Passados quatro anos da publicação do Decreto-Lei Nº54/2018, o diploma para a Educação Inclusiva, como é habitualmente designado, o que mudou nas nossas escolas?
A expressão “inclusão” foi utilizada pela primeira vez na Declaração de Salamanca (1994), referindo-se este conceito a crianças com deficiências ou sobredotadas, crianças de rua ou crianças que trabalham, crianças de populações remotas ou nómadas, crianças de minorias linguísticas, étnicas ou culturais e crianças de áreas ou grupos desfavorecidos ou marginais. Antes de 2018, a legislação aplicava-se apenas a alunos com Necessidades Educativas Especiais de caráter permanente. Com a publicação do Decreto-Lei Nº54/2018, porém, o diploma para a educação inclusiva passou a aplicar-se a TODOS os alunos.
O verdadeiro objetivo deste decreto é conseguir um currículo inclusivo, isto é, que respeite, atenda e valorize as necessidades específicas de cada aluno. Sendo o currículo e as aprendizagens o centro da atividade de uma escola, este decreto-lei trouxe orientações para que seja reconhecida (i) a diversidade de cada aluno, (ii) encontrando formas de lidar com essas diferenças, (iii) adequando os processos de ensino às características e condições individuais de cada um. Mas vamos por partes. Passados quatro anos (com dois de pandemia incluídos), as dúvidas sobre a operacionalização deste diploma abundam e, pelas experiências vividas e narradas, não param de crescer. Se, por um lado, existe a tradicional reserva por parte dos professores à mudança, a maior parte de nós parece não conseguir compreender exatamente o que nos é pedido que seja de tão diferente daquilo que eram as nossas práticas docentes até aqui.
Parecem não existir dados estatísticos rigorosos sobre a aplicação deste decreto nas escolas porque, na realidade, a sua operacionalização acontece em sala de aula, nas práticas quotidianas dos docentes e não na vasta documentação que esta mesma operacionalização exige. A inclusão não ocorre por decreto. E quem tem passado e dedicado a sua vida à escola pública, sabe perfeitamente o enorme esforço que os professores fazem – e continuarão a fazer – no reconhecimento da diversidade presente numa sala de aula, procurando e adequando todos os processos de ensino à integração possível destes alunos. Possível porque, muitas vezes, é a escola que não faculta os meios / recursos necessários para que essa prática pedagógica diversificada aconteça. Por outro lado, não devemos ignorar que enquanto existirem diferenças socioeconómicas nas escolas, haverá diversidade e, consequentemente, necessidade de uma educação inclusiva (a influência da variável socioeconómica nos resultados dos alunos continua a ocupar um lugar de destaque em Portugal e no mundo inteiro).
Pelo que tem sido possível constatar ao longo destes quatro anos, aumentou de forma significativa o intenso trabalho dos incansáveis professores de educação inclusiva (vulgo educação especial, como antes eram apelidados), enquanto os conselhos de turma, na sua generalidade, se têm limitado a preencher a extensa documentação cuja vantagem consideram, no mínimo, duvidosa. Primeiro, porque os professores sempre diferenciaram as suas práticas pedagógicas de acordo com a singularidade do seu público (dentro dos limites da razoabilidade, como veremos a seguir) e, depois, porque nunca conseguiram encontrar qualquer causa-efeito destes extensos documentos exigidos na melhoria das aprendizagens dos alunos; por último, e não menos importante, porque se o Decreto-Lei Nº 54/2018 pretendesse deveras uma verdadeira educação inclusiva, teria vindo acompanhado de um outro decreto que reduzisse, de uma vez por todas, o número de alunos por turma, o número de horas letivas e não letivas dos docentes e de uma formação específica que fosse uma mais valia prática, dada por formadores no terreno, e não uma sobrecarga teórica transmitida por pedagogos de secretária aos fins de semana. Sem ovos é difícil fazer omeletas. Contudo, as nossas políticas educativas continuam a querer obrigar os docentes a cozinhá-las assim. E as escolas, por sua vez, não conseguem fazer verdadeiro uso da sua autonomia porque, para se ser autónomo e gerir uma escola dessa forma, são necessários recursos financeiros inexistentes que o Ministério da Educação não faculta. Ou seja, estamos perante uma pescadinha de rabo na boca.
É de louvar o enorme empenho das equipas multidisciplinares de apoio à Educação Inclusiva que se esforçam diariamente para que os professores preencham a documentação exigida; estes, por seu lado, enquanto a preenchem, questionam-se como irão atender – por mais que seja esse o seu objetivo, o seu desejo e o seu sonho – às necessidades, expectativas, talentos e aspirações específicas de vinte e muitos indivíduos multiplicados por cinco ou mais turmas, correndo de sala em sala, de pavilhão de pavilhão (por vezes de escola em escola devido a essa grande invenção do século que foram os agrupamentos), em intervalos que mal dão para respirar, com horários excessivos, horas não letivas ocupadas em trabalho burocrático desnecessário e carregando às costas a grande frustração de tantos anos de carreira deitados ao lixo…
Tomemos como exemplo uma professora de Português do terceiro ciclo com horário completo, cerca de cinco turmas, um total de aproximadamente 125 alunos e uma direção de turma. Esta professora leciona numa escola TEIP, localizada num território educativo de intervenção prioritária onde, como sabemos, as condições socioeconómicas deixam muito a desejar, agudizando as necessidades de diferenciação pedagógica. Para além disso, na sua disciplina, em quase todas as turmas do 7º ano de escolaridade (após dois anos de pandemia em que as aprendizagens e o desenvolvimento dos alunos ficaram gravemente afetados), a professora identificou muitos casos de alunos com problemas ortográficos que não tinham sido identificados previamente como casos de perturbação específica da linguagem, disortografia ou mesmo dislexia. Tal como tem vindo a alertar a DISLEX, Associação Portuguesa de Dislexia, o sistema educativo português não possui capacidade para identificar estas situações porque a formação dos professores não prevê este tipo de formação específica. Em Portugal, cerca de 10% das crianças apresentam perturbações da aprendizagem relacionadas com a dislexia sendo que 48% dos alunos com necessidades educativas especiais apresentam esta condição. E continuam a existir muitos casos de dislexia por identificar… Por vezes, somos confrontados com alunos que chegam ao décimo ano de escolaridade com dislexia sem que essa dificuldade de aprendizagem tenha sido diagnosticada antes, ao longo do seu percurso escolar.
As boas intenções Decreto-Lei Nº54/2018 são de louvar. A sua aplicabilidade, por sua vez, é de um romantismo exasperante. Se os professores decidissem mobilizar, na sua prática letiva diária, as medidas universais, seletivas e adicionais e, se dentro das medidas seletivas, pretendesse fazer uma verdadeira diferenciação pedagógica, preparando materiais específicos para todos de acordo com as suas necessidades específicas (que é aquilo de que verdadeiramente se trata quando falamos de Educação Inclusiva) – ainda mais agudizadas nestes anos pós-pandemia – certamente enlouqueceriam antes do final do primeiro período. Primeiro, porque não possuem formação adequada para fornecer apoio específico aos alunos com dificuldades específicas de aprendizagem (dislexias graves, discalculia, disortografia, descoordenação motora, défice de atenção com ou sem hiperatividade, perturbação de oposição, alterações de comportamento, desvalorização da autoestima); segundo, porque, mesmo possuindo essa formação, não teriam tempo disponível para atender a todas as solicitações que lhes são feitas.
Por isso, deixemo-nos de romantismos e façamos aquilo que sabemos e gostamos de fazer com os recursos que temos disponíveis e o espírito de missão que nos tem acompanhado e que tem mantido as escolas públicas deste país a funcionar. De vez em quando, ficamos com a ideia de que quem legisla sobre educação nunca esteve numa sala de aula a ensinar…
Carmo Machado
Fonte: Visão
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