica e computadores. A artística, por exemplo, reflecte-se nas áreas da pintura ou da música. E a motora, revela-se ao nível do desempenho desportivo. A social diz respeito às habilidades comunicacionais e de relacionamento. A emocional manifesta-se na auto-regulação. Por último, a sobredotação intelectual diz respeito aquele aluno que nunca vai pelo caminho por onde o professor quer ir, que ora está adiantado ora fora da matéria, e faz sempre a pergunta na hora errada. Este é o tipo de sobredotado que mais problemas coloca à escola, porque não segue padrões, tem um pensamento divergente, podendo até ter insucesso. Normalmente, na sobredotação intelectual ou o professor consegue entender e captar a atenção do aluno ou ele desacredita da escola.
"Percepcionam bem os adultos e com seis anos são capazes, por exemplo, de dizer que o professor está triste." | | |
E: Na sala de aula, como pode o professor distinguir uma criança sobredotada? CP: Será uma criança que apresenta um fácil entendimento das matérias e que com seis ou sete anos quer muito aprender. Estará sempre com o dedo no ar. Mas que também se mostrará aborrecida, caso o professor tenha de explicar uma segunda ou terceira vez à turma, porque ela já percebeu à primeira. Normalmente, a curiosidade e a persistência são duas características das crianças sobredotadas. Muitas vezes, o professor corta o fio à meada em situação de aula porque há um horário para cumprir, mas estas crianças precisam de tempo para levar com êxito as suas tarefas até ao fim.
São também crianças que percepcionam bem os adultos e com seis anos são capazes, por exemplo, de dizer que o professor está triste. Ou crianças que, mais cedo do que o normal, por exemplo, ouvindo falar em guerra, manifestam muitas preocupações, chegando até a ser fóbicas. Mas o que mais distingue uma criança sobredotada é a singularidade dos seus interesses. Outro exemplo: na ANEIS, tivemos uma criança com dez anos que queria aprofundar tudo sobre bactérias, mostrando um interesse que nenhuma criança na idade dela teria.
E: A sobredotação é considerada uma necessidade educativa especial? CP: Em Portugal não, infelizmente. Noutros países europeus já é. Em Espanha, há financiamento estatal para a criação de equipas de apoio aos sobredotados no âmbito das necessidades educativas especiais (NEE) nas escolas. E é isso que a ANEIS pretende: que os sobredotados sejam considerados crianças com NEE. Nesse sentido, há alguma legislação que pode ser usada, embora não seja propriamente dirigida à sobredotação.
Nas escolas, os professores podem utilizar os planos de desenvolvimento [Decreto-lei 50/ 2005] como instrumento para aplicar a crianças com características de sobredotação. Há também a possibilidade de fazer antecipação e aceleração escolar. No total, entrando a criança com cinco anos na escola e fazendo as duas acelerações [uma no 1º ciclo, outra entre o 5º e o 9º ano] chegará ao 9º ano três anos antes da idade habitual, ou seja, entre os 12 e 13 anos. Este é o máximo de aceleração permitido legalmente. Mas há países onde não existe limite.
E: Como assim? CP: Os alunos podem progredir conforme quiserem. Há países que têm uma legislação mais livre no que toca a esta matéria. E mais de acordo com as necessidades educativas da criança sobredotada ao invés de atender exclusivamente ao rigor das idades. Mas em Portugal, e até ao 9º ano, já temos medidas suficientes a esse nível. Também há sempre a hipótese de se expor o caso individual do aluno ao Ministério da Educação e conseguir uma excepção à regra. Tem de haver maleabilidade nesta matéria, se não... Imagine-se uma criança que entra para o 1º ano com cinco anos já a saber ler e escrever, o que vai fazer um ano inteiro a juntar letras?
E: Vai desmotivar. CP: Vai fazer com que a escola não lhe sirva para nada e a própria criança vai sentir isso. Muitas vezes chegam à ANEIS casos de alunos a dizer: "Eu não aprendo nada na escola." Costumo falar no desafio de Aristóteles que dizia que só aprendemos quando nos espantamos, para mostrar que essa criança não se vai espantar com a escola. Ou seja: vai passar um ano inteiro sem dizer: Ah! Nunca vai ser espantada com uma coisa nova. Portanto, a escola vai ser para ela um martírio, nos primeiros tempos inconsciente, mas depois surgem as fobias, dores de barriga... Há crianças sobredotadas que desenvolvem altos índices de ansiedade por passarem horas a fio na escola sem estarem cognitivamente a aprender.
| | "Ainda há muitos mitos a desfazer." |
E: Ao contrário do que possa parecer, um sobredotado pode ter insucesso na escola? CP: Sim. E pode ter dificuldades de aprendizagem também, muitas vezes quando há esse desinvestimento. Dos 50 sobredotados a que a ANEIS presta apoio directo, temos três casos de insucesso escolar, no 7º e 8º ano, em situações de reprovação a todas as disciplinas. Porque a escola não lhes diz nada e eles não querem estudar. Uma criança que tenha altos níveis de desempenho, ao nível do raciocínio, pode não estar minimamente interessada nas matérias leccionadas na escola. Mas se for um projecto dele, alguma coisa que queira descobrir, vai colocar nessa tarefa todo o seu empenho.
E: Poderá haver casos de insucesso na escola a encobrir uma sobredotação? CP: Será uma minoria, mas pode acontecer. Normalmente, são aqueles casos em que o professor se queixa que o aluno "podia mas não quer". E no que toca aos sobredotados, com insucesso escolar esta ideia é falsa. A criança não quer chumbar, nem quer estar desmotivada, nem quer passar horas encostada na sua cadeira, quer é outra coisa que a escola ainda não entendeu.
E: Em que ponto está a investigação e a divulgação sobre o que é a sobredotação? CP: Ainda há muitos mitos a desfazer. Como o de que a sobredotação é inata ou puramente social, ou seja, treinada. Neste momento sabemos que é um misto dos dois. Aliás não adianta ser inato se depois não se treina. Por outro lado, não é possível "fazer" crianças sobredotadas, apenas treinar. E isto vê-se nos grandes jogadores de futebol, nos grandes pianistas e nos grandes bailarinos. Outro mito é o de que a criança sobredotada já não precisa de saber mais, porque já sabe tudo. Isto é errado. O sobredotado precisa sempre de ir mais além. Outro mito é o de que o sobredotado "é tão bom" que não precisa de ajuda e se desenvolve por si mesmo.
Também se associa erradamente a sobredotação às classes sociais altas. Quando é o meio que influencia o desenvolvimento do sobredotado, logo, quem tem mais recursos proporciona aos seus filhos mais possibilidades de se desenvolverem. Tive um caso de uma criança sobredotada cuja mãe me dizia que gastava em livros cerca de 200 euros por mês, porque o filho adorava ler. Tinha 12 anos e queria fugir do país, por não poder requisitar livros na biblioteca pública, por ser menor. E com aquela idade, já tinha lido a obra completa do Eça de Queiroz. |
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