terça-feira, 10 de agosto de 2010

"Aflige-me que ninguém se tenha pronunciado de forma indelével sobre a falta de rigor científico no Decreto-Lei 3/2008"



Luís de Miranda Correia é um dos investigadores mais críticos das políticas ministeriais para a Educação Especial, em Portugal. Recentemente desenvolveu um estudo que mostra as "limitações e confusões" inerentes à legislação nesta matéria.
Reconhece que é uma voz incómoda aos ouvidos dos responsáveis políticos pela Educação em Portugal. Não se constrange em classificar a ex-ministra titular desta pasta, Maria de Lourdes Rodrigues, como "um dos piores ministros da Educação do pós-25 de Abril", pela forma como actuou em matéria de Educação Especial. Tem assistido a muitas "incongruências" políticas no que toca às necessidades educativas especiais (NEE). E não se cansa de as denunciar.

Luís de Miranda Correia nasceu em Braga em 1947. É psicólogo, professor catedrático e director do Departamento de Psicologia da Educação e Educação Especial da Universidade do Minho (UM). Foi psicólogo escolar nos Estados Unidos da América e investigador assistente na Universidade de Brown, tendo ainda colaborado com as Universidades de Rhode Island e de Fairfield.

Em 1996, criou e coordenou dois mestrados em Educação Especial, no âmbito das Dificuldades de Aprendizagem Específicas e da Intervenção Precoce, na UM. Luís de Miranda Correia é ainda autor de vários livros e estudos. O mais recente, apresentado em Maio e realizado em parceria com a investigadora Rute Lavrador, versou a utilidade da aplicação da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF) na eleição de alunos com possíveis NEE para serviços de Educação Especial. Um tema polémico, ao qual o investigador não foge, já que a sua aplicação estará a excluir vários alunos dos apoios educativos a que teriam acesso, antes da obrigatoriedade legal do uso da CIF nas escolas.


Educare.pt (E): Numa conferência recente disse que "a inclusão começa por ser uma atitude, mas muitas vezes não é bem-vinda por parte dos professores por falta de recursos na sala de aula". É assim?

Luís de Miranda Correia (LMC): Quando disse que a inclusão começa por ser uma atitude, pretendi dizer que o movimento da inclusão só terá sucesso se, em primeiro lugar, os cidadãos o compreenderem e o aceitarem como um princípio cujas vantagens a todos beneficia. No entanto, ao considerarmos só os professores, por vezes ela não é bem-vinda, não só pela falta de recursos especializados necessários ao sucesso dos alunos com necessidades educativas especiais (NEE) significativas, o que é um facto, mas também pela preparação inadequada, quer a nível de formação inicial quer especializada, desses professores, o que os torna inseguros e, portanto, capazes de se rebelarem contra a inclusão dos alunos com NEE significativas nas suas salas de aula.


E: No estudo "A Utilidade da CIF em Educação" concluiu precisamente sobre a inutilidade deste instrumento. Como chegou a essa conclusão?

LMC: Considerei uma amostra composta por sete grupos de participantes que se estendia por sete agrupamentos, sendo cada grupo constituído por um professor do ensino regular, um professor de educação especial especializado e um psicólogo. Pedi aos 21 participantes que respondessem a um questionário sobre a utilização da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF) em educação e aos sete grupos de participantes que analisassem um estudo de caso (o mesmo que o Ministério da Educação usou na formação que fez sobre a CIF), tendo por base, ipsis-verbis, as instruções e recomendações formuladas nos documentos emanados do ministério.

No que respeita aos resultados, as respostas dos participantes ao questionário foram totalmente contraditórias, revelando uma profunda falta de conhecimento sobre a utilidade da CIF em educação. Quanto ao tratamento do caso propriamente dito, tendo em conta a necessidade do uso da Checklist contida no manual Educação Especial: Manual de Apoio à Prática, os resultados foram os mais díspares, consubstanciando uma heterogeneidade de posições que aparentam um comportamento aleatório quanto à escolha das opções.


E: Pode dar-me um exemplo concreto das contradições que a aplicação da grelha gerou entre os diferentes grupos que tentavam classificar o mesmo caso?

LMC: Dou um exemplo que diz respeito à componente Actividade e Participação. No Capítulo I, ao analisarmos os resultados da categoria d175, "resolver problemas", verificamos que um grupo entendeu que o aluno apresentava uma "dificuldade ligeira"; dois grupos, uma "dificuldade moderada"; outros dois grupos consideram-no com uma "dificuldade grave"; um grupo optou por uma "dificuldade completa"; e, por último, um grupo considerou a opção "não especificado". Esta disparidade de resultados não só revela uma forte divergência de critérios na interpretação de um mesmo caso como também uma incongruência entre os comportamentos exibidos pelos grupos nesta matéria, deixando perceber que esta dissimilitude terá, porventura, a sua génese na subjectividade da CIF ou até na sua incompatibilidade prática quanto ao seu uso em educação.


E: O Ministério da Educação já reagiu a esse estudo?

LMC: Que eu tenha conhecimento, não. No entanto, antes da publicação do Decreto-Lei 3/2008, de 7 de Janeiro, dei conhecimento ao Ministério da Educação (ME) do erro crasso que iria cometer ao pretender inserir num Decreto-lei uma Classificação cuja investigação, quanto à sua utilidade em educação, era praticamente nula. Tornei ainda públicas as opiniões de eminentes especialistas, todos eles reticentes quanto ao uso da CIF em educação. Recordo as palavras do Professor James Kauffman, uma das maiores sumidades mundiais nestas matérias, quando afirmou que a inserção da CIF numa lei seria "um erro grave, mesmo trágico". Ou as conclusões a que chegou o Professor Robin MacWilliam, no que respeita à CIF para crianças e jovens (CIF-CJ). Diz ele: "Levámos cerca de três anos a explorar a adopção da CIF numa clínica pediátrica de diagnóstico desenvolvimental e comportamental, com muito pouco sucesso." Também na Assembleia da República se tratou o assunto, num encontro organizado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, tendo a maioria dos participantes (especialistas, associações de pais, professores e investigadores) manifestado a sua preocupação pela obrigatoriedade do uso da CIF em educação quando a investigação não o aconselhava. Por tudo isto, o ME, já nessa altura, deveria ter tido o bom senso de não incluir a CIF no Decreto-Lei 3/2008. Não o fez. Talvez por teimosia, prepotência, petulância, ou sabe-se lá o quê, o diálogo nunca aconteceu.


E: Depois do que disse, por que razão a CIF permanece obrigatória?

LMC: Parece ser por uma ignorância generalizada, por parte dos envolvidos na implementação do Decreto-Lei 3/2008, quanto ao processo que pode e deve levar à construção de respostas educativas eficazes para os alunos com NEE.

Eu próprio pedi, por carta, à então ministra da Educação, uma audiência para discutir este assunto. Nunca recebi resposta que não fosse o silêncio. Questões de "educação". Contudo, a resposta foi dada a todos os portugueses, especialmente aos pais e aos alunos com NEE, de uma forma muito evidente: a destruição de um sistema de educação especial que até à data vinha a demonstrar alguns progressos. Considero mesmo que, nesta matéria, a doutora Maria de Lourdes Rodrigues, foi um dos piores ministros da Educação do pós-25 de Abril.


E: Escreveu que "o grosso da literatura existente sobre a CIF (...) mais parece pretender vender um produto do que implementar um modelo"...

LMC: A maioria das apresentações feitas sobre a CIF pouco ou nada diferem. O corpo de investigação não passa de uma "ecolália imaginária". Por isso, ficamos com a ideia de que se pretende sonegar informação para, assim, se dar a impressão de que ao usar a CIF se irão abrir as portas do sucesso para todas as crianças com NEE. Quando o próprio coordenador da adaptação da CIF-CJ, Doutor Rune Simonsson, diz em 2010, o mesmo que disse em 2005, que "a implementação da CIF está dependente da existência de instrumentos de avaliação que possam fornecer informação para atribuir níveis de severidade aos códigos da CIF", o que podem esperar aqueles que acreditam na investigação fidedigna e estão totalmente por dentro do processo que deve reger o atendimento a alunos com NEE? Apenas que lhes estão a tentar vender um produto talvez já fora de validade.


E: É autor do "Modelo de Atendimento à Diversidade", um meio de diagnóstico e acompanhamento de crianças e jovens com NEE. Como surgiu?

LMC: O modelo tem vindo a amadurecer desde 1977, altura em que comecei a trabalhar com alunos com NEE, fruto da minha experiência como psicólogo e professor, mas também da investigação que tenho feito e do que muito aprendi sobre estas matérias, especialmente nos EUA. Em 1989, começa a tomar forma e, em 1995, apresentei-o pela primeira vez numa conferência que efectuei na Universidade do Minho, descrevendo-o como um paradigma cujo objectivo era o de equacionar um processo faseado que permitisse responder adequadamente às necessidades de todos os alunos, designada e principalmente dos alunos com necessidades especiais (alunos em risco educacional, com necessidades educativas especiais e com sobredotação). Desde então, tem sido alvo de investigação por parte de alguns dos meus alunos de mestrado e de doutoramento e sido aplicado, com sucesso, quer na Região Autónoma da Madeira quer num agrupamento do Norte do país.


E: Por que razão não é posto em prática de modo generalizado?

LMC: Por razões políticas que se inscrevem na esfera do ME. Não por pertencer a partidos, pois não pertenço, nem nunca pertenci a nenhum, mas talvez por ser uma daquelas vozes incómodas que continuam, intransigentemente, a defender os direitos dos alunos com NEE e, portanto, a incomodar quem está no poder.


E: Qual é a verdadeira realidade das NEE nas escolas portuguesas?

LMC: Neste momento, caótica. Fruto das más políticas educativas, da falta de recursos, da falta de preparação de muitos desses recursos e de muitos professores especializados, da inadequação dos planos de estudos dos cursos de formação inicial e de especialização oferecidos pelas instituições de ensino superior. Enfim, há uma panóplia de factores que fazem com que a maioria dos alunos com NEE não esteja a receber os serviços a que tem direito.


E: A escola regular consegue dar resposta a alunos com multideficiência, deficiência auditiva, visual, problemas motores ou até mesmo autismo?

LMC: Com certeza. A escola regular poderia dar resposta à maioria dos alunos com NEE, incluindo à maioria das crianças que se inscrevem nas problemáticas que menciona. Contudo, é obrigatório que se considerem os factores que aludi na questão anterior e o facto de haver uma pequena percentagem de alunos que, possivelmente, necessitarão que os serviços de educação especial lhes sejam prestados fora das escolas regulares, em instituições preparadas para o efeito.


E: E no que toca a problemáticas como a hiperactividade ou a sobredotação?

LMC: Digo-lhe o mesmo. Os alunos com este tipo de problemáticas podem e devem frequentar as escolas regulares e ser alvo de apoios que tenham por base as suas características e respeitem as suas capacidades e necessidades


E: Qual a sua opinião sobre a apresentação preliminar da avaliação externa da Educação Especial, realizada em Julho pelo ME na presença da ministra Isabel Alçada?

LMC: Creio que a ministra Isabel Alçada, que conheço por ter sido colega e que respeito pelas suas características científicas, pedagógicas e humanas, poderá não fazer a mínima ideia no que se está a meter. Pode, eventualmente, deixar-se conduzir por um discurso, sempre repetitivo, que não tem levado a lado nenhum no que concerne a estas matérias. Seria bom que ouvisse quer especialistas com experiência comprovada nestas matérias, quer educadores e professores, quer ainda pais e organizações ligadas ao sector, coisa que a sua antecessora nunca fez.


E: O que mais o preocupa nesta matéria?

LMC: Aflige-me que ninguém, com responsabilidades políticas, sociais e académicas, se tenha pronunciado de uma forma indelével sobre as tantas incongruências, e a falta de rigor científico no Decreto-Lei 3/2008. O prejuízo que ele já causou e virá a causar a muitos milhares de alunos com NEE justifica plenamente a sua suspensão ou mesmo revogação.

Andreia Lobo

2 comentários:

Professora disse...

Amigo passa no meu blog e deixa um comentário ao que escrevi, gostava de ler a tua opinião. Bjs

Unknown disse...

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