Quando, há pouco mais de duas semanas, o primeiro-ministro anunciou o plano de desconfinamento, havia dois pares de olhos especialmente atentos numa casa de Santa Maria da Feira. Os filhos de Hugo Paiva “saltaram” quando perceberam que podiam voltar à escola dali a poucos dias. “Ficaram realmente felizes”, conta o informático do Hospital de S. João, no Porto. As duas crianças estavam “fartas” de estar em casa.
Hugo Paiva tem dois filhos, uma rapariga do 4.º ano e um menino em idade pré-escolar, e estavam confinados há mais um mês do que a maioria dos colegas. A covid-19 atingiu a família antes do Natal e a alta só chegou no momento em que o Governo decidia voltar a fechar as escolas. Havia, por isso, “muitas saudades” da escola. Mas era sobretudo dos contactos sociais que as crianças sentiram mais falta, conta o pai.
Em termos de ensino, os últimos meses “foram mais consolidados” do que o primeiro confinamento. O contacto com professores e educadores passou de três horas e meia de videoconferência por semana para sessões de três horas por dia. “Houve continuidade de aprendizagens e os alunos não se sentem tão perdidos. Eles sentem-se quase tão bem como se estivessem na sala de aula”, explica este pai de Santa Maria da Feira. Fazem falta, no entanto, os amigos: “Eles queriam muito voltar a encontrá-los.”
O filho mais novo de Cláudio Gonzaga anda no 3.º ano e também voltou à escola, na Maia, a 15 de Março. O regresso ao ensino presencial “aliviou bastante” o dia-a-dia deste consultor de tecnologia. Tem outra filha, no 7.º ano, que se manteve em ensino à distância até ao final do 2.º período, na última sexta-feira.
Nos últimos meses, o quotidiano doméstico não passou apenas pelo acompanhamento das aulas à distância dos dois filhos, mas também pela gestão da “carga emocional”, que está a deixar marcas em ambas crianças: “Há maior irritabilidade, por exemplo, e um excesso de euforia em pequenas coisas.” Sinais de um esgotamento que é comum à generalidade dos alunos.
A grande diferença do primeiro para o segundo confinamento, para Ana Paulo Lourenço, foi que a sua filha estava “muito menos motivada”. “Talvez já soubesse o que a esperava.”
Ana Paula Lourenço não é só mãe, é também professora no Colégio Vasco da Gama, em Sintra – dá aulas de Português e Inglês a alunos do 8.º e 9.º anos. Depois de mais dois meses de confinamento e ensino à distância está particularmente desgastada? A resposta sai com um suspiro: “Estou cansadérrima.”
“Estamos esgotados. É como se estivéssemos a trabalhar a dobrar”, avalia, por seu turno, Ester Leopoldo, professora de Português e História no 2.º e 3.º ciclos. A preparação das aulas à distância “é mais trabalhosa” do que no ensino presencial. Além disso, o feedback dos exercícios resolvidos nas aulas, que normalmente seria quase imediato em contexto presencial, agora exige um trabalho de correcção em casa.
Esta professora contratada está este ano colocada a mais de 700 quilómetros de sua casa, em Bragança, e tem que dar aulas em duas escolas do Algarve, o que a obrigava a viagens diárias entre Portimão e Lagos. Mas o cansaço físico de “muitas horas em frente ao computador é superior" ao desgaste que sentia no dia-a-dia quando o ensino foi à distância. E “o pior”, continua, é que o ano lectivo está longe de estar terminado. “Devia haver uns cinco dias a meio do 3.º período para descansarmos, tanto os professores como as crianças”, desabafa.
Os alunos terminaram as aulas do 2.º período na última sexta-feira. O regresso ao trabalho está agendado para 5 de Abril – e para o 2.º e 3.º ciclos já será feito presencialmente. Nessa altura, os estudantes terão ainda pela frente um 3.º período longo, conjugação de uma Páscoa que acontece relativamente cedo e, em especial, do prolongamento deste ano lectivo.
Em Julho, o Ministério da Educação (ME) já tinha definido que 2020/21 seria mais comprido do que o habitual, dando tempo aos professores para recuperarem as aprendizagens perdidas no primeiro ano da pandemia. Depois de as aulas presenciais terem sido novamente suspensas, a tutela decidiu acrescentar mais sete dias úteis de aulas no final do ano, o que significa que os alunos do 1.º e 2.º ciclos, bem como as crianças do pré-escolar, vão ficar nas escolas até 8 de Julho.“Vai ser duríssimo entrar pelo Verão dentro. Não é só o cansaço, mas também as condições das escolas, muitas das quais não estão preparadas para dias de muito calor”, antecipa o presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares, Manuel Pereira.
A 23 de Junho terminam as aulas para os alunos do 3.º ciclo e secundário, com excepção dos do 11.º e 12.º ano que, por terem provas nacionais, acabam as aulas a 18 de Junho. Ou seja, alunos e professores ainda têm pela frente entre 11 e 14 semanas de aulas até ao final deste ano.
Fruto das mudanças no calendário, as férias de Páscoa são mais curtas do que o habitual – apenas uma semana. Parte do período que devia ser de descanso foi encurtado para compensar as duas semanas de interrupção lectiva inicialmente decretada pelo Governo, quando decidiu voltar a fechar as escolas, em Janeiro.
“A maioria das crianças e jovens não parou nesses 15 dias”, comenta a pedopsiquiatra Catarina Amaral. Em muitas escolas, sobretudo no sector privado, esse período foi de acompanhamento intensivo dos alunos. Houve também “muitos pais que, não sabendo bem o que fazer perante a situação, deram tarefas diárias aos filhos”, acrescenta a especialista. Portanto, os alunos “não descansaram nessa altura, ao mesmo tempo que ficaram sem período de férias”.
O período de confinamento e ensino à distância tem provocado uma “exacerbação de sintomas” nas crianças que Catarina Amaral já acompanhava nas suas consultas, com problemas de ansiedade, défice de atenção ou mesmo ansiedade. Além disso, a pedopsiquiatra começa a notar sintomas de burnout, sobretudo nos jovens do ensino secundário, que estão a preparar-se para o acesso ao ensino superior. “Estão preocupadíssimos com o que podem não ter aprendido”, expõe. “Estudam de manhã à noite, com uma dedicação extrema.”
“É preciso fazer um esforço extra” para aprender as matérias que nem sempre ficam bem sabidas durante as aulas à distância, admite Maria Canudo. Esta aluna do 12.º ano da Escola Secundário du Bocage, em Setúbal, acredita que, no ensino remoto, “não se aprende tanto como nas aulas presenciais”. Desde logo porque há menor interacção entre docentes e estudantes: “Ninguém faz perguntas. Nós estamos com os microfones desligados e os professores debitam a matéria. Na sala de aula isto não aconteceria.”
“Ninguém aprende assim”
Margarida Ribeiro, que anda no 11.º ano na Escola Secundária Carlos Amarante, em Braga, conta algo semelhante. Os professores “estão mais preocupados em dar a matéria que dizem que está atrasada”. Só a professora de Matemática parece entender a necessidade de haver pausas durante as aulas – “para ir comer ou beber alguma coisa ou simplesmente esticar o corpo.”
A escola deu indicações para que uma parte da semana fosse preenchida com sessões assíncronas, para não sobrecarregar os alunos, mas a maioria dos professores está a usar o horário completo para dar aulas por videoconferência num modelo semelhante ao que acontecia presencialmente, conta.
Às segundas-feiras, Margarida tem aulas no computador entre as 8h05 e as 18h50, apenas com pausa para o almoço. “Na aula de Geologia, passamos 2h15 sentados a ouvir falar de rochas. Eu começo a ‘desligar’ ao fim de 1h30, porque tenho alguma capacidade de concentração, mas acredito que haja colegas que ‘desliguem’ mais cedo”, ilustra. “Ninguém aprende assim.”
O ensino secundário é o último nível da escolaridade obrigatória a regressar às aulas presenciais, a 19 de Abril. A data começa já a causar alguma ansiedade a Margarida Ribeiro, porque os professores já estão a marcar testes para essas primeiras semanas – “Vai ser tudo seguido.”
A pressa dos professores da Escola Secundária Carlos Amarante, em Braga, em marcar testes escritos no momento do regresso ao ensino presencial contrasta com o que foram as últimas semanas. Os alunos da turma de Margarida não fizeram testes e o trabalho feito à distância vai ter um peso residual na nota do 2.º período: 95% da classificação baseia-se em elementos de avaliação do 1.º período.
“É frustrante. No contexto em que estamos, fazermos ou não fazermos, é igual”, desabafa a estudante do 11.º ano. O caso da Secundária de Braga não é o único e há outras escolas que decidiram dar um peso elevado ao que aconteceu no período anterior, desvalorizando o período de ensino à distância.
Os conselhos de turma vão reunir na próxima semana para atribuir as notas dos alunos. O Ministério da Educação não emitiu emitir qualquer orientação relativa às avaliações. As escolas têm autonomia para definir os critérios de avaliação do 2.º período que melhor se adaptem ao facto de a generalidade das aulas ter sido dada remotamente.
Pelo contrário, na Escola Secundário du Bocage, em Setúbal, os alunos fizeram testes e apresentações orais durante o período de ensino remoto. A todas as disciplinas há “pelo menos um elemento de avaliação” relativo ao 2.º período, além da valorização do trabalho contínuo feito à distância, explica Maria Canudo. “A maioria dos meus colegas até melhorou as notas.”
Fonte: Público
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